1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 1 de Fevereiro de 2010:
Meus caros camarigos editores
Espero que o Luís esteja já recomposto do aniversário!
É que são muitos anos já, e devem doer a fazer!!!!
Aqui vai um texto, que em certa medida foi inspirado pela leitura do texto do camarigo Torcato.
Como sempre fica à vossa disposição para arquivo na "cesta" secção, ou para publicação.
Depois acusem-me a recepção, por favor.
Com o meu abraço camarigo para todos
Joaquim Mexia Alves
QUE ESTOU EU AQUI A FAZER?
Que estou eu aqui a fazer?
Que calor é este tão intenso que sinto e que humidade é esta que se me agarra ao corpo de tal modo que tudo em que eu pego me fica colado às mãos, me fica colado à pele?
Há quanto tempo aqui estou, e quanto tempo falta ainda para me ir embora?
Devo fechar os olhos e sair daqui por uns momentos nas asas do pensamento que me leve a Monte Real, que me leve a Lisboa, ou é melhor ficar assim de olhos abertos, para não me deixar levar por ilusões?
Mas o que é que faço aqui?
Porque me chamam Alferes, porque vêm ter comigo pedindo-me autorização para tanta coisa?
O que eu queria era ser médico!
Não tem nada a ver com isto!
Mas como é que raio eu vim aqui parar?
Mas eu tinha como certo que só acontecia aos outros! Eu tinha como certo que a mim ninguém chamaria para isto?
Mas que raio de coisa é esta que me acontece?
Sim, está bem, eu tenho este corpo alto, mas ainda sou menino!
Como podem colocar em mim a responsabilidade das vidas daqueles homens todos?
Alguns até são casados, valha-me Deus, e com filhos!
E depois vêm de quando em vez pedir-me conselhos!
Então e o que é eu, menino estudante, (pouco é certo), muito pouco calejado da vida, posso dizer a cada um?
O problema é que nos olhos deles eu vejo que confiam em mim!
Valha-me Deus! Em mim!
Mas eu sou ainda um pouco menino de casa dos pais. O que sei eu da vida, a não ser gozar com a vida!
E depois isto de andar de arma ao ombro não tem nada de heróico!
Quando brincava às guerras isto tinha muito mais graça, não morria ninguém e os bons ganhavam sempre!
E quem é que raio são os bons?
Lembro-me até, (onde raio tinha eu a cabeça), de ter um certo orgulho em vir para a guerra!
Pois é, mas a verdade, verdadinha, é que afinal nesta coisa guerra morre gente, e também há gente que fica estropiada para o resto da vida, uns fisicamente e outros mentalmente.
Basta ver, já andam por cá alguns que não estão muito certos da cabeça!
Se calhar eu também não!
O que estará o meu pai a fazer agora? E a minha mãe? E os meus irmãos? E os meus amigos?
Nem sei já se é tempo de Verão ou de Inverno, com o calor que por aqui faz!
Apetecia-me adormecer e só acordar no fim disto tudo.
Mas gaita, se já em Lisboa eu dormia mal, quanto mais aqui com este calor e o estupor dos mosquitos que parecem hordas de japoneses em Pearl Harbor!
Voltarei vivo? E todo inteiro?
Porra, os olhos! Os olhos é que não! Um braço, sei lá, uma perna, mas os olhos não! Sem olhos não, mato-me!
Bem, já estás a divagar que nem um tonto!
Deixa-te lá dessas merdas que só te chateiam ainda mais e não resolvem a ponta dum corno!
Endireita-te, abre bem os olhos e dá uma ordem qualquer:
- Ó Festas, traz lá outra cerveja!!!
Monte Real, 1 de Fevereiro de 2010
Nota:
O Festas era o “barista” da messe de oficiais no Xitole.
As fotografias e o texto do Torcato, levaram-me a ir recordar as minhas fotografias.
Deparei com esta, tirada no Xitole, nos idos de 1972, e pus-me a falar com ela e ela comigo.
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 6 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5599: Blogues da Nossa Blogosfera (31): Tabanca do Centro (Joaquim Mexia Alves)
Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5748: Blogoterapia (143): Pensar em voz alta: Colonialismo... jamais... jamais... (Torcato Mendonça)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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16 comentários:
O que uma foto faz...
Boa noite Joaquim
Que texto do caraças...Mexe com um tipo. Como a gente consegue recordar coisas de há tanto tempo como tivessem acontecido no ano passado!? A responsabilidade de um Alferes de vinte e poucos anos era tremenda. E depois as fotografias ...Quando escrevi o meu livro de memórias da Guiné os testemunhos que mais me impressionaram foram de um Alferes.Que estimo muito. Contou-me em "off" - 40 anos depois - que numa operação se tinha enganado(por leitura errada do seu mapa)no local de uma emboscada.Percebeu mais tarde que esse engano de uns centos de metros terá poupada a vida de população (com mulheres e crianças) que passou no caminho onde o "meu" Alferes não estava. E convivia ainda de forma confusa - 4 décadas mais tarde - com essa noite fantasmagórica.Eu achei a história fantástica mas o "meu" Alferes tinha dificuldade em assumir o erro perante os seus pares... e pediu-me para não a publicar.
Como bem compreendo o Alto Comandante da Tabanca do Centro!
Parabéns pelo texto e um grande abraço do teu vizinho.
JERO
Camarigo Joaquim:
Já me transformaram em muita "coisa"...agora em Ninfa do Lis?
Mas as fotos, algumas, dialogam connosco; recordam momentos de felicidade ou tristeza e nós vamos por eles, por essas vivências de outrora, caminhando e recordando...a foto é sempre recordação, sempre passado.
Se bem me lembro, as de que falei, eram de recordações sofridas. Mas Camarigo de quantas mulheres é feita a Vida??? E nada mais.
Abraço Camarigo do Torcato
Caro Joaquim
Acertaste na "mosca". Aquilo que tu escreveste foi o que eu pensei "manga" de vezes, em especial, quando na primeira operação com os velhinhos (1 gr comb da CCAÇ2700, 3 gr comb da CCAÇ3491 e ainda 1 secção de milícias), me deixaram sozinho no mato, sem saber onde era o quartel, a mais de 10 km deste, em terra de ninguém, a noite a cair, a queimada que fizeramos a vir na minha direcção e eu a pensar o porquê? Eu era mesmo um menino de 21 anos, feitos 2 meses antes, e ali estava, em pleno mato a olhar envolta sem saber o caminho....Confesso que ao mesmo tempo que caminhava, julgando ir, mais ou menos, em direcção ao quartel, ía justamente pensando como tu: "Tão novo e estou perdido aqui. Ainda há pouco tempo passeava ma minha cidade, à vontade, sem crise e agora via-me perdido num lugar desconhecido, com um calor que abrasava e uma noite que me trazia uns cheiros desconhecidos e uns sons que me não inspiravam confiança".
Foi uma porra mas consegui alcançar sozinho o quartel e pela madrugada, quando as tropas se preparavam novamente para voltar ao mato à minha procura - convencidos que, possivelmente, eu tinha sido atingido pelo fogo e estaria morto - eis que me veêm surgir da orla da mata, em tronco nu - para verem que era um branco que se aproximava. Foi uma estupefacção! Cansado, sujo, do corta-mato e com uma íngua em cada ilharga, pelo esforço dispendido, mas vivo!
É verdade Joaquim eramos uns meninos que rapidamente tiveram de aprender a ser homens, até para conseguir comandar outros homens que, no meu caso, eram todos mais velhos do que eu, sendo que também muitos já eram casados e alguns já tinham filhos.
Foram tempos difíceis, em que um pouco mais de 2 anos da nossa juventude foram ali sacrificados.
O que tu me fizeste recordar. Caraças de seres humanos que nós somos. Sonhávamos naquele tempo e ainda hoje mantemos esses sonhos. como dizia o outro: "recordar é viver".
Um abraço do tamanho do Rio Corubalo
Luís Dias
É verdade Joaquim!
O que é que um menino pode dizer a outro mais menino, pois de certeza tinha menos um ano!
Pernitente e inquietante o teu questionar.
Quem falou ou se preocupou com esse tão angustiante drama?
Vamos aqui na nossa bela Tabanca, narrando as experiências desses meninos. Mas... alguém neste país de ABRIL tranvestido, falou sobre esses meninos?
Não! Até aqueles que julgando nos libertar, afundavam mais nas bolanhas e pantanos esses meninos! Sendo hoje os "correctores" desse passado, esperando a extinção de quem o mesmo lhes recorda.
Meninos!... Fomos e somos Honestos, para com a História que um dia nos julgará.
O abraço do tamanho daquele que muitos conhecemos "Cumbijã".
Mário Fitas
Caro 'Joquim'
Puseste-te a pensar e fizeste muito bem.
São estes pensamentos, expressos assim, 'em voz alta', onde cada um pode encontrar um pouco (ou muito, depende) de si mesmo que vão dando cada vez mais consistência a este trabalho colectivo do refazer da memória.
Nestas tuas reflexões há muito tema para 'trabalhos de casa', diria mesmo que há uma agenda bastante completa.
Um abraço
Hélder S.
Quando se olham fotografias,já bem"amarelecidas",estas conversas de entao,entre...meninos/homens (ou seriam monólogos?)nunca as vamos esquecer! ---"Mê Alferes,quando saí da terra para a tropa,e deixei a minha mulher e filhinha,botei o coracao dentro da bota.Tenho desde entao caminhado sobre ele.Sao já longas as passadas.E estas botas mê Alferes.....estas botas estao a arrebentar!" Entre meninos/velhos de hoje como seriam estes..."monólogos"? Um grande abraco.
àqueles que todos os dias se perguntavam
- mas que é que ando eu aqui a fazer?
àqueles que no desespero do cansaço e do medo ingenuamente imploravam a Deus um mina que os estoirasse antes do próximo passo.
àqueles que se estoiravam, eles próprios, por dentro e por fora, para que a terra continuasse a parir e o ol a fecundá-la.
Esta é dedicatória que vem no "Vindimas no Capim".
Afinal andávamos muitos a pensar e a pensar-se cheios de dúvidas, não é camarigo?
José Brás
Camarigo:
E agora Joaquim? E agora?
Ontem comentei levemente e deixei passar. Hoje, agora mesmo, em abertura do blogue em vicio de antes de sair e ao voltar tentar "ver". E "vi" - finalmente haviam muitos a pensar, a interrogar-se sobre a razão daquela guerra, sobre o porquê de ali estarem. Curiosamente ou talvez não até os que pensavam estar a defender a Pátria. Mas que raio logo a mim... e interrompem-me estudos ou só a vida...aqui estou. Ainda:
O medo de ficar estropiado,amputado,não vir igual á vista de outros...certamente acabar com ele se tal acontecesse não. Em homens de Fé, homens tementes a Deus essa solução final nunca se punha. A outros, a mim, pois era natural. A ti não Camarada e Amigo Joaquim, a ti não.
Abraço fraterno do Torcato
Os dados foram lançados no comentário acima e rolam...
Meus camarigos
Obrigado por rememorarem comigo.
Gosto de ser totalmente sincero e frontal convosco, sobretudo nestas coisas da guerra.
Se assim não for, de que me vale abrir aqui a minha vida, o meu coração, os meus pensamentos, as minhas recordações?
Só nesta verdade e frontalidade posso ir aliviando a memória dos tempos idos, que por acaso, nem foram assim tão maus como os de outros.
Então valha a verdade que, para mim, a questão da guerra nunca se colocou, porque segundo a educação que recebi, “a Pátria não se discute”, (entenda-se o que quero dizer), de tal modo que perguntava a mim mesmo nos idos já passados do Abril, que, se a Pátria em que naquela altura não me revia, precisasse de mim o que faria, e a resposta foi sempre a mesma, ou seja, Portugal é Portugal.
Isto para dizer que a pergunta, «O que estou aqui a fazer?», não se colocava tanto para mim na dúvida se ali devia estar ou não, mas sim na irrealidade que então se vivia na Metrópole sobre a guerra de África, quase como se fosse uma invenção qualquer do Estado, que não tinha correspondência no terreno.
Senti a mesma coisa quando voltei e em Lisboa via as pessoas viverem as suas vidas sem terem a mínima preocupação com o facto de o País estar em guerra e quando lhes chamava a atenção para isso, olharem para mim como quem olha para um “marciano” que não fala a sua, (deles), língua.
A pergunta, «O que estou aqui a fazer?», não tinha a ver com a justiça ou injustiça da guerra, mas sim com a estupidez da guerra em si, como aquela sensação que já descrevi quando pela primeira vez fui atacado e em que pensava admirado: Afinal há ali uns gajos que me querem matar??? Porque raio se eu nem os conheço!!!
Mas meus camarigos, a responsabilidade pesava nos ombros, em todos os sentidos.
Não só em relação aos homens que comandava, mas também em relação ao que a Pátria de mim pedia. Seria eu capaz?
E às vezes perguntava-me, (aquela fotografia é do inicio da comissão), quando houver uma emboscada dura como reagirei: será que fujo, será que me acobardo? O que dirão os homens de mim?
À medida que as recordações voltarem talvez aqui vá voltando e deixando um pouco de mim no passado.
Abraço camarigo a todos
Meu camarigo Torcato
Tens toda a razão mas nesses tempos Deus para mim não existia, ou melhor, não era fonte de vida para mim.
E vamos assim abrindo as memórias e despindo-nos do passado para melhor nos aceitarmos no presente.
Que interessante forma para nos lembrar, mais do que isso até, dizer aqueles que não saibam, ou deixar escrito para os que dizem não querer saber, que os homens que hoje escrevem neste espaço também foram meninos e ainda o eram, "filho de sua mãe" quando foram forçados a crescer.
Um abraço,
Belarmino Sardinha
Caro (permite-me) Camarigo
Porque comungo com praticamente tudo o que reflectiste no teu, no minimo, espantoso texto inicial e com, quase... quase... quase, tudo o que "autocomentaste" de seguida. atrevo-me a considerar tal ser merecedor duma celebração conjunta (quantas vezes comemoramos "coisas" bem menores).
Nesse sentido de muito bom grado aceitaria que "ordenasses ao Festas", que me trouxesse, também, uma cerveja.
Mas como, por óbvios motivos, ela não será, de momento, "bebível" no Xitole, o seja oportunamente, se estiveres de acordo, por exemplo em...
Monte Real.
Com um sincero Abraço "reflecto/recordativo"
Jorge Narciso
PS (entenda-se Post-Scriptum)
Permite-me que me dirija ao meu antecessor nestes comentários (Belarmino Sardinha) que sei, tal como eu, ter (ou ter sido) adoptado o Cadaval como sua segunda terra, para ver se encontrarmos forma de nos encontrarmos por lá um destes dias.
Ab.
Boa noite Joaquim,
Peço desculpa, mas tenho andado muito ocupada. Li o texto e fui ler fotografias, e posso dizer que neste momento nâo sei o que dizer sobre a leitura que fiz. Gostei? Não sei. Gosto deste blogue, mas às vezes aparecem textos, simples como o seu, mas que nos fazem pensar, nos obrigam a abrir um albúm e reviver o passado.
Cumprimentos
Filomena
Caro camarigo Jorge Narciso
Aqui estou em Monte Real, prontinho para a tal cerveja!
Vamos ter o 2º Encontro da Tabanca do Centro no dia 26 deste mês. Não queres vir?
Vai ao blogue http://tabancadocentro.blogspot.com/ e podes lá ver a noticia e copmo fazer.
Abraço e até lá
Caríssima Filomena, obrigado.
É isso mesmo que por aqui andamos a fazer «abrir um albúm e reviver o passado.»
Um abraço camarigo para si.
Caro Mexia Alves
Já tinha lido mas não consegui comentar na altura.
Gostei muito e já o voltei a ler mais duas ou três vezes.
Resumindo quem te vai conhecendo aos poucos como eu, só podia esperar este texto tão interior e cheiro de "sumo", finalizado com aquela desconsertante ordem dada.."Trás mais uma cerveja"
Na "operação bacalhau assado" em 26.02.2010 lá estarei para bebermos um copo.
Um abraço
Juvenal Amado
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