Meus caros camaradas editores:
Junto envio mais uma historieta da minha vida de militar na Guiné.
É muito pessoal mas é capaz de ter algum interesse. Talvez!
Como sempre, entrego-o totalmente ao vosso critério de publicação.
Votos de muita saúde e boa disposição.
Manuel Joaquim
Na guerra, nunca dei um tiro! … (só dei um)
Não, não venho dar “uma de bonzinho” apesar de ser contra guerras, principalmente ter sido contra a Guerra do Ultramar em que participei. Nunca dei um tiro porque não me foi preciso, porque decidi só o fazer no limite das circunstâncias. Na prática, até “dei” tiros, e muitos, já que havia gente que o fazia a meu comando. Mas sempre fica cá dentro a frase salvífica que por vezes ouço (leio), “estive na guerra mas nunca dei um tiro!” muitas vezes como vanglória de uma atitude tomada mas que afinal era fruto das circunstâncias, as de nunca terem enfrentado o inimigo, até de não terem vivido em área de combates. Não foi o meu caso, com 67 acções com trocas de fogo com o IN (contava-as e arquivei), muitas delas não passando de uma espécie de perigosas saudações.
Vejamos esta fotografia da qual não sei quem foi o autor, tirada em 1964 durante a minha recruta no CISMI:
CISMI, Tavira, Maio/1964
Olho a foto e tento recordar-me do momento. Não consigo perceber o porquê de me ver em “traje” militar de passeio e o outro pessoal (da minha secção) em “traje” de combate! Tudo leva a crer que me despachei mais cedo deixando-os a brincar à guerra e à fotografia enquanto o que eu mais queria era sair do quartel o mais rápido possível. Ao voltar à ”parada” encontrei o grupo nesta pose, fiz-me intruso e fiquei a destoar naquela “agressividade” brincalhona, deitado, cabeça apoiada num dossier com apontamentos e escritos pessoais, como que a dizer que aquilo não era nada comigo. Lembro-me da reação tida quando vi a foto pela primeira vez e vi alguém a apontar-me a arma em vez de posar como os outros. Assustei-me com a visão, temendo nela um prenúncio do meu futuro como personagem a eliminar, tão desalinhada ela estava da política oficial.
Com quase quatro meses de recruta, a personagem deitada sugere um aceitar passivo da situação, uma rendição, uma entrega à imolação. Nada de pensar em fugir, tinha entregado os pontos, tudo estava consumado. A sua verdade pode estar na aceitação da vida militar mas não desistindo de si mesma, lutando pelas suas ideias, usando tiros de palavras e não de armas.
Nunca dei um tiro em combate, não matei nem feri ninguém mas não me vanglorio. Era adversário ferrenho da Guerra do Ultramar, com muitos momentos de militância (mesmo da clandestina), mas como combatente não devo nada a ninguém, principalmente àqueles que apoiando o regime político de então deram “às de vila Diogo” e/ou se encaixaram nas áreas de comando e serviço militares ou em actividades de carácter civil. Preciso de dizer isto porque de vez em quando ainda continuo a ser vítima de ataques do tipo de “falta de patriotismo”, de também ser “culpado” das desgraças de muita gente, devido às posições político-ideológicas que tomei antes, durante e depois de ter participado na guerra, digo agora, Guerra Colonial.
A minha utopia como combatente era poder haver combates mas não morrer ninguém, quer dum lado quer do outro, como que uma guerra encenada para tapar os olhos aos apoiantes de ambos os lados da contenda, enquanto se desenvolveriam negociações para a independência das respectivas colónias. Será para rir, eu próprio o faço, mas olhem que há muitas utopias irrealizáveis que movimentam centenas de milhões de seres humanos!
Sujeitei-me ao sacrifício, à imolação numa guerra em que não me revia politicamente mas sinto que cumpri as ordens a que também decidi, disciplinadamente, sujeitar-me.
“Louvo o Furriel Mil.º de Infª. MANUEL JOAQUIM, da Companhia de Caçadores nº 1419. Por ter demonstrado ao longo da comissão muito zelo e desejo de bem servir, tendo desempenhado com muita competência todos os serviços de que o encarregaram. Como Comandante de Secção revelou excelentes qualidades de combatente, dando ordens certas e precisas, mesmo nas situações mais difíceis, em que revela muita calma e perfeita noção da situação, conduzindo os seus homens com perícia e conscienciosamente para lugares mais convenientes. Por acumulação de serviço vem desempenhando há vários meses, DESINTERESSADA E VOLUNTARIAMENTE, as funções de professor das Escolas Regimentais tendo ministrado aulas quer a soldados quer às crianças nativas, nunca revelando cansaço ou quebra de vontade. Pela maneira como trata com todos tem-se imposto à consideração geral, sendo o seu esforço digno de menção. (O.S. nº78 do Bat. Caç. 1857 de 1/4/67)".
A minha reacção a este louvor lê-se numa carta enviada na altura à namorada: “Já com certeza reparaste na folhinha que vai junta. Saiu no dia 1 de Abril mas não foi “gorro”. Louvaram-me mesmo. Fiquei deveras surpreendido. Nunca esperei que isto acontecesse. Aconteceu e talvez para surpresa tua aqui vai. Durante todo este tempo fiz todos os possíveis para passar despercebido perante os chefes. As razões sabe-las tu. No fim surge-me isto. Surpresa!”
Especializaram-me em Armas Pesadas de Infantaria. Sou mobilizado para a Guiné dentro de tal especialidade mas… quais canhões sem recuo, morteiros e metralhadoras pesadas, quais quê!, “pega lá nesta canhota e desenrasca-te!”, fiquei com uma G3 na mão e uma secção de “atiradores”. E tive de me desenrascar mesmo na minha “arte” de guerra, afinal o que também aconteceu à generalidade das forças combatentes, aquilo era uma guerra de desenrascanço, de vitória em vitória até à previsível derrota final. Que só não aconteceu porque se viu que a tal capacidade de desenrascanço estava a “pifar” e … acabou-se com a guerra.
Dizia eu acima que nunca tinha dado um tiro em combate. Não é bem verdade mas, se calhar, é. Segue a história:
A ligação por estrada Bissorã-Olossato tinha uma ponte a dois terços do percurso, num local isolado perto de Maqué e a alguns quilómetros do Olossato, ponte que entretanto tinha sido destruída pelo IN, dificultando enormemente os abastecimentos ao Olossato, principalmente na época das chuvas. Para a reconstrução da ponte e sequente segurança construiu-se junto dela uma espécie de abrigo fortificado. Na altura foi a tropa de Bissorã que ficou a ocupar o tal abrigo e calhou ao meu pelotão tal tarefa durante o mês de Julho de 1966.
O abrigo era formado por um edifício constituído como que por duas caixas concêntricas com uma diferença entre elas de 1,5m de lado. Entre elas ficava, assim, um espaço-corredor fechado, um abrigo onde ficavam os beliches para dormir e , abertas nas paredes exteriores, as seteiras para vigilância e acções de fogo da G3. Ao centro da construção ficava um pátio ao ar livre.
Ora numa certa noite o IN resolveu atacar. Devia ser numeroso mas não percebi o que ali tinham vindo fazer pois só utilizavam armas ligeiras que só nos incomodavam com o barulho. Do nosso lado a resposta era do mesmo nível, tiros e tiros para o vazio da escuridão da noite. Aquilo foi um descarregar de balas, de parte a parte, que a certa altura me começou a irritar, não tanto os tiros do inimigo mas os nossos que faziam um barulho ensurdecedor dentro do abrigo.
Como de costume, eu não fazia fogo e conservei-me deitado na cama superior do beliche, dando uma ou outra ordem, principalmente para terem calma e não se ferirem uns aos outros. Mas, naquela noite, não sei o que me deu. Rodo na cama, volto-me para uma seteira perto, ajoelho e enfio nela o cano da arma, “estes gajos nunca mais se calam!” e disparo!...
Um estardalhaço e um “ataque” de bocadinhos de qualquer coisa que pôs os próximos em pânico ao serem atingidos. “Meu furriel, conseguiram acertar no buraco! Devo ter levado com um bocado de cimento na cara!” Eu também apanhei!, diz outra voz. “E eu também, seus filhos da puta! Que sorte, olhem se a bala tinha entrado!” e outras mais frases do género. Ainda houve vozes que se aproximaram da verdade perguntando se alguém tinha disparado contra a parede. Do seu furriel é que não desconfiavam de certeza porque a ele nunca o tinham visto fazer fogo. Ninguém se acusou e ficou a história de uma bala do IN ter acertado num buraco do abrigo e, por sorte, não ter atingido ninguém.
Eu, calado que nem um rato, sabia bem o que tinha feito. Teria apontado mal na escuridão e disparado contra um lado da seteira?! Pode ter sido mas vou mais pela falta de limpeza da arma já que tinha acabado de levar dela um belo coice quando lhe puxei o gatilho.
No meio da conversa começaram a ouvir-se fortes rebentamentos à nossa volta, os obuses do Olossato vieram calar de vez as armas do inimigo. E lá voltámos para a cama.
Nenhum dos meus camaradas de pelotão soube deste meu feito! Que me desculpem os meus soldados pela minha falta de coragem para lhes contar o que tinha acontecido. Mas reparem, eu era de Armas Pesadas e nunca me senti atraído por aquele “canhangulo”, chamado G3 ( eh eh eh!). G3, uma arma com muitos amantes, a quem também peço desculpa por ter tratado tão mal a sua amada.
Manuel Joaquim
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 28 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10587: Memórias de Manuel Joaquim (8): Bissau, 1965: Pourri avant d’être mûri
5 comentários:
Manel:
Este é um daqueles "segredos" que decidimos vir aqui contar no "confessionário" do blogue, que podem não ser lá muito "politicamente corretos", mas que são "verosímeis", e que não provocam, julgo eu, a "revolta da caserna"...
Enfim, pequenas "inconfidências", coisas do nosso foro íntimo que queremos partilhar com os nossos camaradas, sabendo que nenhum deles virá na nossa direção com duas pedras na mão (, já não digo com a G3 em riste para te fuzilar!)...
Um dos problemas com que nos defrontamos num blogue, público, como este, é o receio de ser sermos "julgados pelos nossos pares" (neste caso, camaradas de armas, ex-combatentes)...
Nessa medida dou-te os parabéns pela sinceridade e frontalidade com que falas da tua... "disciplina de fogo" (. Para mim, era uma "virtude", uma competência que releva do autodomínio, e da frieza na aliação das situações, própria portanto de um verdadeiro comandante de seção que deve ser usar a arma com parcimónia e eficácia... Acho que foi isto que aprendi na tropa, há 40 e tal anos!).
Curiosamente, temos pontos em comum: a nossa namorada não era a G3, deram-nos a "canhota", já no mato, porque afinal não havia "armas pesadas de infantaria" (esta guerra não era a de 14/18, mas sim de antiguerrilha...), e por fim nas nossas secções a rapaziada (, africana a minha ou as minhas, já que andei sempre a saltar, de Gr para Gr, e de secção para secção!) não sabia contar as munições que gastava...
Ora a pior situação que nos podia acontecer era ficarmos no mato com as calças na mão!...
Podes discordar da guerra, mas não tem piada nenhum seres apanhado à unha e ires em marcha forçada, durante três ou mais dias, para uma base do PAIGC na Guiné-Conacri, como aconteceu a alguns desgraçados dos nossos camaradas!
Bom resto de domingo, mas vem mais vezes ao "confessionário"... Por esta, estás... perdoado!
Olá Manuel Joaquim.
Li com interesse o teu texto, e guardo uma frase, que é a seguinte: ...Que me desculpem os meus soldados, pela minha falta de coragem... Pois eu, vou acrescentar, tens uma grande coragem, um grande coração e um grande carácter, em contar tudo isto aos teus soldados, e aos teus companheiros antigos combatentes, com uma sinceridade espantosa, e vou acrescentar mais um pouquinho, ouve milhares de combatentes que fizeram o mesmo, que não deram um tiro em combate, no qual me incluiu eu, mas que fizeram todas as suas tarefas para a qual estavam destinados com toda a responsabilidade que lhe era imposta.
Um forte abraço, do Tony Borie.
Manuel Joaquim
Quando fomos "prá" guerra completamente ás escuras.Eu ainda me lembro que pouco antes do batalhão embarcar para a Guiné a tropilha foi assistir a um filme sobre a Guiné.E então o que nos mostraram foi,Imagens de belas mulheres negras,agricultura da mancarra mas num aspeto florescente,enfim ...filme de propaganda turistica.
Sobre o Inimigo... absolutamente "zero".Quando tive o primeiro embate na guiné eu nem sabia de que côr era o IN e pior ainda nem sabia destinguir o barulho das armas deles.E olha que pelo menos no Cumeré (IAO)poderiamos pelo menos ter tido formação nesse e noutros sentidos.
Camarada nós os melicianos eramos "CARNE PARA CANHÃO".Havia muita matéria prima na Metrópole.
Um abraço a todos e ainda há muito para contar....
Henrique Cerqueira
Olá Manel,
Este teu relato é, simultâneamente, sério e irónico. A guerra, enquanto causadora de mortes para conquistar um palmo de que nunca somos os donos, ou como causadora de tiros só para afastar o medo, raramente reporta actos de justiça, e é compicada de entender pelos participantes. Tu não dizes simplesmente que a repudias. Dizes que não foi necessário disparar.
Tal como me aconteceu, foram muito poucos os tiros que dei, até porque os tiros eram uma fonte de excitação que podia tolher o discernimento. E não era por gastar mais munições que se ganhava a guerra. Mas ganhavam os senhores da guerra.
Finalmente, a tua utopia de uma encenação de guerra, enquanto se desenvolvessem negociações para a independência das respectivas colónias (ou para uma harmonização dos problemas), foi uma ficção de muita gente, que a pobre qualidade dos políticos e do regime fez frustrar por rídiculos intuitos de glória, ou de princípios, inconfundíveis com patriotismo. Quando se negligencia a negociação, é-se tão terrorista quanto o ápodo do inimigo.
Um abraço
JD
Manel.
A cada um um bocadinho e de ti está tudo dito.
Mas numa destas segundas-feiras, separando livros lá na casernas dos fundos, aproveitando a distração do presidente Fortunato, enquanto preparas e acendes o teu velho cachimbo, vais fazer-me uma outra confissão.
Tens a certeza que disparates com o cano da G3 para a frente?
armando pires
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