1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, ex-Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 22 de Janeiro de 2010, a seguinte mensagem:
Camaradas,
Peço desculpa, mas hoje «engatei» a linha de produção, e aqui envio nova estória.
Esta estava prometida há tempos, pois já contei o regresso. Faltava contar alguma coisa sobre o embarque.
A foto pode ser complementada com uma legenda do género: «Maçarico para a Guiné, a bordo de um monte de sucata».
Aliás, é visível!
O DIA DO EMBARQUE
Já o disse aqui e repito-o sem entusiasmo…
Embarquei naquele local conhecido de todos, em Lisboa, no dia 14 de Julho de 1963.
Já pouco tenho gravado na memória desse dia. Não tinha ninguém a despedir-se de mim na Rocha do Conde de Óbidos, ou por ali perto.
Quase que não lembro como foi, talvez psicologicamente “anestesiado”, quase não dei pela minha entrada no barco. Dessa anestesia, ficou-me o desejo, lembro-o hoje, que a poderia ter evitado… não sei. Quase perdi a total percepção dessas coisas.
Há pelo menos uma que fiz e lembro bem, é que nunca apresentei um documento comprovativo das minhas habilitações literárias, ao tempo do ano de 1963, porque tinha receio de ir para a tropa muito tarde e de ir cair a sítios que, naquele tempo, seriam considerados de maior risco, como por exemplo uma das linhas da frente dos combates, em Angola.
Na Guiné, em 1963, as coisas não estariam tão más quanto isso, pois nessa terra vermelha de sangue, suor e lágrimas (Armor Pires Mota), a guerrilha estava em «preparação» e «organização». Não me enganei, embora já existissem zonas de constante actividade guerrilheira.
Voltemos ao assunto, embarque.
E lá entrei no barco, qual carga de gado vivo, que se chamava «Sofala».
Como era preciso cumprir as ordens de Salazar (porra, sempre este nome a vir à baila, quando falamos da nossa juventude toda ela passada sob o síndrome da guerra colonial), que dizia «rápido e em força». Nem que fosse preciso tratar as pessoas como meros animais, que entravam num cargueiro sem condições para transportar o que quer que fosse, quanto mais pessoas!!!
Ele eram porões e mais porões, num cargueiro enorme, “carregado” de milhares de homens uniformizados militarmente, qual quantidade enorme de carne para canhão, ali metidos, tendo ainda, por baixo desses porões, uma quantidade enorme de outros soldados com viaturas, armamento, máquinas e munições… muitas munições.
Quer isto dizer que aquele barco, o «Sofala», que nos levava, com pouca preparação, para um distante, desconhecido e estranho sítio, carregado até mais não poder.
E lá partimos. Iniciava-se, naquela altura, a construção da ponte, que nem o nome que lhe foi atribuído após ser terminada me atrevo a pronunciar (não é que o actual “baptismo” da mesma me seja acomodatício, mas gostaria que um crânio, mais iluminado, lhe tivesse atribuído outra “nomenclatura”).
E lá fomos. Penso que saímos de tarde, ou terá sido de manhã? Não, não estou a brincar, já não me lembro daquele que deveria ter sido o dia que me ficassem gravados, na memória, todos os momentos e acontecimentos.
Sei, é que no mesmo dia, ou no dia seguinte, todo aquele monte enorme de ferro em que eu ia deitado (uma enorme fonte de perigo sujeita a ir pelos ares e a ficar feito em frangalhos a qualquer momento), avariou. Estivemos então à deriva, em pleno alto mar sob balanços constantes, até ao meio da tarde.
Raro foi aquele que não «deitou a carga ao mar». Eu fui um deles.
Logo que a avaria foi consertada, continuamos a agoniante viagem até à foz do Geba.
Já se cheiravam às águas do Geba e das bolanhas, quando fomos sobrevoados por alguns aviões, que certamente vieram ao nosso encontro. Como estávamos perto da costa, asseguravam-se que a «valiosíssima» carga que o navio transportava chegava em boas condições, não fosse o diabo tecê-las.
Como muitos outros já haviam chegado um dia, também aquela abantesma, chegou a Bissau, tendo de ficar aproado no meio do Geba. E de imediato a «descarga» começou…
Fomos transportados para a Escola Primária “Teixeira Pinto”, próxima do depósito de água, no Pilão, e ali permanecemos uma semana. Já aqui contei este pormenor…
Depois, entregaram-nos a «ferramenta» nova (G3) e lá partimos rumo a Ingoré.
Era o momento ideal para terminar aqui esta estória, mas não o quero fazer sem evidenciar, mais uma vez, as miseráveis condições em fomos transportados naquele flutuante e famoso ferro velho, quase apodrecido… no qual cheguei a ir ver a casa das máquinas. Eram indescritíveis as condições de trabalho daquela gente.
Também tive a rara oportunidade de ver no mar, peixes voadores e o «mar chão» que nunca tinha experimentado! Que grandes e belos espectáculos!
O barco em viagem, rasgando as águas marítimas parecia deslizar, qual automóvel em tapete de alcatrão!
Um abraço aos tertulianos e colaboradores que muito prezo,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes
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Nota de M.R.:
(*) Vd. último poste da série em:
4 comentários:
Caro José Ferreira
Houve um momento aqui no blogue em que se estimulou que contássemos o que se chamou, e pode muito bem ter sido, 'o cruzeiro das nossas vidas'....
Pois então, aqui está o relato do teu! Revelas as precárias condições em que a generalidade da tropa foi transportada mas, de facto, não deixas também de referir, sinal de que não esqueceste, quanto te foi agradável esse deslizar sobre o mar chão e o espectáculo dos peixes voadores.
E já tiveste outro cruzeiro? Com melhores condições?
Um abraço
Hélder S.
Caro camarada,
Fiquei mais tranquilo com a leitura do seu poste: é que também NÃO ME LEMBRO DE NADA RELATIVAMENTE AO EMBARQUE (para Angola, no meu caso). Como é possível isto? Lembro-me de algumas coisas soltas da viagem, mas também não me lembro, absolutamente nada, do desembarque em Luanda.
Curioso isto.
Um abraço,
Carlos Cordeiro
Caro Helder:
Viva a capital do Sado!
Ja nao é a primeira vez que comentas os meus modestos post's. Agradeço.
Quanto aos cruzeiros, este foi demasiadamente negativamente incondicional.
Quanto aos peixes voadores, ou ao mar chão, hoje que nos interessa isso?! Será que tive a intenção de amenizar a dolorosa desiluaão pelas condições em que nos transportavam? Não, não, não!!!
Depois disso, nunca mais houve cruzeiros...
Caro Carlos Cordeiro;
Meu camarada...
É isso mesmo, havia certamente (e nós aprendemos isso) uma anestesia psicológica que nos fazia «voar» para outros sítios e «esquecer» aqueles onde estávamos e que devíamos gravar.
É uma espécie de estado de coma. E este, nunca mais vai acordar... vai morrer connosco!
Um abraço a todos,
J.M.Ferreira
É verdade, o tema da partida já foi aqui abordado quase até à exaustão. Mas acho que poderíamos ter milhares de versões, que todas seriam diferentes, mesmo que ligeiramente diferentes... Para muitos de nós, foi a viagem, o cruzeiro das nossas vidas... Marcou-nos a todos, porque íamos para a guerra, a quase oito mil quilómetros de distância...
O mar está nos nossos genes. Sempre que vejo, atracados no porto de Lisboa, os grandes paquetes de luxo que fazem cruzeiros, eu digo para mim mesmo: - Um dia ainda hei-de ir num destes...
O que mais retenho na memória é o cheiro do Niassa, um misto de cheiro a maresia, óleo de máquinas e vomitado...
Obrigado pela tua versão, que é única porque pessoal, ams transmissível...
Luís Graça
PS - A ponte Salazar estava no início de construção... Creio que começou a finais de 1962. Foi inaugurado em 6 de Agosto de 1966.
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