1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 17 de Novembro de 2013:
Podia-se chamar António, Joaquim, José, Francisco que são nomes vulgares, mas ele era original, o nome já não o recordo, como tal vou chamar-lhe Aníbal o nome dum grande general cartaginês.
Cerca de dois ou três meses antes da CCaç 2616 deixar Buba, em fim de comissão o soldado Aníbal apresentou-se na Companhia e veio reforçar o meu pelotão que estava bastante desfalcado.
De estatura média, um pouco forte, sem ser gordo, tinha um aspecto saudável, confiante e simpático e um sorriso pronto.
Quando o pelotão se reunia junto da arrecadação de material, antes das frequentes saídas para o mato, muitas vezes fui encontrar o Aníbal a falar no meio de uma roda de camaradas atentos, qual Jesus Cristo a falar aos apóstolos nas parábolas que depois foram transcritas nos evangelhos.
Foram muitas estórias que também me foram contadas que eu jovem e inconsciente como a maioria não anotei e esqueci.
Penso que na Guiné nunca conheci um homem tão feliz, tão alegre, tão bem adaptado ao meio. Um homem em paz com ele e com o mundo.
O Aníbal foi uma lufada de ar fresco que ajudou o pelotão a passar os últimos tempos da comissão.
Era um simples, um marginal, um anarquista? Um espírito livre que dificilmente conseguia acatar as regras sociais e muito menos o regulamento de disciplina militar?
As minhas interrogações são porque nunca encontrei justificação para o facto dele ter passado mais de quatro anos na Guiné ou em liberdade ou na prisão.
Gostaria de viver lá, pelo clima, pelas gentes e por outro lado não teria raízes, como acontece a tantos desamparados da sociedade, que o motivassem a regressar?
Era calmo, prestável, educado, disciplinado, enfim tinha todos os atributos para ser um bom soldado e foi-o durante o tempo em que esteve connosco em Buba.
Há aqui algumas contradições mas para mim o Aníbal foi um enigma que nunca consegui decifrar.
A aventura ou proeza que recordo dele foi quando certa vez, preso em Bissau, se evadiu com outros para ir a um baile a Bafatá.
Na Guiné, emboscadas, minas, encontros fortuitos com a guerrilha, a poucos quilómetros de Bissau, quem teria a coragem de se deslocar 150 quilómetros para ir a um baile a Bafatá?
Baile que logicamente seria de africanos/as, já que não me consta que houvesse comunidades europeias tão longe para fazer tais festividades.
Revela também o quanto o nosso camarada estava africanizado e integrado nas comunidades locais.
Hoje penso que um desenraizado, talvez fosse o caso dele, que se deixasse embalar no convívio e afectividade, mais espontânea e natural das etnias locais se deixaria facilmente conquistar por elas.
Talvez ele, quem sabe, tivesse uma namorada em Bafatá e por ela estivesse disposto a correr todos os perigos para a poder abraçar.
Por tudo o que já disse acerca dele, propus ao capitão um louvor ao Aníbal para o ajudar a regressar a Portugal com a companhia. O capitão aceitou.
Penso que ele veio com a companhia, espero que tenha sido feliz no regresso, assim como todo o pessoal do meu pelotão e da CCaç 2616, que não tiveram uma estadia fácil lá longe.
Mas sobre isso falarei outro dia.
Até lá um abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
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Nota do editor:
Último poste da série de 16 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12161: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (1): Falando de colunas de reabastecimento e de amizade
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Caro Francisco:
Em conclusão: o problema foi ele ter vivido no tempo do serviço militar obrigatório porque, na verdade, ele não tinha nascido para aquela vida, mesmo assim, conseguiste, moldando-te à criatura, fazer dele um homem útil e ainda por cima louvado. Parabéns Francisco.
Um abraço-
Carvalho de Mampatá.
Na Guiné passaram por lá muitos Aníbais e Franciscos. Este louvor lembra-me a frase de um comandante de companhia sobre uma participação de um oficial a um soldado, para sofrer já basta o que os homens sofrem aqui.
Sem dúvida um caso interessante.
O que levou o "Aníbal" a viver tão longa comissão?
Marginalidade em relação à disciplina militar? Incapacidade de lidar, viver e aceitar a 'cadeia de comando'? Desenraizamento social?
Não sabemos, não podemos saber!
Mas, pelo relato do Francisco Baptista, ficamos a saber que 'alguém' se interessou por ele, lhe deu perspectivas, enfim, na prática obteve a atenção que se calhar lhe faltava e lá 'acabou por acabar' a comissão e, segundo o pensamento do Francisco, veio feliz e contente.
Ainda bem! Pelo menos um final feliz, nestes dias que têm sido tão amargos...
Abraço
Hélder S.
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