Nesse tempo, em 1970, 71 além da CCaç 2616, a que pertenci, havia também um destacamento de fuzileiros africanos, enquadrado por graduados europeus, uma secção de morteiros, um pelotão de artilheiros que manobravam os obuses 14 e uma secção de administração militar. Já passaram mais de quarenta anos.
Buba, situada no terminus do rio Grande Buba tinha um cais onde encostavam periodicamente (mensalmente, pelo menos) as LDG com munições e mantimentos para o batalhão com comando em Aldeia Formosa e para as populações que viviam junto dos quartéis.
Além dos "residentes" havia portanto muitos que se movimentavam por lá como acontece em todas as terras onde há portos. Convivi com muitos deles, no geral afáveis e simpáticos, todos diferentes, porque não há dois homens iguais, todos tínhamos sonhos que disfarçávamos em bravatas e cervejas.
Havia projetos, vidas adiadas, mães, pais, irmãos, esposas, noivas, namoradas, tanta gente a sofrer dum lado da terra e do outro. Tudo isso calava fundo na alma de cada um mas todos escondíamos essas "pieguices", como jovens guerreiros corajosos que mesmo não o sendo, procuram aparentá-lo pois não se deve dar o flanco ao inimigo nem à morte.
Foto: © José Teixeira
Nas minhas breves passagens por Bissau cruzei-me com muitos camaradas das origens mais variadas da Guiné, território que sendo pequeno me parecia tão grande. Farim, Batafá, Canquelifá, Guidaje, Catió, Pirada, Gadamael, Mansabá, Olossato e muitas outras terras com nomes estranhos e sonantes que desconhecia.
Ouvia estórias de ataques, minas, emboscadas, falava-se brevemente de alguns mortos ou feridos graves para ninguém se comover demasiado pois as lágrimas podem amolecer a coragem dos homens. Ao ouvir essas estórias parecia-me que Aldeia Formosa, Nhala, Mampatá, Buba e Empada eram paraísos de paz.
Em abono da verdade tenho que confessar que Buba só experimentou algumas minas e recontros no mato na fase final da companhia depois destas estórias. Nessa fase Mampatá sofreu uma emboscada terrível e Empada a pior de todas. Eu como todos os camaradas do batalhão fiquei muito abalado com essas mortes mas hoje não me compete a mim falar desses acontecimentos, por respeito a todos os seus intervenientes pois não os saberia relatar corretamente.
Falavam de balantas, papéis, manjacos, brames, felupes, cassangas e outros, tantas etnias, muitas mais do que as doze tribos de Israel. Eu na área do meu batalhão só conhecia fulas, perdão havia uma pequena família de balantas em Buba.
Monte Real, 14 de Junho de 2014 > IX Encontro da Tabanca Grande > Fátima Anjos, Francisco Baptista e Hélder V. Sousa.
Foto: Luís Graça
Fui no dia 14 a Monte Real encontrar-me com esses jovens de antigamente, hoje somos todos homens feitos que já passámos o meio da encosta na descida para o Hades, o rio da morte e do esquecimento.
Somos os mesmos e somos diferentes, temos rugas, cabelos brancos, carecas, temos barriga, temos a ferrugem dos tempos inclementes da África e da Europa, talvez mais cínicos mas à procura da inocência da juventude.
Perdemos o ar sonhador doutros tempos. Queremos acreditar nos sentimentos mais nobres e por isso nos juntamos uns com os outros à procura desses jovens generosos e sonhadores desses tempos, em terras da Guiné.
Talvez nos juntemos também para podermos contar as estórias que nunca contamos a quem não esteve lá ou para contarmos as estórias que os outros nunca quiseram ouvir para não terem que prestar tributo e homenagem aos heróis que nunca fomos.
O grande poder, o poder que liberta, reside na anarquia que traz a lucidez que liberta os homens de preconceitos e amarras, para poderem voar e navegar nas estradas amplas da vida, como irmãos, como amigos, como camaradas.
Não sei se fui eu, Cristo, Maomé ou Buda, mas gosto da frase mesmo sabendo que a Anarquia como governo é uma " Utopia".
Como a maioria eu durmo, sonho, acordo e sonho, como diz o poeta o sonho comanda a vida. Eu direi que os sonhos dos artistas nas suas várias expressões, literárias, poéticas, musicais, plásticas e outras, embelezam a vida e dão-nos a ilusão da eternidade.
Pelo sonho vamos....
A todos os camaradas um grande abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 23 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12888: Blogoterapia (251): O programa com um vírus que não consigo apagar, remover ou formatar (José Colaço)
3 comentários:
1. Antes de mais, o seu a seu dono... A foto publicada, com o Baptista "bem apanhado" a falar por cima do nosso homem das transmissões TSF, o Hélder (... e a Fátima Alves pronta a dar uma palmada no rabo do senhor seu esposo, transmontano de gema, em caso, presumo, de alguma inconveniência verbal...), não é do fotógrafo Luís Graça (, que faltou à missa e à saída da missa, por razões devidamente justificadas!...), mas do nosso "fotógrafo de serviço" , o Manuel Resende.
De qualquer modo, eu (como editpr) é que induzi em erro o incauto leitor:
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2014/06/guine-6374-p13305-ix-encontro-nacional.html
2. Quanto à "utopia" aqui evocada pelo Francisco...
Segundo a etimologia grega, "utopia" tanto pode ser um "não-lugar" (um lugar que não existe: οὐ ("não") + τόπος ("lugar")... como querer dizer... eutopia, um lugar bom. perfeito, ideal: εὖ ("bom", "bem") + τόπος ("lugar")...
Se calhar a "Tabanca Grande" foi pensada e está ser construída, de algum modo, como um utopia/eutopia... um lugar onde todos cabemos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos separa... Para já. mão tem uma existência física, é um lugar virtual, algures no ciberespaço...
Dito isto, Francisco, gostei de te conhecer "ao vivo", mesmo que tenhamos falafo 3 minutos e 42 segundos... Vai continuando a marcar presença sob o poilão da nossa Tabanca Grande. LG
Camaradas,
O Francisco Baptista sucede ao Helder nesta cisma de entender as razões para os encontros da Tabanca Grande, como das restantes. Até houve quem suscitasse que o pessoal que serviu na Guiné é mais frequente neste género de encontros, que os outros que serviram noutras provincias.
Em boa verdade, a maioria de nós não mantém contactos assíduos, para além dos virtualizados e, no entanto, em Monte Real assisto e participo em verdadeiras manifestações de júbilo, apesar dos escassos momentos de partilha com cada um.
Por acaso estive à porta da igreja com o Francisco, mas não o identifiquei, porque o meu disco já não é o que era, e perdi a ocasião de lhe dizer quanto o aprecio nas suas manifestações no Blogue. Fica para a próxima.
Quanto aos assuntos das conversas estou em condições de afirmar que são muitos e variados, e desta vez, que me calhou o Pires por vizinho exigente de atenções, acho que nem falàmos de guerra. E o mesmo posso referir de outros com quem falei.
Vá-se lá compreender isto!
Ora, se a anarquia pode ser a mais elevada expressão da ordem, aquela que o Francisco refere, reportou-se à anarquia elegre, à entrega descontraída e com boa disposição na partilha da camaradagem.
Abraços fraternos
JD
Caro Amigo Francisco Baptista
Não posso deixar passar esta oportunidade sem te saudar, dizer que gostei do teu texto(que me dispenso de comentar pois estou cansado) quer quanto ao tema quanto à escrita. Estás a apurar e cada vez escreves melhor! Parabéns.
Quero também dizer-te que gostei da tua companhia e da tua esposa à mesa, em Monte Real,do muito que conversamos, tendo ficado ainda tanto por conversar. Eramos dois desconhecidos há pouco tempo e estivemos um com o outro como dois amigos de há muito. Proezas da Tabanca Grande.
Aproveito para enviar um beijinho de saudação à tua esposa e para ti um forte abraço.
JLFernandes
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