sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10297: Blogpoesia (197): O trabalho, por António Peres, poeta popular (José Colaço)


1. Mensagem do nosso camarada e amigo José Colaço:

De: José Colaço [ josebcolaco@gmail.com]

Data: 19 de Agosto de 2012 18:31

Assunto: O trabalho


Caro Luís Graça:

Versos de um poeta popular,  quase analfabeto,  e que já não faz parte dos vivos. Luís, sei que adoras a poesia popular, ou não fosses tu filho de um poeta popular. Ao organizar uns arquivos, encontrei estes versos de um tio da minha esposa e meu tio por afinidade, António Peres.  Trata-se de um poema dedicado ao 1º de Maio de 1988: O trabalho.

O que mais me surpreende nos versos é que retratam, de modo simples e verdadeiro,  o seu passado como trabalhador no seu (revoltado) título, que é meu.  

2. Blogpoesia > O trabalho, por António Peres

I

Tanto que eu trabalhei
Para este nosso Portugal,
Só agora reparei
Quem trabalha pouco vale.

II

Comecei logo em criança
A trabalhar para aprender,
Hoje o que me resta de esperança
É trabalhar sem poder.

III

Trabalhei na agricultura,
Mesmo sem ser cultivado,
Agarrado a um arado
A romper a terra dura.

IV

Trabalhei na construção,
Mesmo sem ser construtor,
A largar tanto suor
Hoje não tenho habitação.

V

Trabalhei para tantas escolas,
Mesmo sem saber escrever,
Trabalhei para grandes hotéis
Mas nunca lá fui comer.

VI

Trabalhei para auto-estradas,
Para pontes e pontões,
Trabalhei para passearem
Tantos,  tantos cidadões.

VII

Eu trabalhei para barragens
Sem ter nada para regar,
Trabalhei para tantas docas
Sem ter barcos para navegar.

VIII

Trabalhei para aeroportos,
Sem nunca andar de avião,
Tanto que eu trabalhei,
Fazendo sondagens ao chão.


IX

Trabalhei para tanta fábrica,
Mesmo sem ser fabricante,
Trabalhei em tanto lado,
O trabalho era volante.

X

Hoje sinto-me cansado,
Ando suspenso por pontos,
Porque já fui reformado
E recebo treze contos.

XI

Hoje quero e não posso,
Mas nunca dou voz de fraco,
Quem anda a comer o nosso
É o grupo do Cavaco.

Autor: António Peres

2. Comentário de L.G.:

Obrigado, Zé. Muitos camaradas serão capazes de se identificar com o conteúdo e a forma destas quadras populares do teu tio António Peres.  É a história, singela, resumida, em 11 quadras, de uma vida, a de um trabalhador português do séc XX... Temos uma ideia romântica do trabalho que dignifica, que é fonte de realização, que é feito com alegria, que reabilita, que regenera, que sublima, que liberta, que é via de mobilidade social...

O tanas, trabalhar no campo, trabalhar nas minas, trabalhar nas pescas, trabalhar nas fábricas, é duro, sempre foi  duro... E está longe de ser socialmente valorizado numa sociedade como a nossa em que o trabalho é maldição e punição... O sucesso rápido e o enriquecimento fácil são os valores dominantes... No fundo os portugueses, ou melhor dizendo, a nossa elite dirigente tem, sempre teve, uma profunda repulsa pela trabalho manual e pelo povo que trabalha... e que faz as guerras (Releia-se esse ainda atual texto poético do jovem  Eça de Queirós, esse belíssimo panegírico,  sobre o povo português, que ele escreveu em editorial 10 de janeiro de 1867 em editorial do "Distrito de Évora""Há no mundo uma raça de homens com instintos sagrados e luminosos, com divinas bondades do coração, com uma inteligência serena e lúcida, com dedicações profundas, cheias de amor pelo trabalho e de adoração pelo bem, que sofrem, que se lamentam em vão. Estes homens são o Povo. Estes homens estão sob o peso de calor e de sol, transidos pelas chuvas, roídos de frio, descalços, mal nutridos, lavram a terra, revolvem-na, gastam a sua vida, a sua força, para criar o pão, o alimento de todos. Estes são o Povo, e são os que nos alimentam. (...) Estes homens, nos tempos de lutas e crises, tomam as velhas armas da Pátria, e vão, dormindo mal, com marchas terríveis, à neve, à chuva, ao frio, nos calores pesados, combater e morrer longe dos filhos e das mães, sem ventura, esquecidos, para que nós conservemos o nosso descanso opulento. Estes homens são o Povo, e são os que nos defendem"...).

Enfim, temos aqui um tema que dá(va) pano para mangas... Para mais,  em tempo de férias e sobretudo de gravíssima crise económica e social, visível por (quase) toda a parte. Mas aqui, em Candoz, é preciso fazar a "poda verde", que a vindima pode ser daqui a um mês, se o tempo ajudar o lavrador que nunca tem férias... (As uvas andam atrasadas 10 dias...). Um alfa bravo para os leitores do blogue, quer trabalhem ou não.

PS - E a propósitos de férias, fica o povo a saber que o nosso editor-sempre-de-serviço, Carlos Vinhal, vai  uns dias descansar, fora de casa, que ele e a Dina bem merecem... Eis a sua missiva de hoje: "Caros camaradas: Vou passar uns dias de férias por aqui próximo, fora de casa, mas não tão longe que em pouco tempo não esteja junto da minha mãe se houver algum problema. Queria pedir-vos o favor de publicardes os aniversários que faltam, 25, 27 e 28 de Agosto. Devo estar de volta pelo fim do mês, princípio de Setembro, dependendo da disposição e da vontade de regressar ao doce lar. Abraço. Carlos"...  Fica descansado, Carlos. A gente desdobra-se. Volta bem e em forma. No final do mês também eu regresso a Lisboa. LG
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Nota do editor

Último poste da série > 4 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10227: Blogpoesia (196): Na Grande Rota Caminho do Atlântico (GR11 - E9), a Praia do Paimogo da minha infância... (Luís Graça)

10 comentários:

Luís Graça disse...

Reparem nas "representações sociais" do trabalho....contidas nos nossos provérbios ditos populares...


"Aonde oiro fala, tudo se cala"
"Deus ajuda a quem trabalha, que é o capital que menos falha"
"Tempo é dinheiro"
"Um tem a bolsa, outro o oiro, e assim vai andando o mundo"
"A martelada do mestre vale por mil das dos operários"
"Bendita a ferramenta que pesa mas alimenta"
"Dá ofício ao vilão, conhecê-lo-ão"
"Há mais aprendizes que mestres"
"Janeiro, gear; Fevereiro, chover; Março, encanar; Abril, espigar; Maio, engrandecer; Junho, aceifar; Julho, debulhar; Agosto, engravelar; Setembro, vindimar; Outubro, revolver; Novembro, semear; Dezembro, nasceu Deus para nos salvar"
"Madruga e verás, trabalha e terás"
"Mais vale bom administrador do que bom trabalhador"
"Mais vale um bom mandador que um bom trabalhador"
"Mão de mestre não suja ferramenta"
"Mãos de oficial, envoltas em sandal"
"Mineiro, nem a prazo nem a dinheiro"
"Na casa deste home quem não trabalha não come"
"O boi pega no arado mas não por seu grado"
"O Verão colhe e o Inverno come"
"Oficial tem ofício e al"
"Para gozar eu; para trabalhar um irmão que Deus me deu"
"Para homem dado ao trabalho não há dia grande"
"Para o trabalho se chama uma, duas ou três vezes; para comer uma só"
"Quando o mestre canta boa vai a obra"
"Quanto mais patrão mais cabrão"
"Quem ao moinho vai enfarinhado sai"
"Quem não poupa a lenha, não poupa nada que tenha"
"Quem não tem ofício não tem benefício"
"Quem não trabuca não manduca" (do latim: Qui non laborat, non manducet )
"Quem poupa seu mouro poupa seu ouro"
"Quem sabe de luta luta e quem não sabe labuta"
"Saber muitas artes é ter pouco dinheiro"
"Semeia e cria, viverás com alegria"
"Sete ofícios, catorze desgraças"
"Só trabalha quem não sabe fazer mais nada"
(Continua)

Luís Graça disse...

(Continuação)

"Trabalhar a seco"

"Trabalhar de jornal"

"Trabalhar é bom pró preto"

"Trabalhar para aquecer"

"Trabalhar para aquecer, é melhor morrer de frio"

"Trabalhar para o boneco (para o bispo)"

"Trabalho de menino é pouco, quem não o aproveita é louco"

"Trabalho se fez para burro e português" (f)

Trabalho & Saúde

"A tarefa que agrada é depressa acabada"

"É preciso ser doido para trabalhar aqui"

"Não há trabalho sem trabalhos"

"O trabalho dá saúde"

"O trabalho não mata ninguém"

"Se o trabalho dá saúde que trabalhem os doentes" (g)

"Tendo saúde e comendo bem, o trabalho não mata ninguém"

"Trabalha como se vivesses sempre; ama como se fosses morrer amanhã"

"Trabalhar como um animal (um cão, um boi, um touro, um burro, um leão, um cavalo, etc.)

"Trabalhar como um escravo (um mouro, um negro, um preto)"

"Trabalhar que nem um boi"

"Trabalhar que nem um galego"

"Trabalhar que nem um mouro"

"Trabalhar que nem uma puta"

"Trabalhar que nem um touro"

"Trabalhar sem comer é cegar sem ver"

"Trabalho com gosto alegria no rosto"

"Trabalho é meio de vida e não de morte"

"Trabalho é caminhar a cavalo, que a pé é morte"

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos77.html

Anónimo disse...

Extraordinário poema do poeta popular alentejano António Peres. Revejo aqui todas as profissões de meu pai e meus tios, igualmente alentejanos, pertencentes à mesma geração e classe social do poeta. Bem como a mesma forma de sentir e de pensar.
Obrigada pela partilha, amigo Colaço.

Um abraço
Maria Teresa Franco Parreira

Anónimo disse...

Fiquei igualmente encantada com as diversas "expressões sociais" do trabalho aqui divulgadas pelo Dr. Luis Graça a quem agradeço.
Já conhecia algumas com o mesmo significado, como por exemplo: "Mestre de muitos ofícios é sinal de pouco dinheiro", e agora fiquei com os meus conhecimentos mais enriquecidos.
As minhas cordiais saudações e o meu obrigada pela partilha de informação.

Maria Teresa Parreira

JD disse...

Caríssimos Zé e Luís,
Eis uma atravessadela na sociologia do trabalho que
é muito interessante, e que dá umas bicadazinhas na política. O poema não parece corresponder aos objectivos do blogue, mas... Saúda-se! E está cheio de oportunidade.
Abraços fraternos
JD

JD disse...

Já agora,
Estive uns dias fora e li um título que reflecte sobre a crise e as saídas com o mínimo de custo para o povo, e visão futurista, idealmente integrado numa ampla mobilização popular, que ainda propõe a rotura com o actual modelo de crescimento, alterações estruturais, e mudanças de atitude em cada um de nós.
É de leitura muito simples e escorreita, da autoria de um antigo (aparentemente decepcionado) deputado, Ventura Leite, com ideias muito bem sistematizadas e abrangentes. O título "Solução Para a Crise Nacional e Europeia", custa 13,80, e aponta soluções bem refrescantes.
Abraços fraternos
JD

José Botelho Colaço disse...

Caro amigo Zé Dinis
Agradeço os elogios aos versos populares do meu falecido tio António Peres.
Quanto a não corresponder aos objectivos do blogue como podes ver pelo texto eu só o enviei ao Luís Graça por ele adorar a poesia e em particular a popular,nem fazia parte do endereço os editores Vinhal ou M. Ribeiro, a publicação deve-se só ao administrador do blogue Luís Graça.
Um abraço e vai-te preparando para em Outubro ires dar ao dente em Benavente.

José Botelho Colaço disse...

Desculpem só citar nos agradecimentos o Zé Dinis mas os agradecimentos são extensivo a todos.

Um abraço.
Colaço

José Botelho Colaço disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
JD disse...

Dar ao dente em Benavente?
Isso é que é rimar!
Pois então, se não houver qualquer impedimento, lá irei.
Um abraço
JD