Carlos
A pedido e para alimentação do blogue, mando o texto em anexo para a série MEU PAI, MEU VELHO, MEU CAMARADA. Lamento só possuir uma fotografia do meu pai e de fraca qualidade, bem como uma do meu avô, de quem conto uma história, e que seguem também em anexo.
Da tropa do meu pai pouco sei. Não sabendo onde assentou praça sei que andou por Vila Real e pelo “30” de Bragança.
Quando deixou a tropa, no princípio da 2.ª guerra, conservou, por algum tempo, a farda numa mala para o que “desse e viesse” mas felizmente não chegou a ser necessária.
Um abraço
Fernando Gouveia
Meu pai, meu velho, meu camarada
Horácio Gouveia (1913-1977)
Irei falar do meu pai como tropa miliciano que foi. Vou, no entanto, começar por abordar um facto, ligado à Segunda Guerra Mundial, passado com o meu avô paterno.
Nordeste Transmontano. Naquele tempo a única riqueza que por lá existia era a terra.Vendiam-se azeite e amêndoa. Tudo o resto era para consumo próprio, sobrevivência. Todo o agricultor tinha sempre uma ideia em mente, adquirir mais terras, ladeiras.
Benigno Gouveia (1880-1951)
O meu avô Benigno, com sacrifícios, adquiriu, entre outros, um belíssimo prédio com cerca de doze hectares, a quinta, como lhe passaram a chamar. Apesar de se situar no Nordeste, a propriedade tinha (e tem) quatro poços onde a água corria, mesmo no verão, pelo prédio abaixo e que permitia que ali se desenvolvessem centenas de oliveiras e amendoeiras, vinha, árvores de fruta e óptimos chãos para horta, onde tudo medrava. Era a “menina dos olhos” do meu avô. Era raro o dia em que não ia lá, montado no seu cavalo, o Carriço.
Entretanto estourou a Segunda Guerra Mundial. Apesar de não termos entrado na guerra, muitos hábitos se alteraram, muitas novas situações surgiram como, por exemplo, o meu pai ter que ir diariamente ao botequim próximo tomar um café, ou não tomar, só para trazer para casa um pouco de açúcar para adoçar o leite ao seu filho, que por acaso nasceu (nasci) em 1942. Era o racionamento.
Pior que tudo, a dada altura, e porque a situação o impunha, pois poderíamos ter que entrar na guerra, requisitaram o cavalo do meu avô. Autêntica catástrofe emocional. Enquanto o cavalo andou lá pela tropa o meu avô não mais foi à quinta, seu prédio predilecto, fazendo lembrar e, salvo as devidas distâncias, os casos dos cães que, estando os donos no leito de morte, não mais se alimentam nem saem do tapete, acabando por acompanhar os donos na viajem para o além.
Como teria gostado de ver o meu avô, no momento em que um soldado lhe foi entregar o Carriço, após os nazis capitularem.
Sempre soube que, no quintal da casa dos meus avós, existiu um caramanchão de glicínias e ainda vi vestígios do seu enorme tronco. Um caramanchão, no Nordeste Transmontano, com o calor que faz no verão, é um local apetecível e indispensável, pelo menos para quem o pode ter. Soube, muito recentemente, que foi cortado pelo meu avô, na época da depressão que teve por causa da ausência do cavalo.
Sinto uma certa felicidade ao pensar que tive o privilégio de dar passeios num cavalo, em que se podia pendurar o chapéu no osso saliente da anca. Não era o Rocinante, era simplesmente o Carriço do meu avô.
Abraços
Fernando Gouveia
____________
Nota do editor
Último poste da série de 17 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14380: Meu pai, meu velho, meu camarada (44): Meu Velho, meu Amigo e meu Camarada (José Saúde)
3 comentários:
Fernando, que linda evocação, a do teu avô e do teu pai... E que fabulosa história é o amor do teu avô Benigno pelo cavalo Carriço que a tropa requisitou...
Em boa verdade, o que contas é perfeitamente versosímil... Vendo fotos do álbum do meu pai, Luís Henriques (1920-2012), que foi expedicionário em Cabo Verde (1941-43), dou conta da existência de muitos cavalos nessa época... O nosso exército ainda era então fracamente motorizado... E ter um cavalo era um símbolo de "status" no nosso país!
Sem dúvida uma história muito representativa daquela vida do nosso país rural, daqueles anos da nossa juventude.
Quando hoje vemos cães em apartamentos de castigo a ver televisão sentados nos sofá, a nossa geração e a dos nossos pais, corre o risco de sermos mal julgados pelos «amigos dos animais« de hoje.
Imagine-se um Carriço, a puxar um canhão a poder de chicote, ou uma parelha de barrosãs as puxar uma carroça com mil quilos de batata, ladeira a cima, a trabalhar de sol a sol...ai se um dia esta juventude se apercebe daquilo que muita da nossa geração fez sem compaixão e sem tractores!
Ter um "bom cavalo", era na realidade status, em todo o nosso mundo rural.
Também havia os cavalos dos ciganos que já eram um bocado contrafeitos, em 2ª ou 3ª mão para desenrascar na lavoura.
Dizia-se quando da eleição de Carmona contra Norton de Matos, talvez propaganda orquestrada por António Ferro, digo eu, que os comunistas, já tinham em todas as aldeias feita a distribuição dos melhores cavalos entre eles, porque o comunismo vinha aí.
Foi no ano da minha 4ª classe.
Cumprimentos
Caro Fernando
Este rebuscar no passado é sempre útil.
Aviva-nos a memória, faz-nos conhecer e reconhecer a importância de certos pormenores que hoje em dia são, aparentemente, de somenos.
E, já agora, deixa-me que te diga que acho que consegui 'ver' no teu relato o 'traço' que atribuo aos transmontanos: referem os assuntos sem muitos rodriguinhos, com um quase desprendimento emocional, mas o que contam tem sumo, tem intensidade.
Por exemplo, percebe-se muito bem quanto o afastamento do "Carriço" afectou o teu avô. O corte do caramanchão de glicínias foi como que um gesto de corte com o que lhe era agradável por solidariedade com a ausência do cavalo. É como se pensasse não ter direito àquele bem-estar, àquele pequeno prazer, enquanto um 'amigo animal' estaria, sabe-se lá como!
Relativamente à questão que o Luís coloca, pois não é de estranhar assim tanto na medida em que podemos lembrar a cavalaria polaca, com animais, a 'opor-se' à cavalaria alemã, com 'cavalos mecânicos' nos primeiros dias de Setembro de 1939.
Abraço
Hélder S.
Enviar um comentário