sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14206: Notas de leitura (675): “Senhor médico, nosso alferes”, por José Pratas, By the Book, (www.bythebook.pt, telefone 213610997), 2014 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2015

Queridos amigos,
São memórias, escritas com fulgor, com lembranças carinhosas e trágicas, nada de romance, são sketches admiráveis sobre o que era a preparação de um alferes miliciano médico, o confronto do jovem médico com aquelas estranhíssimas doenças tropicais, os acidentes, os mortos e os feridos; a sua indignação com uma certa hierarquia bacoca e a sua profunda admiração por gente galharda, que se lhe atravessou no destino.
Não conheço nenhum escrito com este, explosivo e terno. “Parece que não combina bem, médico e militar” ele viveu essa contradição nos termos e deixa-nos um documento de primeira grandeza para a literatura da guerra da Guiné.
Leitura imperdível.

Um abraço do
Mário


O médico militar na guerra colonial: um testemunho surpreendente (2)

Beja Santos

Não é a primeira vez que um médico escreve sobre a guerra que experienciou, na I Guerra Mundial houve testemunhos que hoje fazem parte da História, como os de Jaime Cortesão, e na guerra colonial basta recordar o que escreveu António Lobo Antunes. Mas “Senhor médico, nosso alferes”, por José Pratas, By the Book (www.bythebook.pt, telefone 213610997), 2014, é, a todos os títulos, um acontecimento documental relevante e inconfundível. José Pratas fez a sua comissão na Guiné entre 1971 e 1973, na região do Gabu e do chão Manjaco. Não conheço nenhum testemunho como o de este alferes miliciano médico: a sua admiração pelo valor dos nossos soldados, a sua indignação pela amnésia do poder político, incapazes de perceber que a mobilização perto de um milhão de portugueses não é estigma e devia ser motivo de reconhecimento da pátria pelos seus bravos: o desassombro das suas críticas à preparação dos médicos militares que marchavam para África com uma incipiente preparação profissional. José Pratas desvela o que era o ensino da Faculdade de Lisboa e como o médico aprendia à sua custa num ambiente e num quadro sociocultural totalmente desconhecido. Mas também a incompreensão e a boçalidade de certas chefias que estavam sempre à espera de dons miraculosos do médico.

Vemo-lo em primeiro lugar em Pirada, o que dá motivo para exaltar os seus colaboradores que não tinham mãos a medir para atender aos doentes daquele ponto do Leste onde diariamente chegavam senegaleses. Discreteia sobre as doenças tropicais, fala da sua própria doença, das suas relações litigiosas com oficiais superiores, um capitão execrável e capelães que pairavam sobre a realidade. Em Pirada, tinha um agente da PIDE na vizinhança, bom para seviciar e intimidar, o Carvalho, substituído pelo senhor Pereira que tinha farroncas mas com as flagelações termia como varas verdes.
Também em Pirada vivia Mário Soares, com quem Pratas conviveu, pode aperceber-se como o Soares intermediava entre o PAIGC e as autoridades portuguesas, houve encontros secretos à mesa da sua sala de jantar ou no respaldo das cadeiras de lona. Tinha acesso privilegiado às informações da PIDE, ascendente junto das redes de informadores locais, geria com astúcia o assédio e a adulação das autoridades locais. Reflete sobre o drama deste protagonista entre dois campos em confronto: “O tempo corria em seu desfavor, porque a guerra no terreno se perdia em cada dia que passava e era facilmente previsível a derrota da teimosia de Lisboa. No seu relacionamento com a tropa, este europeu, porventura o branco mais africano que conheci, só a muito custo conseguia refrear os impulsos beligerantes das chefias militares, sedentas de ação, indisponíveis, por dever de ofício, para tolerar diplomacias paralelas de que muitas vezes é feita uma guerra de guerrilha”.

E veio a independência e mais problemas para Mário Rodrigues Soares: “Poucos dias depois seria preso e enviado para Bissau. Ter-lhe-á valido a intervenção de Alpoim Calvão, que intercedendo a tempo junto do novo dono do Palácio do Governo, o terá arredado da mira das armas de um pelotão de fuzilamento. Deportado, chegou a Lisboa com a roupa suja que ainda trazia vestida, para ser detido de imediato no aeroporto da Portela pelo COPCON e arbitrariamente preso em Caxias sem culpa formada. Libertado sem julgamento, ultrapassou tranquilo todas as prepotências e perdoou com indiferença aos mandantes e funcionários do PREC”.

Por dever de ofício, o seu dia-a-dia também é composto pela fiscalização dos alimentos. Atividade de alto risco, como ele nos conta: “Numa região de cisticercose endémica, o médico – improvisado veterinário – achava-se obrigado, por força do regulamento a fazer a autópsia de uma vaca, comprada viva, esquálida e lazarenta. Mais de cinco cisticercos na superfície do músculo da vaca equivalente à da palma da mão, havia que rejeitar e mandar enterrar miudezas e carcaça regadas com gasolina, para desespero da contabilidade do sargento vagomestre. Sangue e fígados infetados de fascíolas, à temperatura de 40ºC, provocam um vómito esquisito”.

Sentiu-se gratificado com o trabalho feito lá para as regiões do Cacheu, sobretudo no contacto que estabeleceu com oficiais e sargentos que comandavam uma força de marinheiros fuzileiros africanos. Pode comparar os tratamentos entre os três das Forças Armadas, e deixa o seguinte comentário: “Sobressaía a inexplicável iniquidade de trato nos três ramos das Forças Armadas, já que a dotação de recursos para alimentação por cada homem era obrigatoriamente idêntica para todos os militares nas mesmas circunstâncias. Definitivamente os estômagos não eram de facto todos iguais e a cultura de conforto e bem-estar experimentados pelos militares da Marinha e da Força Aérea não tinha paralelo com a prática do desmazelo e incúria na maioria das unidades do exército”.
José Pratas foge ao romanceado, o que aqui regista é um olhar amplo que vai da incipiente preparação, a qualidade humana ou a sua falta, os paradoxos da perceção dos militares e civis sobre o que efetivamente podia fazer, com aqueles limitados recursos, o alferes médico. É um testemunho, adverte-nos que nunca fará considerações sobre a guerra, o que lhe interessa sobre maneira são as histórias reais a que ele chama dramas, desesperos, sacanices, ilusões, privações, a doença, a infelicidade das gentes. Pelo que se lê, foi bem-sucedido nessa contradição dos termos. Lega-nos páginas belíssimas como aquela em que fala do seu estado de alma enquanto aguarda a lancha que o vai levar até Bissau:
“Remoía a desilusão de que, em quase nada, afinal, havia contribuído para mudar o rumo da guerra que, depois de mim, outros ainda tiverem de continuar a penar. Sem capacidade para ajudar a silenciar o fogo das armas, sem competência para apaziguar as razões que se travaram no campo daquela batalha, sem a expectativa de uma solução à vista para o conflito que Portugal dirimia no Ultramar, apenas me prestava a vaga convicção de ter pessoalmente proporcionado algum alívio aos que sofriam e algum conforto àqueles a quem piedosamente menti, nos momentos finais da sua agonia. Para a maioria dos combatentes era impossível adivinhar o desfecho da guerra e antecipar a data do armistício e a maior aspiração de cada um era a de, tão-somente, ver chegar o dia como aquele que àquela hora para mim estava quase a raiar e voltar para casa tentando esquecer o que jamais se pode esquecer”.

Para mim, este “Senhor médico, nosso alferes” foi o mais importante acontecimento literário da guerra colonial da Guiné, em 2014.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14190: Notas de leitura (674): “Senhor médico, nosso alferes”, por José Pratas, By the Book, (www.bythebook.pt, telefone 213610997), 2014 (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Luís Graça disse...

O que é feito deste homem, o comerciante português Mário [Rodrigues] Soares, endeusado por uns, diabolizado por outros ?

Escreve o Beja na sua recensão bibliográfica:


(...)E veio a independência e mais problemas para Mário Rodrigues Soares: “Poucos dias depois seria preso e enviado para Bissau. Ter-lhe-á valido a intervenção de Alpoim Calvão, que intercedendo a tempo junto do novo dono do Palácio do Governo, o terá arredado da mira das armas de um pelotão de fuzilamento. Deportado, chegou a Lisboa com a roupa suja que ainda trazia vestida, para ser detido de imediato no aeroporto da Portela pelo COPCON e arbitrariamente preso em Caxias sem culpa formada. Libertado sem julgamento, ultrapassou tranquilo todas as prepotências e perdoou com indiferença aos mandantes e funcionários do PREC”. (...)
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Eis aqui alguns postes do nosso blogue que fazem referência a esta "eminência parda" da guerra da Guiné, que alguns acusam de ser um "agente duplo" que trabalharia para o PAIGC e para PIDE/DGS... Também em Bambadinca havia comerciantes, que privavam connosco, e de quem se dizia, justa ou injustamente, que julgavam com um "pau de dois bicos"...


Luís Graça & Camaradas da Guiné: Guiné 63/74 - P1492 ...
04 Fev 2007

Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > BCAÇ 506 > Abril de 1964 >

Da esquerda para a direita: O Alf Mil António Pinto, o Mário Soares, comerciante de Pirada, o Alf Médico (e hoje conhecido como o grande ...


Luís Graça & Camaradas da Guiné: Guiné 63/74 - P2720: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos)
04 Abr 2008

Apurei que o Sr. Mário Soares era um conceituado comerciante local que convidava toda a gente para a sua mesa, acho que o seu cabrito assado era lendário. Mas nada comi em Pirada, regressámos imediatamente a ...

Luís Graça & Camaradas da Guiné: Guiné 63/74 - P5385 ...
01 Dez 2009

Na verdade a imunidade de M.Soares devia-se muito à sua condição de hábil agente duplo que soube manter durante muito tempo e isso acaba sempre por ter um preço amargo de pagar. Planta de Pirada Messe dos ...

Luís Graça & Camaradas da Guiné: Guiné 63/74 – P7097 ...
07 Out 2010

Vejam só, podia ser em direcção ao Pelicano, ou à casa do Mário Soares em Pirada, ou ao meu amigo libanês de Bafatá de quem não me lembro o nome, mas não… em direcção à Caboiana!!!!!. Ao princípio e enquanto ...


Luís Graça & Camaradas da Guiné: Guiné 63/74 - P11711 ...
16 Jun 2013

SÓ PARA ACLARAR UMA COISA, SOBRE PIRADA, ONDE ESTIVE VÁRIAS VEZES, O MÁRIO SOARES, NA ALTURA NÃO ERA COMERCIANTE, ERA O AGENTE DA PIDE NA ZONA.E ASSISTI A VÁRIAS VISITAS QUE UM ...

Luís Graça & Camaradas da Guiné: Guiné 63/74 - P12705 ...
10 Fev 2014

Disse que os primeiros contactos tinham sido feitos pelo chefe da delegação da PIDE/DGS, inspetor Fragoso Balas e por um comerciante de Pirada, Mário Soares. Barata acompanhou duas vezes Spínola ao Senegal, ...