Malta,
Mais uma vez um santo Natal para todos.
Termino a leitura do romance de Luís Rosa, só é pena o final tão desastrado**.
Vou aproveitar os próximos dias para reler os “Anos da guerra”, um importante livro do João de Melo, com algumas grandes páginas da literatura da Guerra Colonial que nós vivemos e que vale a pena recordar e registar.
Um abraço do
Mário
De Sangonhá para Farim, depois na Lisboa da reconciliação
por Beja Santos
“Memória dos dias sem fim – O amor, o sentir das gentes e a crueza da Guerra Colonial de África” é o romance mais recente de Luís Rosa (Editorial Presença, 2009). Trata-se de uma obra que encerra parágrafos lindíssimos, muito provavelmente alguns deles serão acolhidos por antologias. É a narrativa da experiência de alguém que terá vivido no Sul da Guiné (mais propriamente em Sangonhá) e depois no Cacheu, revelando o seu íntimo, dando a sua versão corajosa do sofrimento, da crueldade e da solidariedade que o marcaram indelevelmente.
Não deixa de ser exorbitante, porém, apresentá-lo como um romance histórico que rasga novos horizontes, reveladores da própria dimensão humana. Para o melhor ou para o pior, dispomos hoje de uma bibliografia apreciável em torno da literatura da Guerra Colonial onde se mostra o homem nesta paleta de sentimentos, onde se fala das culturas, comportamentos e mentalidades da sociedade guineense, das amizades e do absurdo da guerra.
É uma literatura estimulante, enriquecedora da vasta lista existente, mas às vezes os editores excedem-se nos tons encomiásticos, entrando nas promessas enganosas.
Luís Rosa prestou um bom serviço à literatura portuguesa, conta bem o que por lá passámos e a segunda parte do seu livro é seguramente onde ele arrecada o número superior dos tais parágrafos lindíssimos.
Fala-nos das colheitas das populações acossadas pela fome do mato e que procuram refúgio na terra que os viu nascer. O alferes de Sangonhá distribuiu sementes, desbravou-se a terra, semeou-se a mancarra, constituíram-se grupos armados que defenderam os agricultores.
E assim “A população toda despejou-se no campo, numa algazarra indefinida que se confundia com o ruído da bicharada do mato, fugindo para além do mundo do bicho homem. Ceifeiros de um ciclo interrompido há anos...”. Nunca houvera colheita tão abundante.
O alferes vai ao inferno que dá pelo nome de Guileje. Em Sangonhá, ele invejava aquela povoação onde, até então, nunca houvera tiros. Mas uma noite (não se sabe se ainda em 1964) veio a primeira flagelação, estarrecedora. De Buba, o alferes recebe instruções para sair em socorro, a força avança ao amanhecer, dos céus os bombardeiros vão semeando a morte entre os sitiantes. Quando chegou a Guileje, o alferes confirmou que nascera um novo tempo:
“Um sopro de fuligem batia-me no rosto e o cheiro que a guerra tem, um cheiro acre, com mistura de óleo, pólvora, suor, fogo, sangue, metal sobreaquecido e ameaça, que estrafega a alma e seca a garganta até um ponto sem limite, medonho, que nos anula ou enraivece a força última que há em nós. Compreendi que um novo tipo de combate ali tinha acontecido”.
O alferes vai encontrar os seus camaradas atónitos, alguns já sem munições, como se pedissem uma explicação para esta nova forma de apocalipse. Deixaram lá uma GMC e regressaram. Depois nessa mesma noite Guileje voltou a ser atacada. O segundo ataque varrera o resto das infra-estruturas até a GMC ficara retorcida e carbonizada.
A partir daí Guileje tornou-se um pesadelo permanente, como nenhum de nós ignora.
O alferes procura estar atento ao que se passa à sua volta: a condição da mulher e o valor dos casamentos, o pesadelo das colunas de abastecimento, não só entre Sangonhá e Gadamael, mas em todas as localidades. Ele vai entregar um camião de víveres a Cacoca onde já se anda a comer mangos, bananas-de-mato e caça. E há uma emboscada inesquecível.
O alferes tenta conversar na fronteira com o oficial da República da Guiné, foi um encontro formal em que chegaram a acordo sobre a insensatez da guerra. Nunca mais se voltaram a encontrar. O alferes não esqueceu a baga-baga, onde os guerrilheiros se acobertavam para fazer fogo demolidor. Por vezes, eram os guerrilheiros que por inexperiência se matavam a colocar uma mina. Ouvia-se um estampido, saia uma patrulha, depara-se um espectáculo macabro:
“Reparei então que a vegetação tenha o verde-escuro do mato salpicado de manchas vermelhas e roxas de mil bocados de carne humana, irreconhecíveis, como pequenos frangalhos de irrealidade. O sangue pingava em gotas rosadas misturadas com a humidade que corria das folhas. Como se as árvores estivessem a sangrar uma vida alheia, vestindo de anti-natureza o absurdo, e o horror de aperto interior”.
Por vezes, a mina leva as pernas do amigo. São os lamentos do ferido, o enfermeiro a fazer o garrote, pede-se um helicóptero que acabará por levar o morto, passara-se demasiado tempo. Ir buscar água também pode ser uma odisseia, por vezes os guerrilheiros emboscam na fonte, capturam gente, armadilham, felizmente nunca envenenam a água.
De Sangonhá o alferes parte para Farim. Parecia que ia ser um paraíso de paz, até que um dia tudo mudou com o matraquear de um tiroteio intenso. Estavam aquartelados numa granja chamada Pessubê. Recebem ordem para ir até Farim. Na viagem, um Unimog foi pelos ares no meio de um estrondo seco. Quatro homens tinham ficado sem vida. Um dos feridos grita: “Meu alferes, nunca mais sou homem!”. É muito difícil conter as lágrimas quando se ouve tanto desespero.
Há momentos em que a curiosidade é muito forte. Por exemplo, quando se anda a descobrir os marcos da fronteira, no fundo linhas imaginárias inventadas por homens que separam gentes com o mesmo credo, a mesma língua, os mesmos costumes. O alferes consolidou amizades, granjeou estimas, estabeleceu cumplicidades com informadores. Um deles, veio a descobrir-se, que estava leproso, foi para Bor. Quando o alferes o visitou, foi recebido por um frade. Muitos anos mais tarde, o alferes vê na televisão um velho bispo católico que procura levar uma mensagem de paz a quem estava desavindo, em plena guerra civil que afundou mais a Guiné.
Reconheceu o frade da leprosaria.
E o romance, que decorre dentro de margens de plausibilidade, dentro de um registo onde se conjugam os diferentes dramas onde se agitam as vidas dos combatentes, culmina num desastre sofisticado, uma conversa impossível. O alferes resolve almoçar em Lisboa, muitos e muitos anos depois do fim da guerra, com um comandante de guerrilha que actuava no Sul da Guiné. Vão comer bacalhau na rua dos Correeiros. O diálogo travado roça o ridículo, põe-se um guineense a falar e a pensar à moda europeia, é patético o que dizem um ao outro, não só por inconsistência mas sobretudo por inverosimilhança à flor da escrita.
Felizmente que conversam sobre reconciliação e as promessas para um futuro desses portugueses que precisaram de deixar África para estarem em condições de lá voltar. Do mal o menos, a literatura afundou-se mas os homens ergueram-se.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 21 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5514: O meu Natal no mato (26): Um regresso à Guiné com a Benedita, pelo Natal (Beja Santos)
(**) Vd. poste de 19 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5503: Notas de leitura (44): Memória dos Dias sem Fim, romance de Luís Rosa - I (Beja Santos)
6 comentários:
Desculpa, Mário Beja Santos,
eu às vezes mando uma bocas carregadas de demagogia, ou não, tipo mau advogado do diabo.
Mas como é possível a partir de Buba ir socorrer-se Guileje, com uma GMC e tudo? Era possível em 1964? Via Aldeia Formosa? Eram quase cem sinuosos quilómetros.
Concluis a tua recensão, creio que bem, com a seguinte frase: " Do mal o menos, a literatura afundou-se, mas os homens ergueram-se".
Um abraço,
António Graça de Abreu
Meus caros:
Os administradores do blog (DEMOCRÁTICO; SO THEY SAY) acabam de eliminar, e vão fazer o mesmo à minha mensagem, comentários "ofensivos da Democracia".Tive a sorte de ainda os ver!
Publicarei (porque imprimi) o que foi anulado!
Por mim, chega de Tabancas e coisas afins!
Disse uma vez, e também foi censurado, uma série de coisas de que "os democratas" não gostaram.
Também ,como dizia um camarada há pouco, também eu saio.
Mas Publicarei!
Abraço a todos e Bom Natal
Luis Nabais
Não li o livro e confesso que não o vou ler.
Não estou para isso!
Ao ler o que escreve o Mário, (e não estou a dizer que é ele que o diz agora, mas pelos vistos o autor do livro), percebo que mais uma vez que o PAIGC controlava tudo e todos e que ganhava tudo e todos.
Deve ter sido uma Guiné diferente, porque naquela que eu estive as coisas não se passavam bem assim.
En fim, como se diz na minha terra...andando!
Quantos aos anónimos e ao Luís Nabais que assina o seu comentário tenho a dizer o seguinte:
Aos anónimos: quem quer discutir e colocar argumentos deve identificar-se, porque só assim as pessoas se entendem.
Quanto ao Luis Nabais, e aos anónimos também: Já tive neste espaço discussões, polémicas, inclusive com o autor deste texto, Mário Beja Santos que comandou o Pel Caç Nat 52, antes de mim e com o sucesso que era bem reconhecido quando dele tomei conta, e nunca vi um comentário meu, um texto meu, o que quer que fosse enviado por mim para os editores, até mesmo textos que nem lhes eram "favoráveis", sobretudo para o Luís Graça, ser recusado, apagado ou não publicado!
E que eu saiba nunca tal foi feito com aqueles que se identificam nos comentários e textos, a não ser logicamente que sejam ofensivos e ultrapassem as simples regras da convivência entre pessoas.
Por isso, identifiquem-se, exponham os argumentos e as provas, e tenhoa certeza que serão ouvidos e com certeza respondidos por aqueles que tiverem de o fazer.
Agora despejar comentários sobre anonimato...
Abraço camarigo para todos os atabancados, meus camarigos, com quem tenho muito orgulho em conviver neste espaço de muitas sensibilidades.
E perdoem-se-me os erros que foram fruto da pressa e da falta de jeito para os teclados!!!
Claro, o teclado é que havia de ter a culpa!!!
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