segunda-feira, 1 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21029: Notas de leitura (1287): “Guerra e política, em nome da verdade, os anos decisivos”, por Kaúlza de Arriaga; Edições Referendo, 1987 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Motiva-me, de há muito, ajuntar o maio número possível de peças sobre a guerra colonial e o que depois se passou. Ao General Kaúlza de Arriaga gabe-se a franqueza: foi sempre um homem do regime, considerou-se um vanguardista em matérias de força aérea e energia nuclear. O que mais impressiona neste seu relato que tem a data de 1987 é a sua impossibilidade, à luz de documentação vinda ao lume posteriormente ao fim do Estado Novo, de poder equacionar em termos concretos as grandes determinantes da luta anticolonial e os apoios que colheu, muito longe de terem ficado confinados ao comunismo, como se fazia acreditar. E pasma-se como é possível escrever-se serenamente de que não tinha havido nenhum massacre em Wiriamu.

Um abraço do
Mário


Kaúlza de Arriaga, as suas queixas contra a descolonização

Beja Santos

“Guerra e política, em nome da verdade, os anos decisivos”, por Kaúlza de Arriaga, Edições Referendo, 1987, é uma compilação de textos em que uma das mais destacadas figuras militares ultranacionalistas apresenta a sua posição sobre a guerra no Ultramar, elenca aqueles que ele considera os casos fulcrais, expõe as doutrinas de guerra e a luta em Moçambique que na sua opinião caminhava para a vitória da posição portuguesa.

Segundo o antigo Comandante-Chefe das Forças Armadas de Moçambique as causas profundas da guerra foi a infiltração comunista no chamado terceiro mundo, a avidez de destroçar a posição de vanguarda em que se encontrava o Ultramar português, que nada tinha a ver com colonialismo opressores e exploradores, era naqueles territórios que se caminhava para a autodeterminações autênticas, que seriam atingidas provavelmente nos últimos anos da década de 1980 ou nos anos 1990. O nosso Ultramar, continua Kaúlza de Arriaga, estava dependente da confrontação Leste/Oeste, Moscovo queria passar para a sua órbita Angola e Moçambique, para poderem ser utilizadas como bases privilegiadas contra a Namíbia e a África do Sul. O 25 de Abril significou a apostasia e a traição, a posição portuguesa era legítima, no Ultramar agia-se mediante uma guerra construtiva e defensiva e diz explicitamente: “Outro aspeto importante da guerra contra-subversiva no Ultramar português foi a grande humanidade com que as operações, mesmo as especificamente militares, eram conduzidas e executadas (…) dificilmente se encontrará onde e quando se tenha ido mais longe em matéria de acolhimento de prisioneiros”. As forças armadas foram bem-sucedidas na contra-subversão, promoveram as populações, travaram o terrorismo, e culmina com a seguinte afirmação: “Pelo menos em Angola e Moçambique, a contra-subversão conduzida pelas forças armadas e pelas autoridades civis estava inequivocamente muito próxima da vitória final”.

Destas considerações, o general salta para o período pré-25 de Abril e para um célebre almoço que teve lugar em Lisboa, em 14 de Setembro de 1973, onde estiveram presentes os Generais Venâncio Deslandes, Fernando Resende, António de Spínola e Kaúlza. Escreve-se que ali se fez uma análise aprofundada do que ocorria na metrópole, muito com consequências perigosas para o Ultramar, tendo-se concluído da séria conjuntura que se vivia e da possível incapacidade do governo para a enfrentar. Segundo Kaúlza, Marcello Caetano tinha sido ultrapassado pelas organizações e por acontecimentos. E di-lo com a maior das clarezas: “Impunha-se que os generais, chefes das forças armadas em guerra e em operações activas, na sua qualidade de exemplo primeiro, assumissem as suas responsabilidades, fazendo sentir ao poder vigente, firme e decisivamente, as mudanças que se tornavam indispensáveis”. Spínola terá dito que não desejava trabalhar com os outros generais, ele faria sozinho, com a sua gente e quando o entendesse o seu 28 de Maio. O Major Carlos Fabião encarregou-se de estragar a festa, em 17 de Dezembro, no Instituto de Altos Estudos Militares terá alertado para um golpe de generais ultra em preparação. Kaúlza queixou-se de Fabião, ninguém lhe ligou. Apareceu o livro de Spínola, Kaúlza esteve três vezes no primeiro trimestre de 1974 com Américo Thomaz, este também não teve coragem de tomar as medidas consentâneas. Segundo Kaúlza chegara-se à movimentação dos capitães a partir de três casos e situações determinantes: a remodelação ministerial de 7 de Novembro de 1973, a publicação do livro de Spínola e a passividade ou cumplicidade do governo perante o MFA. Chegara o descalabro, também explicado pela marxização europeia, e assim se deu a colocação plena na órbita do imperialismo comunista das nossas parcelas africanas.

Kaúlza de Arriaga em cerimónias do 10 de Junho

Kaúlza foi detido por associação dos acontecimentos do 28 de Setembro de 1974. Acusa gente vingativa como Costa Gomes e Galvão de Melo. Juntou-se a um grupo de 18 cidadãos portugueses que apresentaram uma queixa, em finais de Dezembro de 1979 na secretaria da Polícia Judiciária contra Mário Soares, Almeida Santos, Melo Antunes, Costa Gomes, Rosa Coutinho, Vítor Crespo, Otelo Saraiva de Carvalho, Pires Veloso, Vicente de Almeida d’Eça e outros, como os membros do Conselho de Estado que deram pareceres favoráveis aos acordos que conduziram à descolonização. Fala do seu empenhamento na definição de doutrinas de Estratégia e descreve minuciosamente o programa da cadeira de Estratégia que ministrou no Instituto de Altos Estudos Militares, dá-nos conta da correspondência que travou com Salazar, das suas conferências alusivas à ação estratégica em África, teve, à semelhança de Spínola, boas relações iniciais com Marcello Caetano, acabou tudo em discórdia. As memórias amontoam-se, fala-se do 13 de Abril de 1961 em Angola, do desastre da Índia portuguesa, do conflito entre Adriano Moreira e Venâncio Deslandes, enfim, da degradação e desmoralização das forças armadas. De várias procedências, fizeram-lhe convites para se candidatar à presidência da República, inclusivamente para se confrontar com Américo Thomaz. Não perdoa a Costa Gomes, em 1973, não lhe ter dado mais meios efetivos, para combater o terrorismo em Moçambique.

Momentos há, enquanto se lê esta narrativa, em que questiona se Kaúlza só estava preocupado com Angola e Moçambique, tratava a Guiné como uma subalternidade, uma esquirola em confronto com duas províncias opulentas, e é nesse contexto que se pode ler o que ele pensa:  
“A questão começava em saber-se se a Guiné podia defender-se, sem prejuízo inaceitável para as lutas em Angola e Moçambique, em face da absorção desproporcionada de atenções e de meios contra-subversivos a que se dava lugar. Isto porque a importância da Guiné era, no Conjunto Português, mínima em contraste com a das grandes e prósperas províncias de Angola e Moçambique que, com a metrópole, constituíam a parte fundamental de tal conjunto. Punham-se duas hipóteses. A primeira, a da Guiné ser defensável sem prejuízo das lutas em Angola e Moçambique, havendo nesta hipótese, evidentemente que defendê-la. A segunda, a da defesa da Guiné se projectar, nas mesmas lutas de Angola e Moçambique, com significativo retardamento ou grande prejuízo do êxito português, havendo, nesta outra hipótese, que encontrar-lhe uma solução própria. Parece que, na opinião de Spínola, a guerra na Guiné não poderia vencer-se em termos militares, devendo, em consequência, procurar-se uma solução política. Creio que esta opinião não tinha muito sentido, porque, sendo a subversão/contra-subversão uma luta total, em que o factor militar não é o mais importante, a vitória contra-subversiva só podia, em regra, ser conseguida pelo conjunto de forças de um país lideradas pela Alta Política, e raramente apenas pelas suas Forças Armadas”.

Kaúlza de Arriaga anda num vaivém entre o seu presente e o seu passado, é muito repetitivo, como se disse, dava a luta em Moçambique como vitoriosa, estava mesmo tão vitoriosa que exigia muitíssimos mais efetivos para ficar em Moçambique, diz que houve pseudomassacres em Moçambique, nada aconteceu em Wiriamu. Suficientemente modesto e discreto, deixa na contracapa uma citação de Luc Beyer de Ryke, um jornalista belga que sobre ele escreveu em 25 de Setembro de 1973: “Kaúlza de Arriaga é um carácter e uma lenda. Para os seus adversários é tido como o Massu (célebre oficial paraquedista francês) português. Na verdade, este homem que cultiva com muita arte o sentido das relações públicas, pareceu-nos mais subtil, mais inteligente que Massu. General vitorioso no Norte, não tendo ainda forçado e selado a decisão em Tete, a Kaúlza de Arriaga poder-se-ia aplicar a frase de Barrès: tem sempre o cérebro no punho de um sabre”.

Junta-se o texto de uma notícia que vinha dentro deste livro que adquiri na Feira da Ladra, ao princípio da manhã de sábado, 11 de Março de 2017.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21023: Notas de leitura (1286): "A batalha do Quitafine: a contraguerrilha antiaérea na Guiné e a fantasia das áreas libertadas", edição que acaba de sair do antigo ten pilav José Nico, BA 12, Bissalanca, 1968/70

2 comentários:

armando pires disse...

Pena que, na foto, a figura de Kaúlza não me deixe ver quem, lá ao fundo, empunhava o brasão do meu BCAÇ 2861.
E quem lhe confiou tal direito.

Antº Rosinha disse...

"... Moscovo queria passar para a sua órbita Angola e Moçambique, para poderem ser utilizadas como bases privilegiadas contra a Namíbia e a África do Sul."

Esta afirmação do General foi confirmada pelo esforço brutal da União soviética, com aquela guerra de 30 anos em Angola que embora os cubanos dessem o corpo às balas, o equipamento militar e os técnicos eram russos, até à exaustão.

Só que os Sulafricanos só negociaram com Mandela, após a perestroica, já a URRSS tinha esgotado.

A maior vítima foi o povo angolano e também o Moçambicano, daquela guerra fria leste/oeste.

Nós enfim, ninguem nos pode acusar que não tentámos evitar o pior.

O pior está aí! ou ainda alguém pode imaginar que podia ser pior?