1. Os nossos Camaradas Eduardo Ferreira Campos (ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540 - Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra -, 1972/74) e o Manuel José Ribeiro Agostinho (ex-Soldado Radiotelefonista, Condutor Auto e Escriturário - QG/Bissau -, 1968/70), enviaram-nos mensagens, em 26 de Maio último, dando-nos conta de um dos mais recentes escândalos nacionais, que há muito os ex-Combatentes, conhecedores de diversas situações similares, vinham denunciando e a quem era dado, pouco ou nenhum crédito, em relação às urnas que deviam conter os restos mortais dos falecidos na Guerra do Ultramar, e que eram enviadas para o Continente cheias de pedras e areia, sem qualquer corpo, ou porque o mesmo pura e simplesmente foi pulverizado por engenhos explosivos, quer nas picadas, quer em combate, ou porque desapareceu num qualquer rio, ou bolanha, africano.
CORPOS DE PEDRA E AREIA?!
2. Mensagem do Eduardo Campos
Tinha interesse que fosse publicado, o mais rápido possível, esta notícia que veio publicada no Jornal de Notícias, hoje dia 26 de Maio de 2010.
Um abraço,
Eduardo Campos
3. Mensagem do Manuel José Ribeiro Agostinho
Acabei agora de ver esta notícia no “sapo.pt”. Deve ser uma situação idêntica à do Baptista e de muitas outras em que os corpos por lá ficaram.
Um abraço,
Ribeiro Agostinho
___________
Notas de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
20 de Maio de 2010 >
21 comentários:
Caros Eduardo Campos e Manuel Agostinho
Num debate na Televisão Portuguesa, possívelmente perante millhões de Portugueses sobre a identificação e transferência dos mortos de Guidage, Um sr. Coronel do Exército Português e escritorsobre problemas de Guerra disse:
"Quem sabe o que entregámos às familias?"
Em referência a uma viatura e seus ocupantes que no rebentamento de uma mina, apenas ficou uma peça da viatura.
Será que é algum desses?
Quem saberá? Os que mandaram meter na urna as pedras e a areia, os que soldaram a urna devem saber.
Aqui a responsabilidade e conhecimento, não é de uma pessoa só.
Se ninguém tiver a coragem de o dizer, as entidades competentes que investiguem.
Há concerteza algo escrito sobre o assunto.
Mário Fitas
Concordo com o Mário.
Mas, digo eu, se nem dos vivos este Estado quer saber, como irá tratar dos mortos ?
Ainda bem que esta prática (mórbida) vem à baila... Tratávamos os nossos mortos com indignidade... Nós, militares, o Exército como instituição, o Estado... (O Álvaro Basto já aqui descreveu, em tempos, como foram "tratados" os restos dos desgraçados mortos à canhoada no Quirafo, em Abril de 1972, na emboscada em que foi apanhado à unha o Baptista... Ele e o médico recusaram-se a fazer autópsias).
O que importava era "enterrar os mortos e cuidar dos vivos" (célebre frase atribuída ao Pombal, depois do Terramoto de Lisboa, de 1755)...
Afinal de contas, os que são "os restos mortais" de um herói ? Como fazer o luto de um familiar sem algo de tangível (a "urna", mesmo de chumbo, um objecto, uma peça de vestuário, um sapato...) que nos diga que está morto e não apenas desaparecido ?...
Acredito que, nalgumas circunstâncias como no Quirafo) não era fácil "identificar" os cadáveres, irreconhecíevis, carbonizados, mutilados... Esse problema continua pôr-se hoje en dia, em qualquer cenário de guerra, de catástrofe...
Mas, na época, tratava-se de uma grande indignidade, de uma grande hipocrisia, de um grande desprezo, afinal, pelos nossos mortos...
Dir-me-ão: Era já um prática "histórica" do exército...
Mas era bom que aparecesse, no nosso blogue, um "cangalheiro" militar a explicar como, quando e porquê se fazia a "marosca"...E por ordens de quem...
Na altura, as famílias também se resignavam, toda a gente desconfiava da "urna de chumbo", mas ninguém exigia a verdade, o relato circunstanciado da morte dos seus entes queridos (fosse por acidente, suicídio,
combate, doença...).
As famílias dos oficiais de carreira, mortos no ultramar, ainda poderiam, eventualmente (?), ter acesso ao reltório da autópsia, à certidão de óbito... Mas quantos médicos de medicina legal teria o Exército ? Muito poucos...
Dirão: não valia a pena procurar saber, esbarrávamos com um muro de silêncio... E se insistíssemos, podíamos ter chatice... Mas a cidadania começa sempre aqui e reforça-se quando o Estado é "cego, surdo e mudo"... E bruto!
Permito-me concordar com oq ue está escrito, mas também discordar em parte.
Parto do principio que o Estado infelizmente, não se preocupa muito com os cidadãos, tanto antes, como agora, pois se dantes nos tratavam mal, agora, (refiro-me aos combatentes), não nos tratam melhor.
Posto isto, devo dizer que as urnas sem os corpos é algo de muito reprovável com certeza, mas também sabemos que muitas famílias, não tendo uma urna para enterrar viviam na esperança de um "sebastianismo" que muitas vezes impedia essa família de se refazer e continuar a viver.
Sabemos também e sem dúvida, que dada a distância as urnas teriam sempre de estar fechadas e não poderiam ser reabertas, pelo que, essa prática, era "fácil" de realizar, mas também e como se diz em português, "longe da vista, longe do coração", pois acreditando as famílias que o seu ente querido estava sepultado, o luto feito, ficava a saudade, mas continuava a vida.
Ao levantarmos este problema, que é legitimo levantar sem dúvida, poderemos estar também a criar nalgumas famílias, se calhar ainda não totalmente refeitas, mães e pais, uma situação de terrível dúvida que poderá reabrir velhas feridas.
E aqui pergunto: Ganha-se alguma coisa com isso?
Com certeza que a história deve ser feita, mas todos sabemos que isso acontecia, já naquele tempo se sabia "à boca calada", mas o levantar-se agora esse problema não irá, digo eu, provocar mais dor do que alívio, mas ressentimento do que paz?
Eu tenho pessoalmente uma relação com a morte que não me incomoda, por força da fé que vivo, mas conheço casos de mães e pais que mesmo depois de décadas não conseguem ainda viver em paz total com a morte dos seus filhos.
Esta discussão não irá provocar a reabertura da ferida?
Meus camarigos
Há uns anos nos Açores, (eu estava lá), houve um acidente de avião em que morreram bastantes pessoas, que ficaram irreconhecíveis. Julgamos nós que as urnas que essas famílias sepultaram eram dos seus familiares?
Com isto não quero "branquear" aquela prática por parte do Estado de então, mas muito simplesmente chamar a atenção para o que acima digo.
Mas posso estar enganado, claro!
Um abraço camarigo para todos
Ainda em tempo.
Se não fosse possível recuperar o corpo, ou o que dele restasse, o que deveria dizer o Estado à família:
Não conseguimos corpo para a família enterrar!
Percebemos nós o que isso significa para uma família?
Mas por outro lado também não podiam dizer à família:
Olhem que a urna só tem pedras e areia!
Claro que não ponho de parte a vertente económica, ou seja, tudo era preparado na Metrópole e assim não se gastava dinheiro.
Mas nós sabemos e vimos urnas a serem embarcadas em Angola, Moçambique e Guiné!
Enfim, assunto para meditarmos, mas que para mim, continuo a dizer, e os psicólogos sabem isso bem, mais vale ter algo para sepultar que nada ter, o que mais uma vez afirmo, não justifica a prática de tal situação.
Mais um abraço camarigo para todos
Já vi que este assunto é, ou poderá ser no mínimo, fracturante!
Comecei um comentário, que este espaço suporta.
Em vez de o enviar em quequenos excertos, vou envia-lo aos editores em correio separado.
José Martins
Não vou comentar qualquer outro comentário anterior onde as razões políticas, como sempre, se sobrepõem aos aspectos morais e de verticalidade do ser humano.
Lembro apenas o que já referi e volto a fazê-lo, que essa foi e é a verdadeira razão pela qual me interessou aderir a este blogue, trazer ou ajudar a lembrar como se passaram as coisas nos diferentes anos e períodos em que quase todos têem razão nas suas intervenções.
Embora não dê importância ao que acontece depois da morte, ou ao que acontece e ao que se passa quando ela chega, é enquanto vivo que me importa e interessa, respeito quem assim não pensa, tal como respeito as celebrações que se fazem de acordo com as crenças ou princípios de cada um, não posso é aceitar a não devolução de um corpo à família, e menos ainda, não encontro palavras suficientemente apropriadas para definir o acontecimento narrado.
Quando um corpo não é encontrado, há formas de o dizer, como havia quando se impunha e obrigava a ir combater em defesa da pátria.
Talvez não chegue o simples facto de ficar escrito apenas aqui neste espaço, o tempo encarrega-se de o fazer desaparecer. Não chega trazerem-se ou motivarem-se os filhos, outras formas existem mais apropriadas e foram já abordadas, haja essa vontade e então sim, acredito este conhecimento passe para os vindouros.
BSardinha
Este assunto é fracturante e inquietante. Devemos ser inconformados e apurar a verdade, mas por vezes, impõem-se que nos trilhos que sigamos haja um pouco de ponderação e sensatez. Por isso estou completamente de acordo com as afirmações do Mexia Alves. Mexer em determinados passados, que não tragam contributo palpável ao ser humano, os perfumes que podem ser exalados, podem ser repugnantes e sufocam…
Eu ainda não estava mobilizado para a Guiné, quando tombou em combate em Angola, um tio meu, praticamente com a minha idade, fomos companheiros, amigos, irmãos. Já eu estava na Guiné, quando na minha terra se realizou o funeral do meu tio, passados quase seis meses após a sua morte…
É lógico, que nos mandaram uma urna, que aceitamos como contendo os seus restos mortais…Dá-nos algum conforto ir mexer nesse passado?! Só masoquismo…
O lançar estes temas para debate esclarece-se algo? É dito algo que não fosse sabido já? Contribui para a tranquilidade e sossego das famílias que perderam os seus filhos em combate ….? Mais não digo, porque é doloroso.
José Corceiro
Neste caso houve troca de urnas.
Um camarada do PelCnhRec 1197, disse ao Correio da Manhã (28/5/2010) que o "Bufarda", nome pelo que era conhecido, morreu oito dias depois do acidente no Hospital.
Viu o corpo no caixão.
Até onde estavam preparados os militares, do serviço militar obrigatório, para lidar com casos destes?
José Martins
Meus caro camarigos
Por vezes escrevemos e não dizemos tudo, ou melhor, não conseguimos exprimir aquilo que queremos dizer.
A minha intervenção aqui e sobre este assunto não tem para mim qualquer intenção política de defesa daqueles, ou condenação destes, ou pelo menos eu não a vejo nem sinto como tal.
A minha intenção clara, julgo eu, é chamar a atenção para algo que eu já vivi e tenho vivido algumas, bastantes vezes, ao acompanhar pessoas que sofreram e sofrem a perda de entes queridos.
Muitas, nem mesmo quando têm uma urna para sepultar, conseguem ultrapassar esses momentos, quanto mais quando não têm nada “físico” para se despedirem.
Isso justifica o acontecido, ou as situações narradas?
Não, não justifica, e eu obviamente condeno esses factos.
Mas isso não significa também que, (para além da “maldade” de encurtar custos, ou outras razões negativas que possam ter existido), não tente entender o que aconteceu.
Se os funerais aconteciam, mesmo com as urnas “vazias” de corpos, então não estava em causa um qualquer “escondimento” das mortes em guerra.
Lembro-me bem na Serra do Pilar, antes de ir para a Guiné, ter acompanhado um ou dois desses funerais e perceber a dor, mas também o alívio de ser dada sepultura ao ente querido.
Sabemos e aqui no blogue se bem me lembro há testemunhos disso, que havia urnas embarcadas em África para serem sepultadas na Metrópole.
Então porquê esta situação?
Não seriam situações extremas de impossibilidade de recuperação dos corpos? Afogamentos, minas, operações de difícil acesso, sei lá eu!
Volto a dizer que não estou a querer desculpar ninguém, mas a pensar que há situações limite, impossíveis de resolver.
E aqui volto á minha pergunta: Como se diz a uma família que o filho morreu na guerra mas o corpo não pode ser recuperado?
Justifica fazer o funeral de uma urna vazia?
Não sei, mas sei que a maior parte das famílias se não tiver conhecimento disso, prefere enterrar algo físico do que não ter nada para enterrar e desculpem-me a brutalidade das palavras.
O que eu quero dizer também, é que, ao escrutinarmos esta situação iremos colocar dúvidas em pessoas que na sua memória já “descansaram” da morte dos seus filhos e corremos o risco de reabrir as feridas que já estavam minimamente saradas, exumando campas, etc, etc.
Estarei a exagerar? Não sei.
“Ganhamos” alguma coisa com isso? Não sei também, mas acho que não, visto que essa realidade é uma dado adquirido que ninguém desmente.
Alguém acredita que na brutalidade da guerra do Vietnam, por exemplo, todas as urnas que de lá vieram continham os restos mortais dos soldados americanos lá tombados?
Pelas razões que acima indico, (tenho as famílias no pensamento), não entrarei em nenhuma polémica acerca deste assunto.
Um abraço camarigo para todos.
Caros Camaradas
Pelo que julgo saber,os militares mortos em combate ou por doença só eram transladados para a Metrópole se a família assim o desejasse. Para isso tinha que pagar a transladação.
Tanto a TAP como as Companhias de Navegação cobravam esse serviço. Era como despachar uma mala de porão com roupas. Se isto é verdade,quem vai indemnizar esta
família pois comprou gato por lebre.
No caso do meu tio, a fanília não pagou nada, para os restos mortais regressarem à sua terra natal, outros casos não sei, não vou entrar em alaridos...
José Corceiro
Não reajam a quente...
Correi da manhã, hoje 28 de Maio:
Peniche
“Vi o corpo no caixão e selei-o”
Camarada de pelotão está incrédulo com urna vazia.
Ernesto Ferreira certificou-se de que era do soldado Tertuliano Henriques.
João Mendes
Caros camaradas!
A construção da nossa identidade preservando a auto-estima para um desenvolvimento equilibrado, é importante e decisivo sermos acolhidos nas nossas intenções de forma profundamente compreendidas.
Não vamos levantar dramas!
Não será o tema fracturante se:
Sendo um direito adquirido e fazendo parte da nossa complexa estrutura cultural, o cultivar o culto dos mortos e fazermos o nosso luto.
Nunca um combatente poderia ficar no campo de batalha. As suas cinzas devem ser entregues aqueles a quem estão ligados.
É cultura Portuguesa, caso contrário não teriamos ninguém nos Jerónimos ou no Panteão.
Mas na impossibilidade de isso acontecer?
Deveria sim haver outra forma e tratamento?!
É uma verdade.
Deveria haver responsabilidades assumidas.
É bom falarmos deste tema! Mas com calma, infelizmente aconteceram vários mas não foi norma julgo eu.
Inquirir responsabilidades e resolver os problemas.
Gostei da forma como os comentários do Luís, do Mexia Alves e do Corceiro, trataram o assunto.
Outros virão talvez. Mas como já referi é um problema díficil mas não o cosideremos fracturante.
Para toda a tabanca um abraço,
Mário Fitas
Isto é terrível para ser verdade mas é. Para a familia deve ter sido horrível.
Infelizmente não deverá ser caso único, a família não verificou quando a urna chegou?
Eu pergunto isto, porque aqui para o norte em tempos em que Angola a luta era mais dura, houve a trasladação do corpo de um militar falecido, o pai exigiu q abertura do caixão e verificou que não era o corpo do filho mas simo corpo dum tropa negro, o caso foi abafado de imediato e tratou-se de desfazer o engano.
Mas penso que este caso n~
ao será único.
Paz à sua alma e que Deus ajude a familia a superar este facto.
Uma das riquezas deste espaço, é e terá de continuar a ser, a pluralidade de opiniões dos seus intervenientes e se isso não acontecer, terá uma morte anunciada.
Para mim este assunto ou outros, podem e devem serem sempre discutidos, por muitas feridas que abram, porque se assim não for, estamos a "camuflar" a história.
Em tempos mencionei num post, um acontecimento trágico com a morte de um companheiro em Cadique.
Por falta de urnas foi o mesmo transportado para Cufar, tendo eu acompanhado toda esta operação.
Chegados a Cufar deparamos que também não existiam urnas, tendo o corpo ficado numa arrecadação.
Existiu o cuidado de juntar ao corpo a "chapa" onde constava os elementos de identificação e por muito que nos custasse regressamos a Cadique e nada mais soubemos sobre o assunto.
Depois de regressar da Guiné, quase de imediato visitei o local onde o mesmo, digo eu (supostamente) está sepultado e sempre que passo na localidade faço questão de parar no cemitério local.
Não tendo responsabilidade alguma, ainda hoje me sinto culpado ter deixado o corpo na arrecadação á espera de uma urna.
PS. Se a memória não me atraiçoa, o António Graça Abreu, em comentário a este meu post, parece que falou que vinham de Bissau a Cufar, alguém tipo cangalheiro. Verdade?
Quem sabe se não será um ponto de partida para sabermos mais sobre estas macabras histórias.
Eduardo Campos
Honorável Luís Graça o estado (somos todos nós) não é "cego, surdo, mudo e bruto" mas sim aqueles que falam e agem em nome do estado.
Bom fim de semana e votos de muita saúde para todos nós.
Amilcar Dias (pagamico)
Caros Eduardo Campos e Manuel Agostinho
Não encontro ninguém que esteja mais de acordo do que eu, com o lema que os assuntos devem ser todos discutidos para esclarecimento da verdade, ou de alguma forma contribuir para o discernimento da consciência humana. É um direito que nos assiste, mas isto implica muita responsabilidade, não é porque acontece um ou outro caso, QUE NÃO DEVIAM ACONTECER, (pois conheço um pouco da natureza humana e por isso, sem hipocrisias a tolero) que se dá ênfase à notícia do jornal como se fosse um inédito. Não devemos “camuflar” a História é verdade, mas não a devemos alimentar com ruídos, NESTES CASOS, porque Ela (história) estrutura-se em factos verídicos e serenos.
É, ou não verdade, que o assunto em análise já muitos anos que é conhecido, eu já mais de quarenta anos que ouço relatar casos, como os da notícia do jornal (que saíram noutros jornais) que deu origem ao Poste! Em que medida isto vem esclarecer a verdade, se já era conhecida? É só para alimentar REACÇÕES, ou estão convencidos que vão apurar responsabilidades?
Este espaço tanto pode ter morte anunciada por elitismo, ou anarquismo de opiniões, mas estou certo que o nosso timoneiro não lhe dará rumos nesses sentidos.
Para mim, não há feridas que se possam abrir com os assuntos a discutir, eu amo é o rigor e sensatez nos assuntos a discutir, tolerando as outras opiniões, porque é o rigor que vai alimentar o facto histórico.
Um abraço para todos
José Corceiro
Escrevi no meu Diário da Guiné em
"Cufar, 4 de Janeiro de 1974
Ontem de manhã acordei com mais um tremendo “embrulhanço”, os rebentamentos uns atrás dos outros. Era a estrada Cadique-Jemberém. Ainda na cama pensei: “Lá estão mais pobres desgraçados a morrer!” Era verdade, dois soldados mortos do batalhão de Cadique, os corpos destroçados. Vieram para Cufar e, como de costume, aqui foram metidos nas urnas junto com um fuzileiro que esperava por caixão há dois dias e já cheirava mal. O cangalheiro vestiu o fato de madeira e chumbo aos três. Já ninguém estranha muito, estamos habituados, a vida continua. Mas porque diabo é que o rodopio dos mortos e feridos passa sempre por Cufar?...
Tenho constatado que em muitos de nós existe um prazer sádico, mórbido em ver mortos e feridos. Faço parte do grupo. Há qualquer coisa de macabro no ser humano, talvez uma silenciosa nostalgia da morte que nos aguarda a todos.
Ontem, ao fim da tarde, quando o cangalheiro metia os três rapazes nos caixões, ao ar livre, no largo no centro de Cufar, juntaram-se à volta umas dezenas de mirones, brancos e negros. Um furriel pegou numa G 3 e ameaçou disparar sobre os curiosos se não desaparecessem imediatamente. Assisti a tudo, parado, insensível como um boneco de gesso, a cinquenta metros de distância."
Abraço,
António Graça de Abreu
Temos tendência para reagir "emocionalmente" (isto é, com o coração, não com a cabeça), quando se toca nos nossos mortos...
Mas vamos por partes: também aqui deve respeitar-se o princípio "in dubio pro reo", isto é, o princípio da presunção de inocência...
Na maior parte das situações de morte no TO da Guiné (por combate, minas & armadilhas, acidente, doença...), os corpos recuperavam-se e eram identificáveis (mesmo mutilados, como eu próprio recuperei ou observei alguns)...
Nunca assisti à preparação de nenhum corpo para efeito de exéquias... Levei no entanto à sua tabanca natal o primeiro morto da CCAÇ 12, o Iero Jaló... Não me lembro se foi em caixão de chumbo. Sei que foi transportado, em Unimog, em caixão de madeira, coberto com a bandeira nacional, e que teve direito a honras militares (o que na altura me chocou)... A fanmília acabou por fazer-lhe um enterro segundo os usos e costumes locais (tradição africana e muçulmana)...
A preparação do morto - se bem me lembro - deve ter sido entregue aos seus próprios camaradas, fulas...
No caso dos militares metropolitanos, vinha sempre um cangalheiro de Bissau... Não sei exactamente a que serviço pertencia.
Não há razões para pensar que as urnas, com os nossos mortos, transportadas para a metrópole, viessem por sistema cheias de areia e pedras... Casos como o que foi relatado nos jornais, passado no concelho de Peniche, deve ter sido raros ou excepcionais... No caso de afogamentos, quando não havia corpo, o militar era dado como "desaparecido"... Em caso do corpo ser levado pelo IN (houve casos), ou o militar ser feito prisioneiro, creio que se usava a expressão "retido pelo IN"... Devia haver legislação ou regulamentação clara sobre estas diversas situações... Talvez alguém nos possa esclarecer...
Em todo o caso o Exército (que deve ser visto como um pessoa de bem, como uma instituição) bem poderia fazer um relato mais circunstanciado e digno relativamente à morte dos nossos combatentes, em vez se limitar a mandar, à família, o telegrama seco e brutal com a funesta notícia... Não sei como procede hoje. Mas, durante a guerra colonial, não havia essa sensibilidade, essa cultura... (É a minha percepção, também me assaltou a dúvida quando eu próprio, jovem jornalista, fiz a reportagem do 1º morto da guerra colonial na Guiné, natural da minha terra, e por sinal, meu primo).
Caro Luís
Já andamos a reagir com a cabeça há mais de 40 anos.
Eu fiz exéquias funebres (se é que se deve dizer isso)em Catió, com poucos dias de Guiné. Talvez por ser o mais periquito mandaram-me para a capela com 2 ou 3 soldados. Creio que eram de um soldado e de um furriel (aqui peço ajuda ao Condeço) já não me lembro. Mas isso marcou-me e muito. Um ano e pouco mais tarde, morre um soldado do meu pelotão. Foi evacuado para o HM e morre 3 dias depois. Reuni todas os pertences dele que entreguei não sei a quem para serem enviados para a família. Li que está enterrado num cemitério de Setúbal. Pelo meio dos acontecimentos, morre um soldado do pelotão Daimler, que seguiu connosco.
Por favor, caro Luís, não podemos ser todos frios e serenos, reagindo como queres demonstrar que o devemos ser. Deixa-nos deitar para fora enquanto podemos. Certos ou errados nas reações, elas são o efeito do que passamos e vivemos por perto. Mal dita a Pátria que não chora os seus mortos.
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