sábado, 12 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9028: Blogpoesia (167): K3, de Nuno Dempster: excerto: "Capitão, meu capitão, não nos deixes sós!"


Guiné >  Região do Oio > Carta de Farim  (1/50000) > 1954 > Pormenor: localização de Saliquinhedim / K3, entre o Olossato e Farim (Não confundir com o verdadeiro Olossato, que fica a sudoeste de Farim, e que está localizado na carta de Binta)


Fonte:© Humberto Reis / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2006). Todos os direitos reservados




Excerto (*)  do longo poema K3, publicado em livro, pelo nosso camarada Nuno Dempster (**). Capa do livro, reproduzida em cima. 




(...) Não encontrar ninguém
endurece-me a vista,
é um sinal de alarme
que acorda o cérebro
e ilumina o lugar onde se arquivam
os ficheiros secretos,


até que no poema eu tente
a redenção,
ou o vírus da morte
vá destruindo as células
e não haja memória.


Talvez porque os ficheiros
se mostrem
com todo o seu espólio irrevogável,
eu tenha descoberto
tristeza semelhante
no cemitério nazi de La Cambe,
tantos anos passados sobre o dia D:


uma mulher sozinha, de joelhos,
rezava no vazio, vasto campo
de lápides deitadas entre a relva
com nomes de ninguém
que vi gravados, data a data,


inúmeros
com dezoito anos e um com dezassete,
vencidos por quem foi vencido,
como é uso passar-se
com inocentes mandados para a morte,


para aquele fornilho
que ergeu como um vulcão a GMC,
velha da Grande Guerra,


eram quinze soldados
e o capitão
arrancado a um liceu,
e os soldados, a cerros e vielas
de cidades decrépitas,
todos subiram no ar,
os corpos de lava acesa,


e caíram no meu peito, recordo
o fragor que deixaram
e que ficou guardado,
para que hoje o livrasse,


entre o estupor das caras e o vaivém
dos helicópteros,
as macas e o pousar das moscas
que sorviam o sangue
e, por cima dos gemidos,
aquele rouquejar:
"Água, água, traz-me água",
era a sede final das veias secas,


e alguns de nós acorriam com cantis,
sem escutar mais nada,
do que a voz dos pulmões arruinados,


na insegurança do ar que respirávamos,
as nuvens de mosquitos em redor,
e o cheiro das acácias e explosivos
vomitados de angústia,


éramos todos órfãos:


Senhor, dizei uma só palavra
e a minha vida será salva,


e o senhor não dizia nada,
e todos insistiam em crer nele,


um talismã que trazem ao peito,
e que segura o mundo,
com as suas fronteiras proibidas,
embora não a morte,
a morte constitui-se
em limite vital a quem maneja
os deuses tripartidos, e os singelos
como é hoje a Senhora de Fátima,
com os três pastorinhos de alumínio
à entrada do barco,


que de nada serviram aos que foram cuspidos
em sangue incandescente
e que depois caíram entre fumo e pó,


"Capitão, meu capitão, não nos deixes sós",
ouvi no poema alguém.


Djariato não é mais a princesa
e chora com as outras raparigas negras
quando nos vê passar,
e os velhos respeitados têm um ar grave
como se fossem áugures no fim da validade. (...)


In: Nuno Dempster - K3. Lisboa: & etc. 2011, pp. 36-39 (Reproduzido com a devida vénia. O livro está disponível nas livrarias. Preço de capa: 12 €)


_______________


Notas do editor:


(*) Último poste desta série > 1 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8978: Blogpoesia (166): Azar... (Manuel Maia)





(**) Sobre o nosso camarada Nuno Dempster [ foto à esquerda, retirada da sua página no Facebook]:


(i) nasceu em São Miguel, Açores (donde é originária a família paterna, enquanto a família materna é de Amarante)


 (ii) mora em Viseu; 


(iii) É engenheiro técnico agrícola (trabalhou em cooperativas, é hoje empresário); 


 (iv) tem três livros de poesia publicados: Londres, Dispersão, K3; 


(v) é um dos nossos quatro poetas (juntamente com o  Cristovão de Aguiar, o José Brás o Manuel Bastos) que estão representados na Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial


 (vi) pertence à nossa Tabanca Grande desde 9/2/2011.


O Nuno Dempster foi Fur Mil SAM, ou seja, vaguemestre, da CCAÇ 1792 (1967/69), a companhia dos lenços azuis, que andou, pela região do Oio,  por Farim e Saliquinhedim/K3 [, "durante seis meses, ainda o aquartelamento era semi-subterrâneo",]    mas também pela região de Tombali (Mampatá, Colibuía e Aldeia Formosa)... Pertenceu ao BCAÇ 1933 (Nova Lamego, Bissau, S. Domingos). 


A CCAÇ 1792 teve 3 comandantes:  


- Cap Mil Art Antóno Manuel Conceição Henriques (que ficaria sem as pernas numa mina A/C); 
-  Cap Art Ricardo António Tavares Antunes Rei, 
- Cap Inf Rui Manuel Gomes Mendonça. 


A companhia foi mobilizada pelo RI 15, tendo partido para a Guiné em 28 de Outubro de 1967 e regressado à Metrópole em 20/8/1969.


Sobre estes comandantes, o Nuno Demspster escreveu o seguinte, em mails que trocámos em tempos:


(...) Recordei, no link que enviaste, o capitão Rei, de carreira, que teve a ideia dos lenços e que substituiu o capitão miliciano, cujo nome já não recordo, um homem lúcido, vítima de um fornilho, na estrada de Farim, uma das passagens mais intensas do poema [, Cap Mil Art António Manuel Conceição Henriques]. Isso sucedeu dentro dos seis primeiros meses do início, quando estávamos no K3. Até sairmos de lá, o aquartelamento ficou entregue ao alferes miliciano, segundo comandante, bem como em Mampatá e Colibuia, penso. O Cap [Art  Ricardo António Tavares Antunes] Rei chegou já no tempo de Quebo. (...)

3 comentários:

Carlos Vinhal disse...

Para os camaradas menos familiarizados com a zona do Oio, aquele Olossato no cruzamento da estrada Mansabá / Farim, não é a povoação e quartel do Olossato. Estes ficam na Carta de Binta, coordenadas aproximadas: 12º 19' N; 15º 20' W
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

Luís Graça disse...

Tens toda a razão, Carlos, e foi oportuna a tua chamada de atenção... Vou corrigir o mapa e a legdenda... Há muitos topónimos iguais na Guiné, por exemplo, Madina...

Sabes, é o que faz um gajo ser "cotivia" e levantar-se muito cedo para "trabalhar na horta comunitária"...Já fui "mocho", quando era mais novo, acho que estou a perder qualidades...

O blogue tem que ser "regado" e "cultivado" todos os dias... Nós, os editores, temos essa obrigação, que muitas vezes passa despercebida aos olhos dos leitores, que julgam que isto é tudo automático... Daí os inevitáveis lapsos e gralhas. Felizmente, estavas atento...(mas a verdade é que esta zona também fazia parte do teu "chão", a região do Oio).

Um bom S. Martinho, um bom fim de semana, para ti e para a tua Dina... Come uma castanha por mim...que eu bebo um copo de água pé por ti, aqui no Reguengo Grande da Lourinhã onde vou comemorar o São Martinho. Estou só à espera da "minha motorisat"... Ab. Luis

Cherno Baldé disse...

Caro Nuno e Luis Graca,

Antes de mais quero felicitar o Nuno pela publicacao do seu livro de poemas que, se bem me lembro, em tempos ja nos tinha sido anunciado.

Sobre o poema ora apresentado, com odor de sangue e de morte, duas coisas espalmadas em frases muito sentidas me chamaram a atencao e motivam este meu comentario como que a testemunhar os traumas que persistem, também, na memoria de quem viveu no teatro de uma guerra violenta e indesejada, a semelhanca dos fumadores passivos.

Uma vez, trouxeram ao aquartelamento de Fajonquito, provavelmente para evacuacao, um grupo de civis, trabalhadores de uma casa comercial, que tinham sido feridos no rebentamento de uma mina A/C na estrada de Cambaju.

Entre os feridos,
havia um que de forma insiste emitia este mesmo pedido de cortar a respiracao de quem ouvia e que ainda hoje parece que estou a ouvi-lo: "Agua, agua, quero agua!!!".

Na altura, nao tinha compreendido que, no meio de tanta gente, ninguém se tivesse oferecido a ajudar o engracado do homem que, de forma ininterrupta, continuou até a madrugada, a cortar o silencio da noite, com o seu grito lancinante. De manha, quando voltamos ao quartel, era um silencio completo. Das duas uma, ou sucumbira ou tinha sido evacuado.

A segunda observacao, menos dramatica, tem a ver com o que se parece ser uma forte ligacao, entre os Comandantes das companhias (os Capitaes) e os elementos constituintes destas mesmas companhias que tenho constatado amiude nos relatos de antigos soldados e mais uma vez se expressa numa frase do poema: "Capitao, meu Capitao, nao nos deixes sos".

Numa recente troca de mails, o meu amigo e camarada de Fajonquito, José Cortes, da companhia "Deixos-poisar" disse-me que um dos acontecimentos mais marcantes da sua companhia durante a comissao tinha sido a perda do seu Comandante, Cap. Patrocinio, a quem tinham muita estima.

E algumas semanas antes da chegada desta companhia, a outra que vinham susbstituir tinha perdido, num acidente, o seu comandante, Cap. Figueiredo. Esta perda foi tao brutal e dolorosa que ainda hoje, ao que parece, nao se reencontraram em parte alguma, tendo perdido o fio a meada, aglutinador, ao contrario de outras cujos encontros se tornaram habituais.

Estas observacoes me levam a uma tese (questionamento)que lanco a discussao de todos e em especial ao meu irmao de Contuboel, Luis Graca na qualidade de antigo combatente e Sociologo:

A forma (modelo de base)como as companhias (quadriculas?) eram formadas, estruturadas criava lacos de uniao (ver cumplicidade) tao fortes que, por sua vez recriavam, no conjunto do pessoal, uma especie de confianca/dependencia exclusiva e quase paternal nos comandantes como unica forma de alcancar reais sucessos no teatro de operacoes ou de, pelo menos, conseguir sair do inevitavel sem grandes prejuizos.


Cherno Baldé