1. Era mais velho do que eu, três ou quatro anos... Um matulão. Um bom gigante. Livrou-se da tropa e do ultramar, porque a família emigrou para o Canadá ainda em finais da década de 50, se bem me recordo. Já não o via há séculos. Foi um dos meus grandes amigos de infância. Éramos vizinhos. Reencontrei-o em 2/8/2012, na Praia da Areia Branca, nas férias de verão... Eis o que escrevi, na altura, no meu bloco de notas:
─ Zé Pê!?...
─ Liz Manel!...
─ How are you ? Há quanto tempo!...
─ Fine, fine!..A long time ago!...
─ Até parece que foi ontem!
─ Qual quê, há mais de 50!...How old are you ? Estás com quantos ?
─ 65…
─ Atão foi há mais…
─ Há mais de 50 anos, há mais de meio século!...
─ Quem diria!
─ Dá cá um abração do tamanho do Atlântico!...
─ ‘Tás na mesma, Liz Manel!... Tirando a barba!...
─ Não me lixes, envelhecemos, como o caraças… Cada um para seu lado... Separados por este oceano imenso…
─ Pois é, mas estás fine, fine!
─ É, pá, deixa-me conhecer os teus netos!
─ Tenho estes dois. Boy and girl.
─ Sim, senhor, nice children!.. Então por cá?!... Agora sempre de férias, não ?!... 365 dias por ano!
─ Mas sempre entretido, sempre rolando. Cá e lá...
─ Tinham mo dito… Alguém me disse que tinhas perguntado por mim.. Tens voltado aos States ?
─ Canadá…
─ Ah, sim, desculpa, Canadá…
─ Sempre, tenho lá a minha sweet home!...Os filhos e os netos que são canadianos...
─ E tens cá também um casarão que chegou a estar à venda, não?!!... Tens dupla nacionalidade ?
─ Of course, desde 1983… Nesta terra é que eu não quero ficar. Só se morrer de repente, como o meu pai.
─ A terra que nos viu nascer!...
─ Madrasta… Para mim, foi madastra...
─ ‘Tá bem, ‘tá bem assim… Afinal, tens o melhor dos dois mundos, a Europa e a América, o Velho e o Novo Mundo…
─ Até o Canadá já foi melhor, infelizmente... Mas conta lá tu... As voltas que a vida deu, Liz Manel!...
─ Olha, safaste-te da tropa e de ir parar a África, ao ultramar… Eu fui parar à Guiné, sabias ?… Tinha 14 quando rebentou a guerra em Angola, já não estavas cá, se bem me lembro…
─ Lá nisso, tive mais sorte. Safei-me a tempo, ainda não havia guerra. Mas também passei o meu mau bocado. Andei nas plataformas petrolíferas, conheci o Alasca…
─ Como o mundo é pequeno, Zé!
─ E a puta da vida é curta… Não vês o meu pai, não chegou a conhecer os netos…
─ O ti Zé Pê!...Bom homem, mas de poucos sorrisos... Tinha o seu génio. Ainda me lembro bem dele, com o seu automóvel de praça...
─ Yeah!...
─ Tens cá casa, em terras do teu avô, tens cá as tuas raízes. Esta é a tua terra e sê-lo-á sempre.
─ Tenho duas, afinal…E completam-se. Aqui em casa uso as duas bandeiras, geminadas. Pena é tudo isto por cá andar tão mal parado…
─ Pois é, Zé… Infelizmente, estamos voltar à porca miséria do tempo da nossa infância…
─ Mas ele havia coisas que nos deixavam saudades… A galera que eu inventei, as jogatanas de hóquei no largo do coreto… Com sticks de pau de tamargueira...Ou tramagueira ? ...Lembras-te ?! Já esqueci o raio do português...
─ Se me lembro!... Tramagueira, era assim que a gente falava... Se me lembro!... Ouvíamos os relatos de hóquei em patins, debaixo dos lençóis. Montreux, o campeonato do mundo…
─ Jesus Correia, Correia dos Santos, Sidónio, Emídio e Edgar… Depois veio uma geração de ouro, Adrião, Bouçós, Velasco…
─ Que cabeça, Zé!...O Livramento já não é do teu tempo…Foste para o Canadá em finais dos anos 50, é isso ?! E levaste a tua galera…Mas nessa altura já havia televisão… No café do Clemente Alberto, na Rua Grande…
─ Éramos os melhores do mundo!...Dávamos cada cabazada aos espanhóis…
─ Os nossos eternos rivais...
─ Também não tínhamos mais vizinhos para malhar...
─ Olha, disseste-me que andaste nos petróleos, no Alasca...
─ Yeah, e é até tenho patentes de sistemas para apagar fogos nos poços de petróleo… Mas não penses que estou milionário...
─ A sério ?... Patentes registadas ?... Sempre foste um grande engenhocas!...
─ Só na tua terra é que tu não vales nada…
─ É verdade, Zé, ninguém é profeta na sua terra…Mas foi pena não teres estudado...
─ Qual quê!... Se cá tivesse ficado, não tinha passado da cepa torta. E se calhar tinha ido parar a Angola ou à Guiné, como tu... Mas não foi fácil, Liz Manel!... A vida foi dura… Hoje tenho o meu pension plan, pago em dólares... 'Tou retired, sabes ?!...
─ Fico feliz por ti e pelos teus... Safaste-te... Da Índia, de Angola... Lembras-te da festa que fizemos ao Jorge da Ti Albertina quando ele veio da Índia ?
─ Se me lembro!... Chorávamos todos baba e ranho, com tanta alegria!... O Jorge funileiro era um dos nossos, um vizinho, um herói!...
─ Éramos uns índios, a malta da nossa rua, a última da vila, a do castelo, a dos valados... O Jorge era muito mais velho do que nós, mas era um dos nossos... Um dos últimos soldados da Índia. Já não posso precisar em que ano isso foi... 56, 57, 58 ? Enfim, muito antes da invasão que foi em dezembro de 1961...
─ Pois é, foi já tanto tempo... Mas lembro-me bem da ti Albertina, a chorar como uma Madalena. Mas de alegria, of course!
─ Zé, não foste só tu que deu o salto... Da malta da nossa rua, lembro-me do teu irmão, que foi contigo, da Mariete que foi para os States, do Frasco do Veneno, o João Fernando, meu primo, que foi para o Brasil... E de outros...Para não falar da malta que andou na escola comigo, mais novos do que tu...
─ Que saudade, que bom recordar a nossa infância!
─ ... Olha, eu tenho que ir andando... Ainda vou até Lisboa. Zé, até sempre. Gostei muito, foi bom rever-te. E voltaremos a ver-nos, espero bem. Bye, Bye!
─ Até sempre, Liz Manel! Bye, bye! Take care!
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
6 comentários:
Olá Luis.
Que diálogo, que "conversation", mais catita e sentimental!
O encontro de dois amigos de infância, como todos nós emigrantes, tivemos dezenas e dezenas, quando vizitáva-mos a mãe Pátria, e encontráva-mos o amigo de infância, nessa Pátria, que para alguns foi "madrasta"..
Uns, talvez por razões que a razão desconhece, tiveram coragem de regressar às suas origens, outros nunca, nunca mais, talvez pelas mesmas razões, que a razão desconhece, mas os ainda vivos, em especial os antigos combatentes, embora não regressassem, trazem-na cá dentro, anda consigo, trazem-na no sangue, a todo o instante ouvem o bater das ondas do mar Atlântico, que está aí mesmo à porta desse cantinho da Europa, que se chama Portugal, mas que foi uma Pátria um pouco "madrasta", mas que o verdadeiro emigrante perdo-a.
Gostei.
Um abraço, Tony Borie.
Pois é, Luis
Gostei do diálogo, que, para além do mais (e mesmo que outras considerações não pudesse arrastar), é o resumo ou o ponto de partida para o retrato de uma geração.
Alberto Branquinho
Este diálogo do Luís com o seu amigo de infância devia ser lido por muitos actuais arquitectos e doutores que neste momento histórico nacional estão dando "corda aos sapatos".
Houve muita tradição de emigração para o Canadá e EUA da zona litoral dos domínios de Luís Graça.
Porque imitavam a lógica da imigração açoreana?
Enquanto no Minho e norte em geral se ia mais para o Brasil e África.
Isto nos anos 40 e 50.
Os Madeirenses apanhavam o barco que passava: Africa do Sul, Angola Moçambique, Caraíbas e América Central e do Sul.
Já os Algarvios invadiram aos magotes, com sucesso as zonas piscatórias do litoral angolano.
A maioria dos Alentejanos iam para Lisboa e Vale do Tejo onde estavam os Ribatejanos.
Fiz esta estatística em Angola com a mescla de "colons" e militares que preenchemos aquele território angolano.
Mas já nos anos 50 após a Guerra Mundial se emigrava clandestinamente de assalto para a França, nas regiões fronteiriças transmontanas e beirãs, que pouco se fala, porque era apenas no âmbito daquelas regiões.
Mas do diálogo onde o Luís e o amigo falam das "cabazadas nos espanhois", porque ─ Também não tínhamos mais vizinhos para malhar..., fez-me lembrar um deputado grego que lhe ouvi numa entrevista dizer que os portugueses eramos uns felizardos porque não tínhamos ninguem que nos incomodasse.
Como tambem fui emigrante, este diálogo também me lembrou o invejoso "Zorba".
Isto aqui é tão bom!!!
Tony, Alberto e Antº Rosinha: Há um provérbio popular de que gosto muito, e que diz:
“A felicidade está onde nós a pomos,
mas nós nunca a pomos
onde nós estamos”.
Sejamos felizes, aqui e agora. É isso que também desejo à minha filha que faz hoje 35 anos... LG
Olá Luís,
O teu diáalogo com um amigo emigrante levou-me aos meus vinte anose e aos estados sentimentais ditados pela emigração.
Emigrante, eu?! Apenas sei que o corpo foi, mas a alma...
Plantada ficou naqueles rochedos no meio do Atlântico, onde o meu mundo começava e acabava ao fim da rua, junto ao mar.
Dali apenas se via um sonho para além do horizonte. América era o seu nome.
Nesta grande Nação consegui o grande sonho americano: constituir família, ter casa e carro, dar a melhor educação escolar possível aos filhos.Tudo isso e mais algumas realizações pessoais de que me orgulho.
Com simplicidade aprendi a não complicar a minha vivência e os meus estados de alma.
Claro que sou feliz!
Abraço transatlântico que nos une.
José Câmara
Excelente diálogo, misto de escrita criativa mas perfeito sob o ponto de vista da amizade sincera.
Enviar um comentário