1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, enviou-nos com data de 26 de Outubro de 2009, o primeiro de alguns extractos, que nos irá enviar futuramente, do "Jornal da Caserna" da sua Companhia:
Camaradas,
Há já algum tempo que ando ausente da tertúlia da Guiné e Camaradas. Pensei (e quando isto acontece, é sinal de que, às vezes, penso mal) que se haviam esgotado as “estórias” da minha estadia na Guiné, ou melhor, do meu turismo naquelas terras de vermelho.
Se alguns acontecimentos neste interregno aconteceram, até falhei um encontro com um dos nossos editores – Magalhães Ribeiro –, porque no dia em que tive uma oportunidade para ir ao Porto, e depois aí realizarmos o nosso contacto e encontro, esqueci-me do telemóvel em casa. Desculpa, mais uma vez, MR.
Não sei se já dei conhecimento à tertúlia, que fundei, em Ingoré, um pequeno «Órgão de Comunicação Social», com a designação já pouco usada actualmente, de: "JORNAL DA CASERNA".
Então lembrei-me que nos diversos exemplares de «Jornal da Caserna», que guardo e preservo desde então, há artigos quer da minha autoria, quer de outros camaradas, que, merecem ser publicados e, certamente, que eles vão gostar de os tornar a ler, aqui no blogue.
Conheço-os a todos, mas desde a desmobilização que nunca mais nos voltamos a cruzar. A identificação de cada um dos autores vai surgir no desenrolar da postagem de vários artigos que vos vou enviar, sendo esta, também, uma boa forma de os darmos a conhecer ao restantes Camaradas e Amigos, e, ao mesmo tempo, nós os recordarmos.
Creio bem que os autores quando descobrirem aqui, os seus textos ficarão agradavelmente surpreendidos.
Para nós da CCAÇ 462… poderá até ser o início do reencontro pessoal!
Hoje, transcrevo uma história cujo autor assinava com o pseudónimo “Flash” (o Alf Mil Geraldes), que era o ilustrador do «Jornal da Caserna» e possuía jeito e vocação para o desenho, e caricatura, fora do comum. O título da sua história, baseada em factos reais, como todas as que relato da Guiné, era a seguinte:
“Duas horas de espera em S. Vicente
Estava eu aborrecido na margem do Cacheu esperando cambança. A jangada com um desarranjo aborrecido, continuava parada e as horas passavam… algumas moscas aborrecidas passeavam nas nossas mãos e na cara, provocando uma revolta que se traduzia em palmadas desesperadas nos locais em que elas pousavam.
Alguns patos bravos, pegas e outras aves cruzavam o ar sobre as nossas cabeças com toda a sorte de pios extravagantes.A meu lado, sentados, silenciosos e imóveis, alguns nativos esperavam também que a jangada se resolvesse a passar-nos. Com resignação comecei a olhá-los, aos seus enfeites de argolas, latas, o corpo suado devido ao sol que nos martelava lá do alto e os seus movimentos cadenciados para afastar os insectos… foi então que reparei mais em pormenor num deles.
Era um moço forte, alto e desenvolvido, rosto impassível igual a tantos outros, o seu braço direito estava cortado pela articulação do cotovelo… depois de alguns segundos de exame distraído à sua mutilação, ia a desviar o olhar quando ele voltando os olhos para mim por curto espaço de tempo, fitou o toco mutilado do seu braço.
Pressenti que ele ia dizer alguma coisa e olhei-o mais atentamente, ele bateu com o braço esquerdo no que restava do braço amputado, e, com um sorriso em que deixou entrever uns dentes grandes e separados e num tom de voz forte, quase divertido, afirmou: “Lagarto”. Compreendi que ele me explicava aquela mutilação e abanei a cabeça, mostrando atenção ao que ele me disse e encorajando-o a continuar.
Tinha sido duas chuvas atrás, de manhã muito cedo quando ele, Samba, acompanhado do seu filho, um macho ainda novo, de poucas chuvas, se meteram na canoa para atravessar o Cacheu e chegar à outra margem onde o arroz semeado esperava os seus braços para produzir o suficiente para aguentar no tempo seco.
Samba, deitado na parte traseira da canoa, preguiçosamente auxiliava as remadas do filho, com o braço metido na água, movimentando-o qual o remo tosco que o filho utilizava. Subitamente um vulto esverdeado sulcou a água, e, Samba sentiu a dor aguda de muitos dentes fortíssimos dum lagarto.
Devia ter-se sentido muito aflito, pois nos seus olhos prespassou uma sombra quando contou esta passagem, depois a canoa começou a balançar perigosamente ameaçando voltar-se pelos puxões violentos do crocodilo. Samba olhou o filho ainda novo e sentiu um medo que o pelou, mas um pensamento súbito iluminou-o e, com um repelão a sua mão esquerda segurou o cabo da faca afiada que trazia à cintura… depois com golpes rápidos, os dentes e lábios apertados cortou com a faca os ligamentos do braço no cotovelo, e, foi o bastante para que com um estalido seco o crocodilo mergulhasse nas águas amareladas do Cacheu levando na boca, bem preso nos seus afiados dentes o braço valente daquele homem, que, após o seu acto de heróico desespero ficaria caído sem sentidos no fundo da canoa com um coto sangrento e uma faca na mão esquerda.
Quando a sua narrativa terminou, fiquei a olhá-lo, em olhar mudo de admiração e não tive palavras para perguntar nem dizer mais nada… e ele sorria.A jangada começou a funcionar com um lento ranger de ferros desconjuntados, as aves com os seus pios estranhos e as moscas continuavam a sobrevoar-nos.
Fiz um aceno ao homem e dirigi-me ao sítio de atraque.
Finalmente íamos passar!!!”
Nota: A ilustração é exactamente um possível retrato da frente do aquartelamento em Ingoré, impresso no cabeçalho do «Jornal da Caserna» na sua segunda edição. A primeira era dactilografada, e só o original é que era ilustrado pelo camarada Geraldes.
Para todos um abraço,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes
Gravura: José M. Ferreira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
(*) Vd. último poste da série em:
1 comentário:
José M Ferreira
Sem querer comparar,esta tua estória fez-lembrar uma outra com acção passada em Bissau ,à frente dos meus olhos perplexos, à porta de uma cervejaria/café existente numa paralela à Av, Principal e que não recordo o nome.
Dois africanos envolvem-se em luta.
As tantas um deles é atirado ao passeio e cai sobre a roda de uma bicicleta lá estacionada. Levanta-se a sangrar com um golpe fundo e transversal na "almofada" do dedão do pé.
A luta acabou e o ferido,calmamente saca de uma navalha e acabou de decepar a dita almofada do dedão,que por lá ficou abandonada no passeio perante o meu pasmo e incredulidade !!!
Um abraço
Luis Faria
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