sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10274: Notas de leitura (392): "África, Frente e Verso", por Urbano Bettencourt (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 22 de Junho de 2012:

Queridos amigos,
Já tínhamos José Martins Garcia, Álamo Oliveira e Cristóvão Aguiar, como contributos açorianos de primeira água para a literatura da guerra colonial.
Faz todo o sentido realçar esta “antologia” organizada de recordações que vão dos tempos de guerra à quase atualidade, Urbano Bettencourt será muito bem vindo ao nosso blogue, sente-se neste livro que ainda há muita coisa para contar, em poesia ou narrativa ou até mesmo notas avulsas, há que saudar mais esta achega açoriana, tão singular.

Um abraço do
Mário


África, frente e verso, por Urbano Bettencourt

Beja Santos

Autor de cerca de dúzia e meia de títulos relacionados com poesia, narrativa e ensaio, muito centrado no estudo das literaturas insulares, Urbano Bettencourt esteve na Guiné nos últimos anos da guerra, uma Guiné que ele foi polvilhando de referências em diferentes publicações, de 1972 à quase atualidade, e que agora decidiu agregar sob o título “África, frente e verso” (Publiçor, 2012). E, na verdade, sai um retrato acabado, atravessado por uma espessa melancolia, uma saudade por vezes descontrolada e muitos apontamentos sobre a dor e a morte. E há também o júbilo quando a guerra termina e ele assiste a esse termo no próprio teatro de operações. Como regista no poema intitulado “Situação”: “aqui nasceram os desastres/ os remotos e côncavos desastres/ do tempo fronteira violada/ aqui em maio se escreveu partida/ pátria aventura/ uma rosa vermelha em cada boca/ aqui também em maio se escreveu/ morte mágoa vértice de saudade”.

Dirá igualmente no poema intitulado “13 de junho de 1974”: “quebrado o espanto/ o medo o ódio a mágoa-mor/ as espingardas floriram cravos/ na madrugada dum tempo a vir”. Porque não houve logo a paz depois do 25 de Abril, como ele relatará no texto “(im)próprio de Maio”: “No 1º de Maio de 1974, a época seca aproximava-se angustiadamente do fim na Guiné-Bissau. As buganvílias floresciam sob uma intensa camada de poeira alaranjada. E não havia cravos. À noite, o PAIGC lançou um ataque maciço de artilharia contra Bissorã, cobrando-nos com juros altos o facto de ter sido através da sua rádio oficial que, durante o dia 25 de Abril, fôramos sabendo notícias da revolução em Lisboa. O nosso 25 de Abril só chegaria, aliás a 13 de Junho. Nesse dia, uma unidade de combate do PAIGC apresentou-se na pista de aviação, sob um rigoroso aparato militar que daria lugar ao convívio com a população e com a tropa portuguesa e a africana que combatia do lado português. Era o reencontro de um povo consigo mesmo. E descobríamos, enfim, que o inimigo, esse outro de cada um de nós, tinha um rosto e um corpo tangível, era possível fitarmo-nos diretamente, sem o filtro do ódio e da raiva, sem a mira interposta das Kalashes e das G3. Nesse dia 13, Cabá Santiago (comandante de uma companhia de milícia pró-portuguesas) deixou-se fotografar ao lado do seu homólogo do PAIGC e de alguns combatentes. Deveria haver nesta foto mais alguns sorrisos, para lá de um ou outro esboço que parece morto à nascença e em contraste com as fotos em que militares, combatentes e população se misturam em convivência? Talvez, mas este é o ponto de vista (o meu) de quem, naquele momento, via a história a partir de um terceiro ângulo, apesar de tudo já em distanciação, afinal, esta pose que não disfarça algum constrangimento era já um prenúncio do que estava para acontecer. O Cabá seria assassinado após a independência, um dos muitos e muitos guineenses que tiveram o mesmo destino”.

Ler “África, frente e verso” obriga a uma saudável ginástica de saltar entre a vivência contada praticamente em direto (são os poemas e textos escritos durante a guerra) onde se fala da raiva, da mágoa e do cansaço, do nosso querido amor que não veio até à guerra, da noite de natal passada lá num ermo (o natal escorre de saudade pelos olhos do soldado/ agarrado à breda remuniciada), o tempo pasmado, do rebentar das bombas, o registo dos mortos, por exemplo; muito mais tarde, reconstrói-se esta ou aquela cena do quotidiano da guerra, por exemplo, um patrulhamento, a distribuição das rações, a revista do armamento e então um grupo parte dentro da noite fechada a chapinhar na lama, como o autor recorda: “E eis-te de novo na lama, arrastas-te agora através da bolanha com cheiro a água estagnada e enfrentas a única imbatível força aérea dos mosquitos, o lodo sobe até aos joelhos, suga-te as botas com os seus braços e ventosas de polvo, quando o sol se empinar há de secar a lama e caminharás dentro de umas calças de adobe, mas isso virá mais tarde”; e há a permanente memória dilacerada, que tem cheiros, sons, o amargor das perdas irreparáveis e quanto mais irreparáveis são encaradas as perdas dilaceram mais fundo, neste caso o autor lembra o Jaime Sousa que era amigo do Marques, o Marques andava inquieto, o Sousa procurava contemporizar e subitamente uma flagelação alterou tudo, um amigo partiu na devastação: “De súbito há um estrondo violento e demasiado próximo, os estilhaços e o cascalho provocam um ruído de chuva na superfície dos bidões, uma nuvem áspera passa pela pele, sem dar tempo de proteger os olhos e os ouvidos, vozes dispersas ecoam no interior do brusco nevoeiro morno. Ao aproximar-se, o Sousa sentiu o cheiro forte a terra fresca e a pólvora. E quando conseguiu romper o círculo humano que se formara, pôde ver a imensa cratera aberta pela granada. A lanterna do enfermeiro projeta um clarão trémulo sobre formas irreais. Um pouco à frente, o Marques, estendido no chão, pernas desfeitas, o ventre rasgado e a exposto ao pasmo dos vivos. Tudo acabava ali, sem glória nem dignidade, mesmo a de um espaço de recato onde cada um pudesse acompanhar o Marques nessa velada antes da última viagem. Eles têm 20 anos e continuam imóveis, suspensos de uma palavra que os arranque a essa zona de névoas movediças em que flutuam. A madrugada vai longa. Os restos do Marques estão embrulhados num pedaço de lona, à espera que ao primeiro clarão do dia o piquete venha buscá-los e os leve para a companhia. Aqui e ali, ainda o sussurro de conversas arrastadas”.

O escritor assume que há recordações esvaídas, corpos difusos, esqueceram-se os sobrevivos. Mas o tempo africano, dentre deste grande espaço de esquecimento, mantém-se firme nos sentidos, como ele recorda o bafo que o envolveu quando chegou a Bissalanca, com águas paradas, humidade, terra encharcada, lama salobra, é este o íntimo cheiro de África que se irá guardar para lá de tudo, “mesmo quando a memória dos lugares, dos corpos e do sangue se for diluindo na espessura dos dias”. Não terá sido por acaso que ele escreveu “remuniciar o tempo”, são palpitações, estados de alma muito pouco serenos, nunca mais se esqueceram aquelas chuvas e tornados, os caminhos lodosos, há uma vincada lembrança de quem eles eram, irreverentes e até lúbricos, como ele regista: “Tinham 20 anos e alguns séculos,/ conheciam as artes do fogo/ um léxico elementar aliterante sem cotação/ nas bancas onde se contabilizam passados/ e memórias: / coronha, culatra, cunhete,/ cabaço, catota, e outras que teriam aqui voz e praça,/ não fora o decoro que o poema adota”.

Tem aqui sido escrito vezes sem conta que estes sexagenários estão a sair do silêncio e a desatar as línguas. Algumas das melhores peças literárias têm conhecido publicação desde a viragem do século. Isto para augurar que há muito a esperar ainda de escritores como Urbano Bettencourt, eles poderão ainda vir a surpreender-nos com outras memórias de África, outros contributos valiosos que ajudem a triunfar esta lusofonia sem barreiras que se herdou de uma guerra colonial onde já não é necessário mentir, como mentíamos nos nossos aerogramas.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10258: Notas de leitura (391): A Identidade Cultural do Povo Balanta, de Padre Salvatori Cammilleri (Mário Beja Santos)

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