domingo, 24 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5701: Notas de leitura (58): Armor Pires Mota (3): Guiné: Sol e Sangue (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Estamos longe da prosa vulcânica de “Tarrafo”.
A profissão de fé nacionalista é assumida neste livro, dou comigo a pensar se não foi ela que contribuiu para o manto de silêncio que caiu sobre o autor.

Um abraço do
Mário



Armor Pires Mota:
Guiné: Sol e Sangue


Beja Santos

No mesmo ano em que Armor Pires Mota recebe o prémio Camilo Pessanha pelo livro de poemas “Baga-Baga” (1968), a Editora Pax publica “Guiné: Sol e Sangue, contos e narrativas”. Onde “Tarrafo” é uma descrição pungente, quase em directo, uma brutal descoberta da guerra do mato e das múltiplas insídias que espreitam o contra-guerrilheiro, onde “Tarrafo” é o diário de uma guerra que se desenvolve em espiral e para qual um jovem alferes não pode ter a nítida percepção da força irradiante do projecto de independência que lhe subjaz, fazendo desse libelo uma reportagem de grande alcance histórico, “Guiné: Sol e Sangue” é uma profissão de fé, um testemunho ideológico, uma catilinária sobre aqueles que descrêem do valor da missão que se trava nas matas densas e nas lalas guineenses. Todas as profissões de fé acabam por retocar a realidade, são a “segunda vida” das recordações, o que se pretende transmitir é que há uma fé no duro combate, é indispensável convencer os indiferentes ou os cépticos sobre a justeza daquela guerra.

Daí o tom panfletário logo nos primeiros parágrafos: “O medo é meia derrota. A guerra não se ganha nas trincheiras. Só a coragem vence falsas bandeiras e perdidos ventos. Há uma Bandeira e uma Fé... Não é a floresta tentacular que me curva a alma. É este não saber a terra que piso, a água que bebo, o ar que respiro. É não saber a verdadeira cor do inimigo... Mordido na pele da alma pelo esbrasear frenético das manhãs sangrentas, espapaçadas de suor e capim, estou com os meus soldados onde há um negro a chamar-nos, uma criança a salvar”.

Este livro de contos e narrativas retoma o percurso de “Tarrafo”, são pequenas notas do feitiço africano, o batuque, o tornado, a emboscada, a acção psico junto das populações forçadas ao jogo duplo, os poemas, os ataques de abelhas, os golpes de mão, os comportamentos heróicos, a colocação das minas, por exemplo. Veja-se esta descrição do mercado, qualquer um de nós se pode rever nesta atmosfera:

“O mercado regurgita de gente. Uma autêntica babel: fulas de sabadora branca e turbante alto, de uma estatura invulgar, balantas, espadaúdos e enodoados à flor da pele e mulheres cor de café ou chocolate gingando-se na euritmia sensual das formas de estátuas gregas. Soldados que, num crioulo feliz, compram isto e aquilo para mandarem para a terra. Gilas da Gâmbia que apregoam nossas-senhoras-de-pau-preto, gazelas, de pau sangue, trabalho em osso e couro. E o ar rescendendo a banana, a papaia, a abacaxi, um suave aroma tropical. Ali há de tudo: colares de missanga e âmbar, potes de óleo de palma e aguardente de cana, balaio de arroz e mandioca, peixe seco, ervilhas de gindungo, panos azuis-brancos, terços longos de mandinca, guarda-de-corpo com versículos do Corão, um ror de coisas úteis e bugigangas. E nesta babel vou conhecendo a África irrequieta e misteriosa”.

O autor revisita os campos de batalha, descreve as viaturas destroçadas, o tempo de Natal e toda a sua carga nostálgica, saúda os seus soldados, menciona as práticas da guerrilha. Um exemplo:

“Os terroristas ameaçam, atravessam arames na estrada, armam escaramuças, montam minas e fornilhos, intimidam as aldeias, escrevem irrisórios cartões que penduram das árvores e em francês: “nos fusils tuent tous les blancs”, “nous voulouns la paix”. Cartões irrisórios que o soldado, rindo ao canto do lábio uma ironia e uma raiva indescritíveis, desfazem com a ponta da bota.”

Finda esta viagem à matéria que já utilizara em “Tarrafo”, o autor afoita-se a contos de diferente dimensão. E aqui deixa marca literária de realce, temos aqui imagens que podem emparceirar nas melhores antologias sobre a Guerra de África. Alguns exemplos:

“Uma chuva de balas espinoteou na carroçaria, no chão. Assobios e chicotadas de loucura sob um sol violento que agulhava como serpente o dorso dos homens. E, para não esmagar a criança contra o solo, deixou-se tombar de costas e, rastejando com a inocente sobre o peito contraído, pô-la a salvo atrás do morro de baga-baga, do lado da estrada avermelhada”.

“Arrimados à frescura das paredes, fronte esbagoada em suor, barbas compridas, luzidias, braços caídos ao longo do corpo, os soldados lembravam estranha visão quixotesca. Poeira e suor desfiguravam-nos. E os olhos, inflamados pelo calor e pelas insónias, pareciam querer estoirar dentro das órbitas.

Amoleciam trôpegos de cansaço. Mas já o alferes os chamava à realidade, arrancando-os àquele torpor doentio:

- Vamos às viaturas buscar todas as pás e picaretas. Temos de construir um parapeito em volta da casa com os bidões que se encontram naquele barranco, além”.

“Alapardámo-nos. Demos de chofre com as nossas sombras num pequeno terreiro onde fumegavam restos de brasedo.

Sentinelas rondavam. Apenas duas. Paravam, cochichavam, voltavam ao eterno movimento de vai-vem. Se nos descobrissem, estávamos tramados, ou talvez não, quem sabe. Estávamos postados nos abrigos que o inimigo abrira ao rés do mato. Bastava um tiro para eles se meterem nos buracos. Era apanhá-los à mão ali mesmo. Ai se ao menos fôssemos uns dez!

Longe, rebentou intensa fuzilaria. Seria em Benna Onça? De certo, era a resposta. Tinham força aqueles cães e os chefes arremessavam-nos para a frente como suicidas. Até blufos de tenra idade. Um bom blufo era aquele que fazia história, que matava branco no mato. E os blufos iludiam-se com glória inútil”.

Armor Pires Mota revela o seu talento a descrever perfis como o do soldado Panóias, pouco dado a bravuras, folião e homem de farroncas que numa noite de serviço no posto de sentinela matou um burro, o do Sílvio, especialista de minas e armadilhas e o heroísmo de Almada Zagalo, um verdadeiro entusiasta que a todos galvaniza nas horas mais adversas.

Repete-se que esta experiência literária é uma profissão de fé de alguém que queria mostrar ao mundo a magnitude dos combates na Guiné, há imagens poderosas, mas o todo é um pouco frustre, fica bem aquém desse prodígio que se chama “Tarrafo”.
Armor Pires Mota continuará na poesia e na prosa a falar da nossa Guiné. Como veremos em próximas recensões.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5692: Notas de leitura (57): Armor Pires Mota (2): Tarrafo, o primeiríssimo relato literário da Guerra da Guiné (Beja Santos)

1 comentário:

Carlos Pinheiro disse...

É indispensável que estas coisas venham a lume por todos os motivos. Para que as pessoas que passaram ao lado , fiquem a conhecer. Para que aqueles que por lá passaram não esqueçam. Mas também para que certos papagaios de janela aprendam, façam um acto de contrição e reconheçam que afinal houve querra e há ainda muitos ex-combatentes.
Carlos Pinheiro