Amigo Carlos
Envio-te mais um troço de “Viagem…”que, como sempre, foca e retrata o mais fielmente possível a realidade de momentos e pormenores talvez subjectivos, que não foram e julgo não serão esquecidos, neste caso talvez não tanto pelo acontecimento em si mas pelo insólito (?) das envolventes. Costuma dizer-se que …”não lembra (va) ao diabo”? Pois neste caso… pelo visto, lembrou!
Como julgo que andas por “férias aos bocados” como eu, cá te mando o meu abraço com amizade e votos de saúde e bem-estar.
Para a Rapaziada atabancada um outro abraço e tudo de bom.
Luís Faria
Vista parcial do Quartel de Bula
Viagem à volta das minhas memórias (55)
Bula - guerra das minas (5)
Um jogo de “apanhadinha”
Creio que nenhum dos “Eleitos” gostava e muito menos queria, abandonar a procura de uma mina e dá-la como detonada ou perdida sem esgotar, em seu entender, todas as hipóteses viáveis de a encontrar e neutralizar. Muitas vezes acontecia andar-se tempos infindos à procura de um desses engenhos deslocalizado, situação potencialmente perigosa que obrigava a redobrados cuidados e domínio sobre emoções. Nesse espaço de tempo podia ser relativamente fácil acontecerem estados de espírito que iam do desânimo ao eufórico. A meu ver, nestas e noutras situações o autocontrolo e descanso eram essenciais na ajuda à prevenção do desastre.
Disse no (P9850 de 4 de Maio) …Nos ”cú de boi” era bom tomarem-se estas precauções preventivas, eu tomava-as, pois uma das coisas passíveis de acontecer e que não queria, seria por exemplo, exasperado pelo esforço e ao mesmo tempo contente por ter conseguido encontrá-la e levantá-la, agarrar na mina e “fungá-la” no chão ou no caixote de recolha acompanhada talvez dum “cabrona f.d.p.” ainda por cima sem antes a neutralizar, ou pinchar em cima dela a chamar-lhe nomes feios, dar-lhe uma biqueirada à guarda-redes… exagero o que digo ?… pois será, mas aconteceu!
Estávamos ao que me parece recordar, já para finais do campo quando num jogo de “apanhadinha” andavam uma “italiana” fugida e escondida e atrás dela procurando-a sem descanso e resultado, um Furriel “Eleito” que ia gastando o tempo, esgotando a paciência e julgo que a serenidade também. Expressões caserneiras na certa iam sendo sibiladas, maneira fácil e normal de aliviar alguma tensão acumulada, enquanto a busca continuava e se ia prolongando pelo tempo.
A dada altura é bem audível a quem trabalhava nas proximidades, manifestações de entusiasmo e regozijo fazendo com que “vizinhos” como eu desviassem o olhar e atenção para o que se estava a passar e lhe visse na mão a “italiana” finalmente apanhada e a expressão de contentamento vitorioso e de “dever cumprido” estampada no rosto.
Sol de pouca dura para este amante da bola, escalabitano e por isso mesmo alcunhado de Santarém, já que de imediato e surpreendentemente, atira a mina ao ar e acompanhado de algo como um “cabrona” bem sonoro, desfere-lhe uma biqueirada à guarda-redes!
O “BUMM …” é em simultâneo e o Santarém cai por terra.
A mina era de sopro, plástica e não teria sido neutralizada . A pouca sorte ajudou, dadas e a meu ver , as poucas (?) probabilidades de acertar no percutor, como julguei ter acontecido. Ninguém mais se feriu, a não ser psicologicamente.
Ajudo a levá-lo para a estrada para receber os primeiros cuidados médicos. A perna estraçalhada daquele jeito não é bom nem fácil de se ver. Os odores misturam-se e as moscas vindas do nada e atraídas aparecem como que a querer coreografar pela negativa mais uma tragédia em cena.
Lívido e calmo pelo menos aparentemente, não se lhe ouve praticamente um queixume, um gemido. A dada altura diz com serenidade e com um meio sorriso que recordo, como que aceitando sem revolta o resultado de um acto da sua e só sua responsabilidade(?!):
(quase sic) “…nunca mais vou poder jogar futebol!...”
Interveniente no drama e talvez emocionado perante o espectáculo, o Enfermeiro pareceu-me hesitar na procura do melhor sitio na perna onde espetar a agulha para administrar a injecção (morfina?) e julgando que ele estava com receio de causar dor(?) falo-lhe, à minha maneira, mais ou menos assim:
- Espete em qualquer sitio… ele não vai sentir nada!
É evacuado com destino ao aquartelamento donde seguirá para Bissau. Acompanho-o na ambulância, o que virá a influenciar e alterar o meu dia-a-dia durante tempo e levará a fazer-me uma pergunta que até hoje continua, e na certa continuará, sem resposta! Talvez me venha a referir a este assunto mais tarde, a ver vamos!
Nunca mais soube nada deste homem de têmpera, espero que a vida lhe tenha sorrido e que possa ter dado e ainda dar umas biqueiradas na bola, jogo de que ele gostava!
Luís Faria
Foto: © Victor Garcia (2009). Todos os direitos reservados.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 5 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10117: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (54): Bula - A guerra das minas (4) - Imprevistos
10 comentários:
O uso muito intenso das minas era prática corrente. Além disso, a Natureza alterava-se rapidamente e as "referências" perdiam-se. Depois eram os "erros humanos" que continuam a ser a causa mais frequente de acidente. Há uma questão a pôr: ficou ferido em combate ou por acidente. Neste caso, o acidente será a qualificação para o sucedido. Mas, se o Santarém tivesse accionado a mina ao detectá-la seria ainda um acidente ou um ferimento em combate?
Há quem diga que o sapador só se engana três vezes: a primeira, a última e a única...
Um Ab.
António J. P. Costa
Dizes bem, Luis:
Estados de espirito que iam do desânimo ao eufórico.
Eram o resultado das tensões, da responsabilidade ansiada pelo encontro com as "cabronas", da antecipação do êxito que, neste como em outros casos, terá custado caro a quem se sentia aliviar, a libertar-se da angústia da demora, quando mais se pode perder as defesas. Porra!
Um abraço
JD
Olha Luís: o Vilas Boas da Cart 6250 de Mampatá, foi visto, numa dessas cenas "irreais",entre a exaustão de tanto procurar e o desespero de nada encontrar, saltando sem norte, enquanto proferia caralhadas, no local onde julgava tê-las «plantado».
Um abração
Carvalho de Mampatá
Meus amigos
A grande maioria da Rapaziada que andou pelo mato da guerra,viveu pela certa situações que contadas mais parecerão, a quem por elas não passou,exercício de ficção destinado a exagerar,direi até exacerbar o que por lá a nossa geração penou.
Creio que muitos momentos desses ainda hoje estão guardados, com esse receio,com receio que cheire a gabarolice,mentira ou algo do género.Conheço alguns casos e acho que ´so farão bem contar,expor essas realidades. Ficamos mais leves!
Um abraço
Luis Faria
P.S. já agora diz-me Carvalho:quem esteve com o Vilas Boas,o Anjo-da-guarda ou o diabo?!
Lembro-me perfeitamente.
Era o meu grupo que estava de guarda, na estrada e sei que na sequência da frase que disse acerca de nunca mais poder jogar futebol, deitou-se para trás, caiu em si e disse: «pobre da minha mãe»!...Muitas coisas me fizeram comover na Guiné! Esta foi uma delas!
Aquele abraço do tamanho do mundo.
Jorge Fontinha
Meu caro Luis Faria.
Camarada.
Estarás recordado que contigo troquei correspondência a propósito de também eu ter estado em Bula, de Fevereiro a Agosto de 69.
Este teu texto fala do Santarém. Um homem da minha terra.
Será que tu, ou ou Jorge Fontinha podem fazer um esforço para recordar o nome dele?
É que dessa forma podia procurá-lo.
Se conseguires tens o meu email no blog podes escrever-me.
Um abraço.
Caro Armando
Grato pela tua disponibilidade em tentares encontrar este Camarada e amigo.
Já é tarde,infelizmente.Receebi há momentos informação do seu falecimento a par do testemunho de uma sua acção,para mim heróica e que desconhecia,nesse mesmo campo de minas.
Paz à sua alma
Luis Faria
Perguntas-me Luís quem esteve com o Fur.Vilas Boas, naquela hora. Respondo-te que, felizmente, o Diabo nunca quis nada com ele. A propósito, ele não veio este ano ao nosso convívio...quero pensar que foi por compromissos familiares inadiáveis.
Um abração
Carvalho de mampatá
Por e-mail, já tive oportunidade de dizer ao Luis Faria quanto lamentava que fosse tarde de mais para encontrar o "Santarém" e como compreendia que choque que para ele representou a notícia.
Fica também aqui este meu testemunho.
armando pires
Caro Luís,
Quantas vezes o erro impensável causou dor e consternação?
Neste caso, o Santarém viveu muitos anos. Ao menos que tenha tido alguma qualidade de vida.
Em camaradagem e humanidade, é importante realçar, tu e os teus camaradas também fostes vítimas inocentes, testemunhas por perto daquele acto irreflectido.
Que Deus tenha o Santarém em seu regaço.
Abraço amigo,
José Câmara
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