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Foto: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviando-nos mais uma das suas estórias, esta dedicada a uma "amiga muito especial".
Fiquem descansados que o nosso Zé Teixeira não se passou
Meus amigos.
Depois de umas “entradas” em beleza, espero eu, há que continuar a dar luz ao nosso blogue.
Junto um texto simples para recordar coisas boas das nossas guerras.
Votos de continuação de um bom ano
Abraços do
Zé Teixeira
Estórias do Zé Teixeira
44 - A “puta”
Passa o seu tempo, debaixo da sombra do cajueiro, junto à porta do Comando. Cobiçada por todos, a todos serve com carinho e enlevo. Lembram-se dela, quando se ouve ao longe o rrrrrroooommmmm da avioneta que traz noticias frescas à sexta, por vezes à segunda-feira. Correm para ela. Deixa-se montar. Suporta com o mesmo carinho; um, dois. Dez de uma assentada. Outros correm atrás dela.
Seguem-na com a esperança estampada no rosto. Regressa ao seu posto, trazendo as notícias frescas que todos ambicionam e por ali fica, atenta e disponível: A chuva pode cair a cântaros, ou ser apenas uma suave penugem húmida, o sol pode queimar a sua pele, liberta da pigmentação acastanhada que a fazia confundir-se com a selva, por onde se passeava nos seus belos tempos. Dia e noite, não arreda pé.
Consta que o “Sistema” a foi buscar à Alemanha no fim da guerra e a enviou para a Guiné. Aqui se deixou montar por muita gente. Preferia os mais graduados, de preferência de galões dourados e largos ou com estrelas. Parece que na Alemanha já era escolhida por esse tipo de gente. Com o fim da guerra na Europa, corria o risco de se perder, mas foi resgatada a tempo e viajou para o novel continente, ainda antes de este entrar em convulsão. Passeou pacificamente pelas picadas da Guiné durante anos. Envelheceu com o tempo e com o uso, perdeu a garra. Agora vai com todos. Geme dolorida quando a montam. Geme dolorida quando desata a correr pela estrada de terra batida. Há muito que foi dispensada de pisar as picadas e ainda bem. As minas que o inimigo gosta de colocar no terreno atirá-la iam pelo ar. A guerra nem a meio vai e ela sabe-o bem. Fala a experiência.
Está irreconhecível, mas continua firme no posto, preocupada em estar sempre disponível. Só não gosta do furriel mecânico. Talvez seja porque este andar sempre à sua volta. Aperta aqui, apalpa acolá. Quando ela amua, o que acontece muitas vezes, dá-lhe marteladas, por vezes pontapés.
Não sabe porque a apelidaram de “puta”. Já foi "Mercedes", nome que gostava muito. Perdeu-o quando chegou a Buba, já muito cansada de devorar quilómetros e ficou ao serviço do Comandante, sem sair do perímetro da Tabanca, devido à sua velhice. Habitou-se a ser de todos, sobretudo quando se ouve o rrrrroooommmm da avioneta do correio, ou outra que apareça, sobretudo se vier buscar feridos. Por gentileza e missão de serviço pode ser que traga uma enfermeira, que lembre as mulheres da mãe pátria.
O velhinho “jeep” que corre para a pista e transporta todas as semanas os nossos sonhos, talvez mereça a ternura de ser a “puta” de serviço permanente.
Buba, Maio de 1969
José Teixeira
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Nota do editor
Último poste da série de 16 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16841: Estórias do Zé Teixeira (43): O meu Natal perdeu todo o encanto no dia em que o Menino deu lugar a um velho de barbas brancas que trazia um saco às costas, a quem chamavam o Pai Natal mas não era o pai do Menino
4 comentários:
Zé, sabes escrever textos lindos e ternurentos. Este é um deles, acabei de o ler, deliciado...
Quem lê, distraído, o título, fica de pé atrás, a pensar que vem aí estória com bolinha vermelha ao canto superior esquerdo. Nem todas gente sabe que tu, sendo do norte, és escuteiro e chefe de escuteiros, para mais cristão e homem de princípios e de boas maneiras,pai de filhos, bom chefe de família, gerente bancário reformado...
Há muito"mouro" que não sabe que o termo "puta" e "filho da puta" é usado pela gente púdica do norte, noneadamente no Minho e no Douro Litoral, para nomear pessoas que nos são queridas, desde os filhos à parceira e ao parceiro...
A Alice, que trabalhou no Parque Nacional da Peneda Gerês, logo seu no incío, em 1971, contou-me que, nos inquéritos aos agregados familiares, era corrente as pessoas, muitas vezes, a mãe, a mulher, a donade casa, referirem-se aos animais domésticos,em termos delicsados "tenho, com a sua licença, um porco e duas ovelhas"... Os filhos, a "canalha", por sua vez, eram tratados de "puta para cima"... "Tenho três filhos da puta, dois rapazes e um arapariga"...
Esta é uma "puta" de uma estória que eu quero que incluas na antologia dos teus textos teus, que vais fazer, e vais publicar em livro, ainda este ano, pelo Natal, conforme conversa nossa de há dias, no ano passado, na Tabanca de Matosinhos...
Abraço fraterno, LG
Luís.
Creio que não é por ser cristão, escuteiro, chefe, etc, que sou melhor ou pior que qualquer outro.
Procuro sim ser um homem com H, o que não impede que possa brincar com as palavras e sobretudo divertir-me escrevendo. Podes crer que me deu gozo escrever este texto, imaginando-me no local a viver as emoções partilhadas quando se ouvia a avioneta. Como sabes, porque viveste o mesmo ambiente, pelo roncar do pássaro aéreo identificava-se o tipo. Só não se conseguia identificar o "já passou" ou seja o Fiat quando vinha baixinho.
Abraço.
Zé Teixeira
Caro amigo Jose Teixeira,
O Luis tem razao, aquela bonita expressao, vinda de si, quase que assusta. foi preciso "nao acreditar' e ler por ai abaixo para depois comecar a acalmar e finalmente libertar o gaz...UFF... eu sabia.
A ultima companhia que esteve em Fajonquito, a CCAC. 3549 era composta, na sua maioria, por gente do Norte, sobretudo do Porto e arredores. O meu patrao, o Dias (ja falecido e que era de Vila Nova de Gaia), quando precisava de mim so dizia o meu nome a primeira porque a seguir ja nao repetia o nome, dizia "Oh filho da Puta!!!". Parecia muito ofensivo e envergonhava-me, mas com o tempo eu aprendi a perdoar-lhe porque tratava a sua propria mae da mesma forma, do tipo: "a puta da minha mae", o que, entre nos, era uma blesfemia.
Obrigado Jose e continua a brindar-nos com o sorriso e as tuas boas memorias.
Um abraco amigo,
Cherno AB
Bem escrito e com ternura por uma figura típica
Leão Varela
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