1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2010:
Queridos amigos,
Depois da jornada de ontem, na Livraria Verney, ouvindo, comovido, as impressões e comentários que o Luís foi transmitindo a uma assistência marcadamente militar sobre os meus livros, regressei a casa a gritar com um ataque de ciática, fui parar à urgência de Santa Maria e aproveitei aquela confusão entre a madrugada e o amanhecer para ler estes dois livros do Pires da Mota.
Li praticamente tudo de pé, as dores não consentiam outra posição. Aproveito para agradecer a presença de muita malta da tabanca grande que veio até Oeiras, para nos escutar.
Um abraço do
Mário
ARMOR PIRES MOTA (4)
Da poesia “Tempo em que se mata mesmo em que se morre” até ao livro de contos “Cabo Donato Pastor de Raparigas”
Beja Santos
A comissão na Guiné marca a maior parte das obras de Armor Pires Mota. Já referimos “Tarrafo”, referência incontornável da literatura da Guerra da Guiné (testemunho em directo, publicado no Jornal da Bairrada, um género de diário que, por definição, não podia ter retoques, o repórter estava sempre em cima do acontecimento, o seu teatro de operações, mais ninguém se abalançou a tal temeridade), “Baga-Baga”, uma poesia nostálgica, um suplemento lírico filtrado de “Tarrafo”; e “Guiné, Sol e Sangue”, uma sequência de narrativas e contos em que Pires Mota retoma o seu itinerário de combatente e vem dar algumas justificações ideológicas para a guerra em que participou. Tudo isto entre 1964 e 1968.
Em 1974, volta à poesia, tumultuam na maioria dos seus poemas imagens impressivas da guerra: morros de baga-baga, corpo metralhado, dedo no gatilho, um obus, uma granada, por cada emboscada ganha, a água do tarrafo... ou então
Nos olhos espantados do negro Mamadu de Có
fumega ainda um sangue solene e espesso,
colheu-o a noite de aço, suor e pó
...............................................................................
É inútil fugir, mãe, fugir à sorte
e vou morrendo assim,
de granadas na mão,
morrendo a hora, o capim
................................................................................
companheiros, tombados no tarrafo, de pé,
vêm reunir-se dentro de mim.
O seu livro de poesia “Tempo em que se mata mesmo em que se morre” abraça as recordações do combatente, o sofrimento pela incompreensão de muitos face à guerra em África, adquire tons épicos e uma toada lírica onde não está ausente a sua filiação cristã, a sua fé inabalável.
“Cabo Donato Pastor de Raparigas” é uma grande surpresa. De contos se trata, histórias sem conexão em que Armor Pires Mota cede à pilhéria, ao rocambolesco, à sátira política, mas também aos pungentes amores da guerra, a brutalidade de interrogatórios, as façanhas dos boinas verdes.
Tudo começa na antiga sociedade, em eleições de farsa, em que o senhor conde pretende ser deputado da Assembleia Nacional contando com os votos da gente da Silveirinha. É uma paródia completa em que os senhores de antigamente procuram safar os filhos da guerra. “Os diabólicos dias de Mansabá” são seguramente autobiográficos, relatam a dureza de guerra. As melhores páginas vêem no conto seguinte “O insubmisso Vicente”, o eterno drama do jogo duplo em que Vicente não aguenta a tortura do interrogatório e procura suicidar-se. Este data de 1991, o autor perdeu a contenção deixa a prosa correr com o calão, os diálogos curtos e incisivos, o grotesco das imagens. O conto seguinte “O Menino Jesus Era Negro” é de uma enorme beleza, faz realçar uma dominante da obra literária de Armor Pires Mota que é o cruzamento afectivo entre brancos e pretos. Chegamos a “Cabo Donato, Pastor de Raparigas”, um relato de uma enorme intensidade lírica, um homem que jaz agonizante no hospital e que só pensa no seu amor por Sano, vai desfiando o seu rol de pedidos ao furriel Cunha Velho. Mas o estado de saúde melhora, os amantes reencontram-se, o que se passou depois não cabe na história, o importante são os amores que triunfam quando tudo parece caminhar para o naufrágio.
Armor Pires Mota volta aos seus grandes parágrafos. Mas ficam ainda mais surpresas para contar sobre alguém que já leva 50 anos de vida literária.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 24 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5701: Notas de leitura (58): Armor Pires Mota (3): Guiné: Sol e Sangue (Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Lembro que quando organizei na Gulbenkian uma exposição sobre a literatura da guerra colonial, sa pedido do Dr. Afonso de Albuquerque, era eu um dirigente sindical a rebentar de trabalho e de dúvidas, li uma ou duas passagens de um livro de Armo r que me deixaram de pulga atrás da orelha.
A p...ta vida manda mais que nós e o trabalho, os estilhaços do trabalho e a emigração para o Alentejo, durante anos me afastaram do centro cultural do País dando-me outras guerras para decifrar e resolver.
Que grande gaita, esta de perder tantas coisas boas.
Obrigado Mário por me trazeres esta fala grande, património da minha pátria
Cumprimentos
José Brás
...e as melhoras da tal ciática que também eu trato tu cá, tu lá mas que, estranhamente, a velhice parece estar a aliviar.
Meu Caro Mário: consegues ler numa madrugada dois livros? Estás em forma!
As melhoras da ciática. É aborrecida e dolorosa.Conheço a dita. Curou-se?? porque fui injectado na coluna...as melhoras e cuida-te
Um forte abraço do T.
Amigo Beja
Tenho os livros todos do nosso Camarada "Velhinho" Armor Pires Mota do Bat Cav 490/CCav 488 que ele teve a gentileza de me oferecer com dedicatórias diferentes apostas em cada livro.
Uns anos mais tarde 69/71, pisei as mesmas terras que ele pisou no nosso Sector de Farim e do mesmo Subsector Jumbembem onde estive 18 meses.
A narrativa dele e as personagens que ele invoca são reais.
Algumas delas ainda estão de vida, as quais vou encontrando todos os anos nas minhas deslocações aquela terra.
Temos trocado mails de vez em quando sobre os seus trabalhos.
Dá gozo ler os livros deste grande escritor, pois para mim, estou a ler e a seguir as mesmas picadas, os mesmos trilhos e a ver as personagens que umas já se foram e outras estão envelhecidas.
Estou a gostar da tua recensão, principalmente e referente a livros que tenho.
Continua
Com um grande abraço
O Tabanqueiro da Tabanca Grande e dos Melros
Carlos Silva
CCaç 2548/Bat Caç 2879
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