IN MEMORIAM
Queta Baldé (1943-2021)
Ex-Soldado do Pel Caç Nat 52 e 2.ª CComandos Africana
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de hoje, 1 de Novembro de 2021:
Queta Baldé, o meu querido 126, o construtor do meu Diário da Guiné, deixou-nos
Mário Beja Santos
O confrade Carlos Silva telefonou-me no intervalo de um congresso de antigos combatentes, ali para a linha do Estoril, deu-me a saber que alguém fazia questão de me informar que falecera o Queta, pedi mais esclarecimentos, sim, era Queta Baldé, o 126, finda a sua comissão militar no Pel Caç Nat Nº 52 concorrera à 2ª Companhia de Comandos Africana, foi aceite, veio a independência, e correndo o risco de ser preso ou fuzilado conseguiu chegar ao Senegal e daqui a Marrocos, contou com a solicitude da Associação dos Comandos, veio para Portugal, instalou-se em Chelas J, veio a Cadi, apareceram os meninos, entrei em cena, a casa onde viviam tinha tanto bolor que se lavava com lixívia à segunda-feira e dois dias depois estava tudo enegrecido. Fizeram-se diligências, o menino mais velho tinha asma agravada, mudaram de casa. E sem obrigatoriedade de data o Queta era sempre uma presença no almoço dos bravos do pelotão, religiosamente bacalhau com batatas, vinha o Mamadu Camará, o Cherno, o Abudú, chegou a participar no repasto o Benjamim Lopes da Costa.
Quando, em 2006, tomei a decisão demencial de escrever os Diários da Guiné, perguntei ao Queta se me podia ajudar a ultrapassar o claro-escuro de certas situações que tínhamos vivido em Missirá. Acedeu prontamente, e passámos a ter encontros semanais na Praça Duque de Saldanha, ele saía da empresa onde fizera cerca de 12 horas de vigilância e começava a sabatina. Havia antecipadamente um telefonema para o pôr ao corrente das minhas dúvidas, quem era quem, que itinerário tínhamos seguido naquela volta junto ao rio Gambiel até Salá, se se recordava dos seis trajetos diferentes que nós utilizávamos para chegar a Mato de Cão sem pisar as picadas convencionais, se se lembrava da data em que tínhamos ido pela primeira vez ao Buruntoni… E cedo começou o meu deslumbramento com a sua memória de elefante.
Explicou-me ao detalhe como chegaram a Missirá para substituir a Companhia do Enxalé, como se constituíra o Pel Caç Nat 52 que tivera como seu primeiro comandante o Henrique Matos Francisco, as operações a Madina, as populações de Missirá e Finete, as múltiplas suspeitas de que o PAIGC não queria fazer grandes ondas na região porque tinha vias de abastecimento em direção a Mero e aos Nhabijões, e assim evitava conflitos, a partir do momento em que havia vigilância em Mato de Cão qualquer possível ataque ficava reservado a quem se posicionasse em Ponta Varela.
E saindo de um contexto geral, deixava-me de boca aberta com as horas a que saíamos para os patrulhamentos, sempre com a sua linguagem pausada ia ataviando os locais por onde passávamos, a descoberta dos trilhos usados pelas gentes de Madina e Belel, reproduzia emboscadas elencando o nome de quem lá tinha estado. Tentei pô-lo à prova e perguntei-lhe se se lembrava de uma emboscada lá para os lados de Chicri onde alguém perdera uma peça de roupa e exigia recuperá-la, não me deixou continuar, era a boina verde do Cabo Barbosa, sim, tínhamos saído dali a correr pela noite calada, no dia seguinte lá se descansou quem tinha perdido o fetiche da boina, e o Queta sentenciou: “Manga de canseira, mas que gente tão porreira, nosso alfero!”
Dei-lhe a alegria de ir visitar a Amedalai o seu filho mais velho, o Queta recusou-se a voltar à Guiné, a vida familiar também o deixou causticado, nos últimos anos vivia sozinho para os lados da Amadora, guardo dele um belo sorriso, um olhar translúcido, as suas mãos a afagar os livros que lhe oferecia, particularmente o segundo volume do Diário da Guiné em que ele aparece ao alto na fotografia tirada no dia de Natal de 1969 na ponte de Undunduma. Durante anos fez sala na Praça do Rossio, no último banco já perto do Largo de São Domingos, ali conversávamos, perguntando por este e aquele, não faltou às cerimónias fúnebres dos meus entes queridos. Foi adoecendo, mesmo antes da pandemia, arrastava-se, os telefonemas passaram a ser taciturnos, não tinha forças para vir comer o bacalhau, deixei de o ver no banco onde fazia sala, perguntava por ele, estava no hospital, o telefone deixou de atender.
E assim chegamos a mais uma perda irremediável, alguém que me deu o privilégio de uma estima recíproca, que funcionou como agente de informação e de vigilância na urdidura daqueles diários, estou a vê-lo a acariciar os livros, a ver os mapas do Cuor, de Bambadinca e do Xime, a recordar-me que começara a vida como tocador de batuque e assim percorrera a pé toda aquela região do Corubal até ao Xitole. Apaga-se mais uma luz daquele memorável palco onde construí a minha consciência de homem, e nada mais posso fazer de que vergar-me respeitosamente não só pela sua memória mas pelo seu contributo indefetível, como bravo soldado que foi, o 126, o companheiro que exigiu a minha presença em Lisboa em horas tão difíceis da sua vida, que me ofereceu a sua disponibilidade para que não faltasse a que dar a certidão da verdade naquele tempo de guerra que vivemos irmanados. Seguro que lá estás a sorrir à direita de Deus, aqui deixo esta nótula de quem fica profundamente desconfortado com a tua partida, abraço-te calorosamente, nha ermon, Mário
2008, o Henrique Matos Francisco e o Queta Baldé no lançamento do Tigre Vadio
A Missirá dos tempos em que o Pel Caç Nat 52 aqui chegou (1967)
25 de dezembro de 1969, ponte do rio Undunduma, o Queta Baldé está ao alto, primeiro Mamadu Djao com uma cana na mão, segue-se Jogo Baldé de não na anca, Queta Baldé imaculadamente fardado____________
A tertúlia e os editores deste Blogue não podem deixar de associar à dor dos seus familiares e amigos na Guiné-Bissau e em Portugal pela perda deste seu ente querido, também nosso amigo e camarada de armas.
Mais um dos bravos irmãos naturais da Guiné que lutaram ao nosso lado e que nos deixa.
Um especial abraço ao Mário Beja Santos, seu comandante no Pel Caç Nat 52 e amigo pela vida fora, já que o Queta morou, desde a independência da Guiné-Bissau, sempre em Portugal, onde acaba de falecer.
A partir de hoje, o nosso camarada Queta Baldé, ficará, a título póstomo, a figurar na lista dos nossos amigos que da lei da morte já se libertaram. Tem o lugra nº 854.
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Nota do editor
Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22660: In Memoriam (416): Victor Barata (1951-2021), ex-1.º Cabo da FAP, Especialista de Instrumentos de Bordo, BA 12, Bissalanca, 1971/73; membro da Tabanca da Grande desde maio de 2006 e fundador, em junho de 2007, do blogue Especialistas da BA 12... Era um "Zé Especial", tratado com muito carinho por "Vitinho"... Velório: hoje, a partir das 16h00 em Campia; Vouzela; missa de corpo presente às 15h00 de amanhã, seguindo depois o féretro para a Casa Crematória de Viseu
6 comentários:
Expresso os meus sentimentos à família e amigos próximos do camarada Quetá Baldé.
Carvalho de Mampatá
Tive conhecimento do falecimento do Queta Baldé através de outros camaradas guineenses no passado sábado no decorrer do 1º Congresso dos Antigos Combatentes realizado no auditório do Colégio dos Maristas em Carcavelos.
Conhecia pessoalmente o falecido e por vezes encontrava-me com ele e outros camaradas em "Bissau II", diga-se Rossio.
Que o nosso amigo e camarada Queta Baldé, descanse em paz e aproveito para apresentar à família enlutada os meus sentimentos.
Carlos Silva
Conheci-o ou, ou melhor, reconhecia-o no lançamento do livro do Beja Santos, o "Tigre de Missirá"... Fizemos operações juntas, a CCAÇ 12 e o Pel Caç Nat 52. É mais um dos já poucos camaradas guineenses que restavam, que nos deixa. Fica, em todo o caso, a sua memória guardada no nosso blogue. O Queta Baldé senta-se, agora, à sombra do poilão da Tabanca Grande, no lugar nº 854.
Apresento os meus sentidos pêsamos a todos os familiares e amigos deste nosso camarada de armas.
JPicado
Noticias que não gostamos de receber, mas é a lei a vida.
Fica bem guardado à sombra do poilão da Tabanca Grande.
Henrique Matos
Beja Santos, extraordinário testemunho.
'...perguntava por ele, estava no hospital, o telefone deixou de atender.'
Valdemar Queiroz
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