Guiné-Bissau > Bissau > Planta da cidade, no período pós-independência.... Assinalada a azul a então projectada Av Unidade Guiné-Cabo Verde.
Imagem: A.Marques Lopes / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2005).
1. Texto do António Rosinha (*), com data de 1 do corrente:
Quando um país africano adquiria a independência, dizia-se - pensava eu que por brincadeira - que a primeira obra que o seu presidente mandava fazer era uma autoestrada desde o Palácio ao Aeroporto...para fugir do Golpe de Estado.
Luís Cabral tambem mandou construir essa estrada, mas não para fugir, mas para modernizar a Capital.
Uma pequena observação: Todos os portugueses, brancos pretos ou mestiços quer fossem de origem angolana ou caboverdeana ou outros, sempre consideraram que eram mais competentes e com mais capacidade para desenvolver os futuros países africanos, porque os caputos, tugas, eram muito tacanhos sem ideias.
E diziam como faziam se fossem eles a mandar. (Embora, em geral também dizia-se que o Salazar era um atraso, logo que ele se fosse, modernizávamos Portugal.)
Com o que vi na Guiné ao Luis Cabral e ministros, e o que sei que se faz em Angola, após a guerra destes anos todos, tinham razão. É tudo em grande. (E, nós com Sócrates e Cavaco e Guterres, tambem fizemos SCUT e vamos ter TGV e pinturas rupestres.)
Uma metamorfose acontecia e deu-se também comigo: Nós, os rurais do nosso país pequeno e atrasado, quando embarcávamos com carta de chamada para as Áfricas, desinibíamo-nos quando chegávamos à Madeira e tirávamos a gravata e o fatito feito à medida no mestre alfaiate da vilória. E começava uma identificação com os portugueses locais. Fim da observação.
Depois deste àparte, tenho a dizer que Luís Cabral procedia com a desenvoltura e determinação e vistas largas, exactamente dessa ideia que transmitiam os jovens portugueses/africanos, que mais tarde vi aparecerem no PAIGC, MPLA e FRELIMO. Grandes projectos, investimentos enormes, até uma fábrica de automóveis...!
Ora acontece que me calhou a mim, e fiz por isso, fazer a topografia da Avenida UNIDADE GUINÉ BISSAU-CABOVERDE, já tinha começado 2 anos antes e estava atrasadíssima e o dinheiro previsto já estava quase todo gasto, empresta(dado) pela Holanda / CEE, em 1976/7. O projecto, embora de um engenheiro português, era grandioso e bonito.
Mal iniciei o meu trabalho, fui logo avisado pelos pedreiros, operadores de máquinas, mecânicos e ajudantes, da TECNIL, guineenses com muitos anos de casa, que já vinham das estradas de Gabu/Pitche/Buruntuma, Bambadinca/Xime e ruas de Bissau, que aquela estrada nunca seria terminada, porque fora derrubado um grande Poilão Sagrado, para passar a estrada, e não fora feita a cerimónia exigida pelos Homens Grandes para pedir ao Irã a devida permissão.
Acredite-se no destino ou em coincidências, passado um ano, Luís Cabral é derrubado, a TECNIL estava falida, a estrada nem a meio ia, quando já tinha passado o prazo de contrato, e o dinheiro andaria diluído por qualquer lado, e só iria ser reiniciada 3 anos depois.
E no dia em que os carros de combate provocam o derrube de Luís Cabral, desfazem com as lagartas de ferro, os primeiros quilómetros preparados para receber o primeiro asfalto.
E, o que ia ser a Av Unidade Guiné-Caboverde, passou a ser (provisóriamente) Av 14 de Novembro. E o sonho de Luís Cabral e de Amílcar, além de não ser concretizado, aconteceu naquele dia a sensação que Luís foi abandonado e esquecido e vilipendiado, sem reação do PAIGC da Praia nem de Cuba ou da Rússia, com a mesma tranquilidade, com que a vida continuou quando a 20 de Janeiro de 1973, morreu Amílcar. Não apareceu nenhum aliado abertamente a apoiá-lo. Tudo calado.
"Será que tudo estava previsto pelos segundos planos do PAIGC (PAICV) e por Cuba e URSS, e que naquela luta tremenda na Guiné não era a sua libertação um fim em si mas apenas e só um meio para atingir outro fim mais importante"? E tudo nas costas destes dois irmãos?
Fiz este intervalo sobre a construção da estrada ex-UNIDADE GUINÉ-CABOVERDE, porque não quero mentir a mim mesmo, e às certezas que adquiri, e o povo que passava naquela estrada durante muitos anos, me ia abrindo os olhos. Enquanto se trabalhava na faixa direita, circulava-se pela esquerda e vice-versa. Peões e carros.
Atenção que jamais acharei justo o processo político que os dois irmãos escolheram. Apenas acho que a utopia e o entusiasmo deles foram pura e simplesmente usados, enquanto úteis...e em seguida a Guiné e os dois irmãos ficaram entregues a eles próprios, o seu papel estava terminado.
Continuando com a construção da estrada...
Em 1983 há um novo financiamento para mais uma parte da estrada. O dinheiro vem da CEE.
Estou novamente eu, pela Soares da Costa que fica com a massa falida da TECNIL, e durante uns meses constrói-se entre Chapa-Bissau e aeroporto de uma maneira incompleta (sem cumprir certos pormenores do projecto). Aí já se via que a profecia dos homens grandes se estava cumprindo. Mesmo certas ligações, por exemplo aos quartéis de Brá, eram eliminadas.
Só é retomada e terminada a construção em 1990 com a eliminação definitiva da parte mais interessante do projecto. É eliminada uma enorme rotunda que abragia o jardim do Alto Crim, lindíssimo, que até me doeu destrui-lo, a mim e aos estudantes que lá iam estudar à sombra de tarde e à noite quando havia luz. Sobre esse jardim hei-de escrever um poste de propósito. Hoje, está lá o parlamento. construido pelos chineses.
Essa imensa rotunda ia também englobar a área do que mais tarde foi o mercado do Bandim.
Portanto ao eliminar essa enorme rotunda, que logicamente valorizava imenso um lugar que era considerado nobre, cumpriu-se mesmo o que diziam os homens grandes: "Nunca se vai construir a Av Unidade GUINÉ BISSAU-CABOVERDE".
Quem terminou conforme se pôde, foi a China Taiwan com um salto em flic-flac de Nino Vieira, que passou por cima da China comunista a troco de um voto na ONU.
Acompanhei, pelas Obras Públicas, esses chineses na conclusão daquele projecto inacabado. Uns tempos antes a China comunista tinha oferecido um lindo campo de futebol à cidade de Bissau para 35.000 espectadores. Colaborei nos arranjos exteriores.
Como esta Avenida/estrada me permitiu ver muitos pormenos do que de mau e sem sentido foi a colonização europeia em África, que Portugal "arremedou", com as próprias improvisações, e me permitiu ver como alguns portugueses de origem africana provocaram uma guerra tão grande num país tão pequeno, para outros fins que não os interesses desse mesmo país, gostaria de ter ocasião de enviar mais uns postes a partir desta avenida que para mim será intimamente a minha Avenida.
Digo sempre: O esforço e sacríficio dos que cumprimos a ordem de Salazar, entre outras coisas serviu para adiar o assassinato de Amílcar Cabral.
Um abraço,
Antº Rosinha
P.S. - Espero não ofender ninguém, ao dizer o que depreendo de tudo o que vi, e que me deixam dúvidas umas vezes, certezas outras vezes. Mas sem qualquer complexo não me calo nem tapo os ouvidos. Passaram-se coisas flagrantes demais, como algumas que já disse, para ficarmos calados.
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Nota de L.G.:
(*) Vd. poste anterior desta série > 1 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6916: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (1): Quando o Partido dizia que logo que colon vai embora a gente não trabalha mais
9 comentários:
Um outro Poilão de Brá, ainda mais tristemente famoso, é referido no blogue Africa-ana, da professora portuguesa, cooperante, Ana Cláudia:
"Na foto, o Poilão de Brá, marco da 'guerra do 7 de Junho'. A Junta Militar estava antes do Poilão de Brá (no sentido do aeroporto) e as forças leais do também então Presidente Nino Vieira estavam depois do Poilão (no sentido do centro da cidade).
"Os guineenses não querem mais marcos de guerra, não querem mais guerra.
Ao fim de todos estes anos parece que a estabilidade de que se fala e deseja todos os anos está sempre a ser adiada para um futuro incerto. Hoje foi adiada por mais algum tempo".
Fonte: Africa-ana > 2 de Março de 2009 > Não mais poilão de Brá >
http://afric-ana.blogspot.com/2009/03/nao-mais-poilao-de-bra.html
Peço desculpa. O blogue, que se publica desde 2007, chama-se Afric-ana
É apresentada pela Ana Cláudia nestes termos:
"ESTE NÃO É SÓ UM BLOG SOBRE MIM, É SOBRETUDO UM BLOG SOBRE A GUINÉ-BISSAU, SOBRE A VIDA EM BISSAU, SOBRE UMA PARTE DE ÁFRICA. LEVOU TEMPO A AMADURECER A IDEIA DE CRIAR UM BLOG SOBRE ESTA EXPERIÊNCIA, VIVO EM BISSAU DESDE OUTUBRO DE 2004, MAS AQUI ESTÁ. PARA A MINHA FAMÍLIA, PARA OS MEUS AMIGOS E PARA TODOS OS QUE QUEIRAM CONHECER, VER, APRENDER, VISITAR: AQUI ESTÁ A GUINÉ-BISSAU".
Ver o perfil da autora (que é professora na Faculdade de Direito de Bissau, e vê o quotidiano de Bissau com a sensibilidade própria de uma mulher que está lá há 6 anos a viver e a trabalhar), aqui:
http://www.blogger.com/profile/17301175361455904465
Não acredito que alguém te desdiga só porque é uma abordagem pessoal, marcada por uma observação no terreno que ia muito para além do trabalho técnico e se adentrava nas avenidas, nas ruas e nas picadas de uma realidade sobre o poder que está atrás do poder.
Gostei muito camarada, do que dizes e do sentir que se adivinha na forma de o dizeres
Um abraço
José Brás
"Mal iniciei o meu trabalho, fui logo avisado pelos pedreiros... que aquela estrada nunca seria terminada, porque fora derrubado um grande Poilão Sagrado, para passar a estrada, e não fora feita a cerimónia exigida pelos Homens Grandes para pedir ao Irã a devida permissão."
E mesmo assim,mais Velho Rosinha,tal como diriam os americanos " In order to do the business we have to know the culture "
Casos das nossas crencas e crendices, em promiscuidade com a governacao e com os projectos de infraestruturacao do pais,sao por ai umas tantas... Uma delas e por sinal a da dita auto estrada que bem descreve no seu texto...
Pelas mesmas razoes o grande poilao do outrora estadio Sarmento Rodrigues,hoje Lino Correia,continua no mesmo local intacto, apesar de algumas tentacoes, em ideias e projectos ligados ao aproveitamento do perimetro para a construcao de um parque de estacionamento adstrito ao estadio...
E quem ousa tocar no grande Poilao Sagrado ?
Logo apos o 14 de Novembro, alertado pelos "Homis Garandis"
da etnia Papel, grupo a que pertence, a praca Honorio Barreto, hoje Che Gevarra, a escassos metros da casa de minha nascenca,sob ordens expresas de Nino Vieira, foi completamente virado ao avesso, em busca de uma dita canoa, que de acordo com a etnia Papel teria sido enterrado no local, ainda durante a "guerra de pacificacao"...
Uma canoa que simbolizava a discordia entre os guineenses, pelo que se justificava a sua remocao em nome da irmandade e da reconciliacao...
Mas pelos vistos, canoas da discordia por ai enterrados e o que nao deve faltar, por essa nossa Guine...
Que venham memorias dessas,mais Velho Rosinha!
Nelson Herbert
USA
Nelson, acompanhei, sem nunca ter compreendido completamente o problema, essa história da canoa.
Durante muito tempo isso foi motivo de muita conversa emBissau.
Claro que havia outras crendices na voz do povo, respeitantes ao próprio Nino e até a Spínola.
A minha maior pena é nunca ter aprendido nenhum dialeto e mesmo crioulo tenho um ouvido muito duro, para entender melhor certas coisas.
As alcunhas das pessoas era das coisas mais curiosas e interessantíssimas dos guineenses, e dos africanos em geral.
O que houve de feitiçaria ou como se queira chamar, durante a luta, tudo se falava em Bissau.
Mas eu próprio tive que pagar porcos e aguardente para fazer um trabalho no aeroporto.
Penso que os papeis eram os mais complicados com essas cerimónias.
Para informação do MAIS VELHO e demais leitores, a mesma Avenida foi rebaptizada pelo actual governo, logo a seguir as mortes do presidente Nino e do chefe do estado maior Tagme. Agora chama-se Av. dos Combatentes da liberdade da Pátria.
Neste momento, pode-se ver novamente, como nos tempos do A. Rosinha, topógrafos com os seus instrumentos ao longo da avenida. Está em curso um novo projecto de melhoramento e de modernização financiado, desta vez e para variar, pela BOAD (banco oeste africano de desenvolvimento).
Esta avenida deve ser muito grande para as nossas possibilidades, é o que explica estes trabalhos recorrentes que nunca acabam.
Quanto as nossas crenças e crendices, como diz o Nelson, sao historias que não cabem neste blogue. Nao há uma unica obra que se faça sem que haja a(s) sua(s) justificações locais. Há tempos, os Papeis de Biombo não queriam uma estrada em asfalto projectada até Ondam, alegando a presença dos Irãs. Hoje, perante as dificuldades de transporte de e para Bissau, sobretudo na época das chuvas, reclamam esta mesma estrada a todos os politicos que visitam a região. Se calhar os Irãs também mudaram de opinião.
Cherno Baldé
Cherno AB
Cherno, trabalhei em estradas em Angola, no Brasil na Madeira e em toda, a Guiné.
Mas essa estrada, que nunca mais vai cumprir o projecto original, pois no Alto Crim já tem a Assembleia da República e o edificio dos irmãos Mandingas, será sempre uma obra impossível de acabar conforme o projecto original.
E, como passei tantos anos nessa obra, que penso que ainda existe o projecto encadernado nas Obras Públicas em livro grande, penso escrever partir de cada quilómetro dessa estrada um post neste blog, se houver espaço, sobre as guerra de libertação da Guiné e de Angola, pois uma implicou a outra.
E isso, aprendi e compreendi, no tempo que passei aí.
Aguardo um abraço, do Sana Jana, ou pelo menos saber que vive com saúde.
Cumprimentos
Tcherno e Mais Velho Rosinha
Ja que falamos de estradas e de vias, uma curiosidade minha...
Houve num periodo bem anterior ao golpe de 14 de Novembro, um projecto de uma Avenida Marginal, que ligaria a actual marginal ( a do Porto de Bissau e da Pindjiguiti)...a um troco vindo dos lados de Cumere e do outro a conhecida Estrada da Sacor...
Portanto uma marginal ao longo do braco do Geba que entra por Bissau...ornamentada por palmares...
Uma obra se sonho, diga-se !
Previa-se na altura o desaparecimento do actual quartel da Marinha, que alberga por seu lado a Radio Nacional e das Oficinas Navais...permitindo uma vista do actual monumento 3 de Agosto ou Pindjiguiti, do rio !
O Rosinha chegou a conhecer esse projecto ? E quanto ao Tcheno lembra-se dessa hipotese ter sido levantada em Bissau ?
Estava eu na altura no Liceu Kwame Nkrumah !
Mantenhas
Nelson Herbert
USA
Herbert, nesse tempo o Cherno devia ser bem novo, mas tambem deve saber disso, porque a Guiné nem precisa jornal.
O Luis Cabral, pouco antes do golpe, visitava o andamento dos trabalhos da Tecnil e uma das conversas era acabar rápido porque já tinha projecto e financiamento para atravessar de Antula até Cumere com uma barragem-ponte, no canal do Ipernal.
Mas mais que isso não.
Mas eu já disse que os "portugueses" do PAIGC, MPLA e FRELIMO, pensavam à grande.
Portanto Herbert, nem duvides que devia ser isso tudo mais tarde ou mais cedo.
Mas sobre esse período ainda quero falar muito.
Claro que muitas coisas vais dizer "este velho está enganado".
Só queria ter aprendido um idioma qualquer mas não fui capaz!
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