1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Olhares de um saudosismo
No rescaldo de um “golpe de mão” em Monte Real
A Guiné será eternamente por todos nós recordada!... A guerra, isto é, o seu conteúdo funcional e operacional, apresentar-se-á sempre na sua plenitude como uma eficaz alavanca superior quando o fiel da balança sugere, inegavelmente, um encontro preciso com a nossa presença no palanque numa guerrilha que ao longo de anos (entre 1963 e 1974, na Guiné) não deu tréguas a mancebos enviados para a frente de combate naquela antiga província ultramarina. Experiências inéditas que resvalaram para contornos inimagináveis.
Os olhares distantes de um saudosismo visualizado em gentes que conheceram a irreversível realidade, afigura-se, no meu contexto, como uma duplicidade de sentimentos que conduz os camaradas de armas em solo guineense a um infinita cumplicidade que cruza gerações e gere polos de amiudadas conversas entre os antigos combatentes.
Reconheço, porém, que a guerra nas antigas colónias em geral, parece sucumbir para o limbo do esquecimento de governantes nacionais que jamais saberão o que foi o verdadeiro sofrimento de uma rapaziada atirada para a frente de combate em plenos verdes anos da sua afirmação. A sociedade, lembro, impunha, na altura, como prioridade insofismável a aquisição do primeiro emprego. A opção configurava-se irreversível, acrescento.
Sabemos que articular, hoje, a temática da guerra, a nossa, considera-se tabu no seio de uma sociedade na qual só os mais velhos ditam, e subscrevem, opiniões reais sobre os seus tempos de padecimento como combatentes algures nos matos adensadas da Guiné, como foi o nosso caso.
À memória surgem-me imagens por nós conhecidas mas escamoteadas pelos senhores do poder que desconhecem essas exequíveis realidades, presumo. Curvo-me perante os jovens camaradas falecidos no conflito. DESCANSEM EM PAZ! Foi duro ver um companheiro tombar quando as balas, neste caso, cruzavam o infinito de um horizonte quiçá nebuloso. Arrepio-me, também, a rever memorialmente companheiros que viram o seu corpo sofrer profundas alterações físicas na sequência de uma guerra que não dava folgas.
Recordo, por exemplo, a mágoa sentida quando uma tarde me deparei com o cadáver de um camarada que apresentava, apenas, um buraco na testa por onde o estilhaço havia penetrado e causado a razão única da sua morte. Foi na enfermaria de Nova Lamego onde tive a oportunidade de constatar o corpo de um camarada que havia tombado algures na região de Gabu. Lembro-me comentar com o enfermeiro Dinis, já falecido, o trágico fim do rapaz que morreu numa terra que não era sua e que se limitava a expor o corpo às balas. O infeliz, tal como os outros milhares de militares mortos no tablado da guerrilha colonial, foi mais um que figura no rol de desaparecidos em combate.
A talho de foice refiro, com inteira prontidão, a lista de estropiados a que se associam aqueles que amiudadamente convivem com eternas convulsões pós traumáticas de guerra, bem como todos os camaradas que apresentam situações de menor gravidade mas prevalecendo na sua mente resquícios de um conflito armado que lhes deixou marcas e que continuam literalmente embrenhadas no seu quotidiano com as mazelas de ontem.
Este meu início de uma temática irrefutável, faz-me anunciar, com rigor, o nosso último almoço, em Monte Real, sobre a égide do nosso blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, onde me deparei com ilustres camaradas cujo tempo de longevidade não impede uma confraternização, sendo certo que estes já gastos ex combatentes aproveitam a ocasião para trazer ao cimo da conversa sons e imagens da guerra na Guiné onde fomos, afinal, atores reais de um palco com xadrezes diferenciados, mas com “enredos” comuns.
Ouvi ao longo do pretérito dia 8, nacos de histórias encantadoras. Histórias de tiros, de ataques, de emboscadas, de mortos, de feridos, de evacuações, dos estridentes sons emitidos pelos motores dos Fiat’s que na linha da frente iam atirando alguns “rebuçados” para o solo, tendo como finalidade abrir caminho para a penetração das nossas tropas no pressuposto terreno inimigo, entre outras mirabolantes controvérsias que a guerrilha, despida de preconceitos, impunha.
Olhava despretensiosamente rostos, outrora jovens, que continuam deslumbrados a contar vivências acumuladas numa guerra que assumiu contornos para elevar ao êxtase a atuação do antigo guerrilheiro que se vê agora despojado de uma aceitação moral e ética que se perde efusivamente no tempo.
Na minha mesa tinha ao meu lado esquerdo o Jorge Canhão, a esposa, e o Joaquim Sabido, também com a esposa, entre outros camaradas, e reparava incessantemente no rodopio constante de gentes que teimam em não se curvar perante possíveis adversidades que a vida a espaços lhes aplica. O Zé Carvalho, Pirata de Guileje, e meu camarada ranger, surpreendia o mais incauto combatente que ousasse desafiar as agruras do pressuposto medo envergonhado.
Lançava um olhar discreto e reparava que aquela juventude de hoje mantém-se firme na sua titânica luta em espalhar humildade de um profícuo reconhecimento. Os seus rostos, já enrugados pelas asas de um vento arrepiante, formam um consenso universal que não rejeita parar ante eventuais tempestades. Aquela juventude, a meu ver, enuncia um saber ancestral sobre uma guerra que marca na verdade a nossa história passada.
No rescaldo de um “golpe de mão ao prato”, em Monte Real (Palace Hotel), ficou a certeza que o espírito de união entre velhos camaradas que palmilharam trilhos idênticos na Guiné, permanecerá inalterável, não obstante donde possam soprar os ventos quer eles sejam oriundos de vilipendiadas tempestades ou de uma fértil bonança.
Bem-haja a nossa presença num repasto divinal, ficando a subsequente dica: “Tudo vale a pena Se a alma não é pequena”, aqui parafraseei Fernando Pessoa, um ícone da literatura portuguesa.
Um abraço deste alentejano de gema,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
5 comentários:
Vou definir numa palavra o comentário do Ranger Saúde
"Magnânimo"
Obrigado.
Caro Saúde,
Como sempre as reuniões que envolvem ex guinéus são este misto de saudade,de respeito pelos camaradas caídos e são também a alegria e jovialidade tão bem representadas pelo Zé Carvalho a quem a boa disposição nunca larga.
Um grande abraço
mm
Amigo e Camarada Ranger José Saude, conforme já te expliquei, razões de saude fisica, impediram a minha presença e da Ana, num evento que só por razões de força maior nos impedem de estarmos presentes.Como teu camarada de armas estou totalmente de acordo com a tua linha de pensamnto e espero, que para o próximo ano, possa estar presente num evento tão gratificante como o encontro de Antigos Combatentes, do Blogue do Luis Graça. Um Abraço Amigo.
Pedro Neves.
Camarigo Zé Saúde;
Grande "latada" agarrou o Joaquim Sabido, foi de lhe saltar a tampa. Isto quando se trata de falar da Guiné, ainda mexe e de que maneira.
Aos Camarigos que tiveram a paciência de o aturar, apresenta o competente pedido de desculpa e agradece a amizade por todos dispensada. E para o próximo ano há mais.
O próprio (da latada)
Joaquim Sabido
Évora
Meu Caro Zé, não te esqueças de quando vieres a Évora telefonares para almoçarmos e vai sempre escrevendo pois é sempre um gosto ler-te.
Um Abraço para todos.
Obrigado José Saúde!
Gostei muito do teu escrito.
Aviváste bem aquilo que foi uma tenebrosa odisseia para aquela geração dos vinte anos.
A verdade bem contada e bem polida aí e desnudada e que alguns (muitos?) tentam disfarçar, escamotear ou camuflar.
Bem Hajas.
Lembro-me bem de ti em Monte Real. Estás nas minhas fotos.
Conheci-te (com muito gosto) assim, pessoalmente,embora não falássemos. Não calhou.
Recebe um abraço.
Rui Silva
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