1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2009:
Caro Carlos:
Desta vez o atraso no envio da estória deve-se a muitos factores: Uma ida ao “meu” Nordeste, uma ida a Espanha, etc.
Mais uma vez te digo que esta estória parece grande mas só porque tem muitas fotos. Acredita que gostaria de pôr mais algumas, mas irão noutra altura.
Gostaria muito que o Humberto Reis mostrasse as fotos à D. Rosa e sua família, onde penso que estariam as suas filhas e me dissesse alguma coisa.
É o primeiro Natal que passo na Tabanca Grande (e na Pequena também).
A todo o pessoal das duas tabancas (e das outras também), sem excepções, desejo para esta quadra (e para as outras também) o que, neste mundo, há de melhor.
Um grande abraço a todos.
Fernando Gouveia
A GUERRA VISTA DE BAFATÁ
19 – Referências de Bafatá – Lugares
Já numa outra estória referi que os alferes do Agrupamento iam fazer as refeições no Esquadrão, ali ao lado. Primeiro a messe era gerida, mensalmente, por cada um de nós. Porém, quando em Novembro de 69 esse Esquadrão foi rendido por outro, comandado pelo Cap. Fernando Vouga, este determinou que a messe dos 6 ou 7 alferes, fosse gerida por um sargento. Um desastre.
Como o Esquadrão tinha uma horta de onde vinham algumas hortaliças e em Bafatá havia carne e peixe à disposição, podia-se comer muito bem. O Sr. Sargento é que teria outras ideias em mente e os pratos à base de carne gordurenta de porco (a mais barata) sucediam-se.
No último mês da minha comissão comecei a sentir-me doente do estômago, ou do fígado ou das duas coisas. Outros alferes também andavam descontentes e acabaram, como eu, por desarranchar-se. É assim que surge o primeiro lugar a descrever.
O Café Restaurante Transmontana
Quando já não conseguia reter no estômago qualquer refeição mandada confeccionar pelo Sr. Sargento resolvi, in extremis, passar a comer no Transmontana, só peixe e frango cozidos com arroz. Felizmente ao fim de dois dias chegou a mensagem para vir embora.
Neste Blog já foi muito falado o Transmontana, situado numa esquina da avenida principal, à esquerda quem descia. Muitos já se referiram ao bife com batatas fritas e ovo a cavalo que ali se servia mas eu nunca antes tivera necessidade de lá ir comer. Ia, sim, muitas vezes tomar café ou comer uma sande, embora o pão fosse mau, parecia borracha.
Uma vez estava sentado na esplanada com a minha mulher que começou a conversar com o empregado Infali. Era muito simpático mas tinha um ar muito triste. Durante a conversa referiu que tinha quatro mulheres. Talvez fosse essa a razão da tristeza…
Na esplanada do Transmontana com o empregado Infali.
As três tabancas
Ah, se fosse agora, com as máquinas fotográficas digitais…Muita pena tenho de não poder descrever por imagens, o muito que vi nos meus passeios às três tabancas. Muitas fotos tirei mas muitas mais ficaram por tirar.
A tabanca da Rocha, onde tive casa, situava-se na parte alta da cidade, ao nível dos quartéis do Agrupamento e do Esquadrão. Era a mais extensa, aquela onde havia melhores casas e também a mais populosa.
Por lá ter vivido pude assistir a muitos actos sociais dos nativos como choros, batuques, cristãos e balantas, casamentos (em que a maior parte das prendas consistiam em meias cabaças) e outras festividades.
Na época própria, creio que em Dezembro, chegavam, pela estrada do Gabú, carregamentos de mancarra em burros todos engalanados com motivos florais, muito coloridos.
Era também na tabanca da Rocha que se situava o bordel bataclã, numa rua paralela à estrada para Bambadinca. Na altura nunca o ouvi designar como tal; talvez o nome tivesse surgido com a telenovela Gabriela.
A tabanca da Ponte Nova, assim chamada por ficar na “estrada” que ligava Bafatá a Geba e em que existia a ponte mais recente da cidade, desenvolvia-se ao longo do caminho e ao lado do rio Geba. Nela havia uma comunidade de saracolés, que tingiam os panos de azul. Estes podiam ver-se ao longo da tabanca, pendurados, a secar nas vedações e nas beiradas das palhotas. Nessa tabanca ficava ainda a oficina do ourives Chame.
A tabanca da Ponte Nova. Ao fundo o Geba e a foz do Colufe.
A Ponte Nova (ou Salazar como não podia deixar de ser), que deu o nome à tabanca próxima.
A tabanca do Nema era a mais pequena. Ali ia de vez em quando assistir, ao fim da tarde, à saída dos morcegos (muito negros com 50 a 60 cm de envergadura) para as suas noitadas. Logo que saíam iam, em voo rasante, beber água ao rio. Recentemente li, num livro de contos mandingas, que não iam propriamente beber mas sim molhar a pelagem do peito donde, posteriormente lambiam a água. Durante o dia ocupavam duas ou três grandes árvores que, consequentemente, quase não tinham folhas.
O Mercado
Considero-o, no seu estilo neo-árabe, como o verdadeiro ex-libris de Bafatá. Como já lhe dediquei uma estória (poste 4769) não acrescentarei mais nada.
O mercado
Zona das lavadeiras
Perto do mercado e dum arranjo ajardinado onde existia um parque infantil, era uma zona sempre visitada. Ali atracavam grandes barcos que faziam a rota Bissau-Bafatá e que, a meu ver, tinham arremedos de veleiros. Mas eram as lavadeiras, em grande número, que atraíam mais pessoal.
As lavadeiras, os barcos e o Geba com as suas canoas.
A piscina
Entre o mercado e o rio havia uma piscina, um luxo para aquele tempo…No entanto a sua água não seria mais limpa que a do Geba.
Na piscina (uma varanda sobre o Rio Geba).
O restaurante do Sr. Teófilo
Embora já referido na estória anterior, nunca é demais realçar a sua posição estratégica numa encruzilhada de caminhos. Era muito agradável assistir da sua esplanada ao desenrolar da vida de Bafatá. Crianças a caminho da escola, mulheres a caminho do mercado, homens transportando as mercadorias mais diversas, militares que entravam e saíam de Bafatá. Também dali se viam chegar aviões e helis e, rumo aos celeiros, viam-se passar os burros engalanados carregados de mancarra.
Ao fundo o restaurante do Sr. Teófilo, na saída para Bambadinca
Da esplanada do Sr. Teófilo viam-se as crianças a ir para a escola, mulheres para o mercado…
Sintra de Bafatá
Era assim designado um caminho pouco conhecido, praticamente utilizado só pelo pessoal do Agrupamento e do Esquadrão, quando se queria chegar à parte baixa de Bafatá, gozando de uma sombra que não era possível utilizando a avenida principal. Do Agrupamento descia-se um desnível de 10 a 15 metros, junto à residência do Comandante do Esquadrão (a uns 50 m). No fundo situava-se a mãe de água que abastecia toda a cidade e um fontanário, à europeia, do qual já vi uma foto publicada no Blog. A água sobrante formava um riacho que se transpunha por cima do tronco de uma árvore caída. Junto da mãe de água partia um caminho, quase em linha recta até à parte baixa de Bafatá. Passar por ali era sempre interessante. Viam-se crianças a brincar e macacos à espera que alguém lhes desse algo para comer. Também era frequente ver lagartos com cerca de 1/1, 5 m atravessarem à nossa frente, de um lado para o outro, mas absolutamente inofensivos…
Entre a Mãe de Água e a casa do Cap. do Esquadrão existia uma zona com mesas para piqueniques. A esposa do Cap. Comandante do Esquadrão costumava dar, nesse local, umas festas de que falarei mais à frente.
Sintra de Bafatá. A caminhar da parte baixa da cidade para a Mãe de Água.
Na Sintra de Bafatá transpunha-se um pequeno riacho…
O cinema
Na rua paralela ao rio e mais perto deste, tínhamos um recinto, ao ar livre, onde se exibiam alguns filmes. Por causa das luzes, projectores, etc, surgiam inúmeros insectos que eram um bom repasto para os imensos morcegos que surgiam também, urinando frequentemente em cima dos espectadores. Já em tempos referi aqui que me tornei sócio do Sporting Clube de Bafatá, ao qual o cinema pertencia, para poder usufruir de entradas mais baratas. Creio que as sessões eram semanais e eu era frequentador assíduo. Passei a conviver com o porteiro Braima. Tivemos várias conversas sobre os mais variados temas locais pelo que aprendi muito com ele. Não sei quem escolhia os filmes mas, dum modo geral, os que ali se exibiam eram muito bons, até demais…Numa das sessões foi exibido o “Deserto Vermelho” de Antonioni. Após o intervalo a assistência ficou reduzida a metade…
O cartão de sócio, um bilhete de entrada e uma senha da cota mensal.
O café da D. Rosa
Quase em frente à sede do batalhão, era muito conhecido. Mas o que se pode achar um pouco estranho, e disso peço desculpa à D. Rosa, é que nunca lá entrei. Não recordo se alguma vez vi ou não a D. Rosa, mas as filhas penso que sim. Como era sabido eram umas belas adolescentes. Não sei se haveria libanesas feias, mas as que conheci quer em Bafatá, quer em Nova Lamego, eram duma forma geral belíssimas. Quando eu vim embora, um Alferes do Agrupamento, o Vaz (alentejano), estava para casar com uma moça libanesa, penso que de fora de Bafatá, e que era duma beleza extrema.
Quanto às filhas da D. Rosa penso que as conheci muito bem, pois costumavam participar nas festas que a esposa do Cap. do Esquadrão costumava dar na zona de piqueniques da Sintra de Bafatá, ao lado da sua casa, onde se comia, bebia e… dançava.
À esquerda a sede do Batalhão e à direita o café da D. Rosa.
Um dos piqueniques, na Sintra de Bafatá, em que penso poderem estar as filhas da D. Rosa.
Um grupo de convivas no mesmo piquenique.
Fotos: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados
Não prometo ser “até para a semana”. O mais certo ser “até para o ano” camaradas...
Fernando Gouveia
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 1 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5384: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (18): Referências de Bafatá - Figuras típicas
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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16 comentários:
Caro Fernando Gouveia
Continuo a seguir as tuas descrições de Bafatá, e não só, com o mesmo interesse com que as comecei a observar.
São relatos vivos que facilmente nos 'colocam lá' e em que nos ajudam a recordar e dar melhores contornos ao que já estava difuso.
Um abraço
Hélder S.
Meu caro Gouveia
No café do sr Teófilo bebíamos a "última" para o caminho.
Penso não estar a fazer confusão com o local, mas não era pessoa simpática para nós soldados.
Por diversas vezes aconteceu pedirmos água e ele mandar-nos beber ao poço.
De qualquer forma as imagens de Bafatá, trazem muita saudade a quem por lá andou.
Um abraço
Juvenal Amado
Caro Gouveia, na sua simplicidade este é um muito completo e interessante documentário sobre Bafatá.
Muit'obrigado
S.Nogueira
PS
Lamento não ter podido fazer uma vida 'assim', lá, como se fosse a minha terra...
uma vantagem da 'quadrícula'!
(pedindo prévia desculpa pela inconfidência)
Lembra-se do bolo/pão-de-ló que preparava a mulher do Cap. Campos e que aparecia à mesa depois do almoço?
SN
Fernando desde que apareceste com as noticias de Bafatá, que tenho pensado em fazer-te esta pergunta.
Será que conheceste as carismáticas senhoras aí da Rocha em Bafatá a velha Joana, e as jovens Cádi e Cambái era assim que se pronunciava não sei como se escreve no dialecto.
Um alfa bravo.
Colaço.
Sobre o Filme a que te referes, eu estava lá. Fui ver este filme na companhia do 1ºSarg. do SPM(?) e o actor Carlos Miguel, que na altura era Fur. Mil.no destacamento de SPM.
Recordo uma "BOCA" do Carlos Miguel(?) a um comentário de uma personalidade que estava na fila à nossa frente – este Antoaine é excepcional.
Coitado não conhecia o Antonione.
Caro Camarada certamente encontramo-nos por lá, pertenci ao Destacamento de Eng. era Fur.Mil. de nome CARVALHO e estava a substituir o Silva que tinha vindo de Férias.
Servia-me da Messe da Cavelaria (?) onde estive entre Julho/Setembro de 1968.
Já à dois anos que acompanho a nossa Tabanca com regularidade. Em breve entrarei em contacto.
Um Abraço Camaradas.
Resposta a alguns camaradas:
Ao Colaço tenho a dizer que não me lembro das pessoas da tabanca da Rocha, que me refere (também já passaram 40 anos). Conta mais coisas. Pede o meu edereço se for o caso.
Ao anónimo SN também direi que não recordo a questão do pão de ló, mas a esposa do Cap. Campos era toda para essas coisas. Gostaria muito de saber quem tu realmente és, para trocarmos mais impressões sobre Bafatá e a messe do Esquadrão. Além dos alferes só o Cabo Marques saberia desse pormenor. Diz alguma coisa.
Ao anónimo que comenta a ida ao filme o Deserto Vermelho digo o mesmo, aparece para trocarmos recordações. Por exemplo: Uma vez comprei um piriqito a um africano e no dia seguinte um elemento da tua secção de Engenharia veio dizer que era dele e lá fiquei sem dinheiro e sem piriquito.
Um abraço a todos.
Fernando Gouveia
Caro Gouveia,
fui para a Guiné 'instalar' a
CCP123 e estive algum tempo aboletado no ERec de Bafatá onde, adicionalmente e por cortesia, em troca dos petiscos, decidi resolver um enigma que atormentava a simpática senhora - abati à catanada o misterioso autor do lixo espalhado diariamente, ou quase, junto à casa do Cap. Campos e que ninguem conseguia identificar. Razão: a iguana gigante atacava à hora do calorão, depois do almoço. A emboscada durou uma data de tempo e ia-se gorando porque não contei com a surpreendente rapidez do bicho quando me viu.
Talvez se lembre do episódio...
S.Nogueira
Também 'fabriquei', com a prestimosa ajuda de um sargento da oficina do Esquadrão, um tambor à la Degtiarev para meter a fita da merda-da-HK.
Lembra-se ou soube disso?
Mais tarde apareceu(-me)em Angola um major e um sargento (?) do SM do Exército a pretender identificar o autor da peça de engenharia. Houve um certo desconversar calmo e o homem foi-se embora um tanto desapontado com a falta de sentido do "ronco" e com a indicação de que tinha sido obra da '123' e das Oficinas do ERec-Bafatá, na Guiné. (O meu 2º comandante assistia, com uma expressão trocista; pareceu-me...)
SNogueira
CORRECÇÃO
O sr major do SM ficou com a indicação de que o tambor para a HK tinha sido obra do'Corpo Expedicionário' - era assim que nos intitulávamos.
A CCP123 só veio a ser formalmente constituída mais tarde.
E otambor a que me refiro, cilíndrico, fechado com uma porca d'orelhas ao centro e devidamente pintado de verde azeitona, é predecessor de uma caixa mais bem fabricada e que apareceu muito depois.
SNogueira
Gouveia, mata as saúdades de alguns lugares de Bafata neste video http://www.youtube.com/watch?v=2sKzC3GKa1A .
O fumador sou eu.
Jorge Félix
Ao camarada SNogueira tenho adizer que que me lembro duma "iguana" morta, que o Alf. Grosso andava a tentar embalsamar. Muitas vi à minha frente, por baixo da casa do comandante do Esquadrão.
Um abraço
Fernando Gouveia
Boa-noite! tomei a liberdade de vos perguntar se algum dos senhores, conheceu um militar de nome Helder Martins de Matos que prestou serviço na Guiné entre 63/64 inclusivé em Bafatá e de quem fui madrinha de guerra durante esse periodo. Com o regresso perdi o contacto, eu tinha à data 15 anos, e um destes dias lembrei-me de pesquizar na NET sobre a guerra da guiné e encontrei o vosso blog que acho muito interessante pelo vosso espírito de camaradagem e sobretudo por não deixarem morrer um tempo... o tempo da vossa juventude, donde trazemos quase sempre as melhores recordações da nossa vida. Agradecia-vos que se tiverem notícias desse senhor que refiro, me enviem o seu contacto para o meu email: felismina.mealha@hotmail.com
Com os meus cumprimentos, faço votos para que durante muitos anos os senhores se continuem a encontrar nos vossos almoços e em outros eventos que vos aprouver.
O meu muito obrigada pela vossa atenção.
Sou respeitosamente:
Felismina Costa
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