quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1366: A galeria dos meus heróis (6): Por este rio acima, com o Bolha d'Água, o Furriel Enfermeiro Martins (Luís Graça)

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Natal de 1969 > Sargentos e furriéis da CCAÇ 12 (1969/71) e da CCS do BCAÇ 2852 (1968/70).

Legenda: (i) da esquerda para a direita, na 1ª fila: o Jaime Soares Santos (Fur Mil SAM, vulgo vagomestre); o António Eugénio da Silva Lezinho, Fur Mil At Inf; o António M. M. Branquinho, Fur Mil At Inf; o Humberto Simões dos Reis, Fur Mil Op Esp; o Joaquim A. M. Fernandes, Fur Mil At Inf);
(ii) da esquerda para a direita, 2ª fila, de pé: 2º Sargento Inf José Martins Rosado Piça; o Fur Mil Armas Pesadas Inf Luís Manuel da Graça Henriques; um 2º sargento, de cujo nome não me lembro; o 1º Sargento Cav Fernando Aires Fragata; o Fur Mil Enfermeiro João Carreiro Martins; e um outro 1º sargento de cujo nome também já não me lembro mas que julgo ser da CCS do BCAÇ 2852... (LG)


Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.




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Guiné > Rio Geba > LDG Bombarda > A caminho do Xime > 2 de Junho de 1969 > O Fur Mil Ap Arm Pes Inf Henriques, da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12),  um periquito a bordo... Destino: Contuboel (em coluna auto a partir do Xime, com passagem por Bambadinca e Bafatá)...

Foto: ©
Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados reservados.

O cruzeiro das nossas vidas (1): do Niassa à LDG Bombarda ou o meu primeiro herói, o Pastilhas da CCAÇ 12 (2)

por Luís Graça



(i) A bordo do Niassa. 28 de Maio de 1969

Eis-me nos tristes trópicos, parafraseando o título brasileiro do livro de viagens e de etnografia do Lévi-Strauss que levo na babagem que está no porão. Atravessei hoje o Trópico de Câncer, com velocíssimos peixes voadores e alguns alegres golfinhos a acompanhar-nos. Lembrei-me do romance escaldante do Henry Miller que li em tempos, em edição brasileira, mais tarde proibida pela ditadura militar.

Lembrei-me sobretudo do meu velhote, que esteve em Cabo Verde, como expedicionário (adoro a palavra!), com o posto de 1º cabo, em plena II Guerra Mundial. E das histórias de tubarões que ele me contava, quando criança. Ele gostava de fazer mergulho e nadar, na baía do Mindelo, mas tinha medo que se pelava dos tubarões! (3).

Cabo Verde > Ilha de São Vicnete > Mindelo > 1943 > 1º Cabo Inf Luís Henriques

Legenda: "No dia em que fiz 22 anos tirei esta fotografia em Mindelo, celebrando as minhas vinte e duas primaveras felizes. Luis Henriques. Em 19/8/943. S. Vicente, C. Verde. Senti neste dia muitas saudades dos meus, dos amigos e também da minha terra [, Lourinhã]. Luís".


Foto: © Luís Graça (2005). Todo os direitos reservados.




Do fundo da memória, vêm à superfície fotos amareladas de barcos e tubarões. Barcos ingleses, italianos, alemães, portugueses, ancorados na baía do Mindelo, ou ao largo, numa entente cordiale... Lembrei-me de um deles, o Mouzinho de Albuquerque, que tomou o nome de um trágico herói colonial... Dizem que o Mouzinho, o herói de Chaimite, se suicidou por não suportar o boato que corria nos mentideros de Lisboa de que era o amante da rainha Dona Amélia, fidelíssima esposa do seu amado rei D. Carlos...


A bordo do Niassa perguntava-me a mim próprio:

- E se Cabo Verde tivesse sido invadido, em 1941, 42 ou 43, como ao que parece chegou a estar nos planos dos Aliados ou até das potências do Eixo ? Muito provavelmente eu nunca teria nascido, ou se tivesse nascido falaria alemão,  e não estaria agora a caminho da Guiné, a bordo do Niassa, um navio da carreira colonial fretado pelo exército…



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1942 > O Paquete Mouzinho.

Foto: ©
Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.


Alguém se lembrou, entretanto, de abrir uma garrafa de champagne (um espumantezeco nacional, de cabaré) como se tivéssemos atravessado o Equador em alegre cruzeiro de meninos ricos de colégio fino pelo Atlântico Sul. Com um sorriso verde-amarelo, também participei neste ritual de iniciação, erguendo a minha taça:

- Afinal, estamos todos no mesmo barco! – comentei para o meu parceiro do lado, o Furriel Miliciano Enfermeiro Martins.

Não sei se ele terá percebido o meu humor negro. Não era tipo para achar piada ao meu sentido de humor. Recordo-o, ainda hoje, como um homem simples, sensível, tímido, reservado, com ar bonacheirão mas assustado, a par de uma calvície precocemente galopante:

- Estamos todos no mesmo barco, Martins!... Quero eu dizer: estamos fodidos, quilhados, embarcados numa aventura que pode ser sem regresso… - repetia-lhe eu, em vão.

Eu que me julgava um tipo bem educado e civilizado, comecei a falar mal desde que soube da minha mobilização para a Guiné, em finais de 1969. A falar mal, a beber e a fumar. Falava-se mal, na tropa. Bebia-se e fumava-se, em demasia, no meu tempo de tropa. Como se o Niassa fosse uma extensão marítima do Cais do Sodré e das suas espeluncas. O Martins era incapaz de dizer uma asneira: constava-se que já era enfermeiro na vida civil… Mas eu sabia pouco ou nada dele. Sabíamos muito pouco uns dos outros.

A bordo comia-se e bebia-se o dia todo para matar o tédio, para suportar a angústia da viagem, para fazer lastro e sobretudo para não dar parte de fraco e andar a chamar pelo Gregório pelos cantos do navio. Não há gajas, queixava-se o Videira, 2º sargento do quadro, que à última hora ainda desafiou a malta para ir fazer a despedida ao Bairro Alto.

Era a velha tradição das rotas da navegação colonial. Havia os viciados da lerpa e do king. Como haveria depois, no teatro de operações da Guiné (no TO da Guiné, para utilizar a nossa linguagem de código), os viciados do álcool, da comida, do sexo, da caça, da guerra, da escrita diária de aerogramas às madrinhas de guerra…


Os oficiais superiores, esses, divertiam-se com o tiro ao alvo na popa do navio, enquanto a malta da turística escrevia cartas, aos pais, namoradas, noivas e mulheres, cartas que eu imaginava já molhadas de lágrimas salgadas e de saudades.

As praças, essas, vomitavam nos porões. Um riacho de água verde-escura escorria pelo convés. Todo o navio fedia, tresandava a merda,  e no meio do cheiro nauseabundo havia um desgraçado de um desertor que ia a ferros, qual gado levado para feira. Diziam que fora apanhado pela Pide na fronteira de Vilar Formoso, e recambiado para Santa Margarida, ainda a tempo de apanhar o comboio-fantasma até ao Cais da Rocha Conde de Óbidos onde o esperava o Niassa.

- De mal o menos, ia como básico, para a Guiné. Melhor do que ser atirador ou ficar a apodrecer no presídio militar…- pensava eu.

O pobre do desertor era alvo da chacota da maralha: alguém insinuara que o gajo era maricas e que não teve tomates para ir para a guerra… Era um velho truque da velha instituição militar que das tripas sabia fazer coração, que da merda fazia nervos de aço... Só para manter o moral das tropas, só para aguentar a guerra…

- Até quando ? - interrogava-me eu, em silêncio.

- Lembrem-se, seus cabrões, que vocês são a fina flor da nação! – massacrava-nos o tenente Esteves, na parada em Tavira, no Curso de Sargentos Milicianos…

Dentro de um dia desembarcaríamos na Guiné da qual espantosamente eu não sabia nada a não ser aquilo que me haviam impingido nos bancos da minha velha escola do Conde de Ferreira e que eu teria reproduzido, como um papagaio, no exame da 4ª classe ou da admissão:
- Descoberta pelo navegador português Nuno Tristão, que viria a ser morto pelos indígenas ao tentar desembarcar numa das ilhas do arquipélago dos Bijagós, a Guiné tem mais do que um terço da superfície de Portugal Continental...

E acrescentava, de acordo com o livro de leitura:

- O clima é tropical húmido, e o território muito plano e baixo, com vastas regiões alagadiças e pantanosas, o que torna difícil a adaptação do europeu. Quanto à vegetação, predomina a floresta tropical e a savana arbustiva. A população – um pouco mais de meio milhão de almas – divide-se por uma grande variedade de grupos da raça negra, sendo os mais importantes os balantas, animistas, e os fulas, islamizados.


E finalizava com a informação sobre a econonomia da província:Desde que deixáramos as Canárias, que eu não suportava aquele calor pegajoso, aquela angústia difusa que destilava através dos poros da pele. Tinha sintomas de febre e já não sabia distinguir onde acabava a realidade e começava o delírio.

De facto tudo fora tão brutal: a ordem de mobilização recebida em Castelo Branco; a ressaca dos primeiros copos na noite do tremor de terra; a apresentação em Santa Margarida, a Escola Preparatória de Quadros e a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO)  com os rocambolescos assaltos nocturnos aos bivaques do inimigo para sacar tudo o que fosse bebível e comestível; os breves dias, tristes, de licença antes do embarque; a viagem directa, nocturna, quase clandestina, em comboio especial até ao cais de embarque, no porto de Lisboa; os capacetes brancos dos polícias militares; os nossos familiares e amigos de rosto tenso, alguns de gravata preta; as gaivotas estranhamente pousadas nos mastros dos navios; as fragatas do Tejo, silenciosas mas tensas; os guindastes, o Tejo, a ponte que, de Almada, eu vira elevar-se das águas nos primeiros anos de 60; o Cristo-Rei, de braços abertos como um espanta-pardais numa tela de Dali; o apito breve mas pungente do navio, breve como um tiro, arrepiante como o sentimento indefinível de quem em Lisboa partia e de quem em Lisboa ficava; o marinheiro que soltava as amarras, um vulto, uma mão, um lenço…

E, já no mar alto, ao largo dos Açores, eu próprio tivera a sensação de ter atravessado o pórtico do tempo e entrado num barco-fantasma, sobrevivente da odisseia dos antigos nautas, à deriva nos medonhos mares de que nos falavam as velhas histórias trágico-marítimas…

Que fazia eu, que fazíamos nós – o Martins, o Videira, o Piça, o Tony, o Humberto Reis, o Fernandes, o Luciano, o Sousa, o Marques, o Arménio, o Gabriel , o Abel, o Carlão, o Moreira e tantos outros, centenas e centenas de homens, milicianos ou do contigente geral -, acondicionados como gado em porões nauseabundos, ali naquele barco da carreira colonial, vogando fora do tempo e do espaço, como se Gil Eanes nunca tivesse dobrado o temido Cabo Bojador, desfeitas as lendas do Mar Tenebroso e assim aberto o caminho marítimo para o longínquo sul, para o fim do mundo, e para os eldorados que havia por achar?!...

- Duplamente embarcado, meu velho. Fodido, quilhado! – repetia eu, de novo para o Martins, ao avistarmos ao longe a luz trémula do farol da
Ilhéu dos Pássaros, à entrada do Porto de Bissau, e ao ouvirmos pela primeira vez uma tempestade tropical que, no meio do alvoroço provocado pelo grito Terra à Vista!, alguém confundira com o tão temido ribombar dos canhões.

- As principais exportações são o amendoim, o coconote, as madeiras exóticas e o óleo de palma. A capital e a residência do Governador é a linda e moderna Bisssau.

Foi a pensar nas zonas pantanosas e alagadiças da Guiné, nos seus mil e rios e braços de mar, nas suas margens lodosas, nos seus tentáculos traiçoeiras, que eu encomendei ao meu velho, pomposamente colectado nas finanças como industrial de sapateiro, um par de botas de cano alto, à cavaleiro... Julgava eu, na minha santa ignorância ou ingenuidade, que ficaria melhor protegido contra as temíveis sanguessugas e víboras... Felizmente, tive o bom senso de cancelar a encomenda à última hora, com as medidas e a forma do pé já nas mãos de um dos oficiais de sapateiro que trabalhavam para o meu pai...


- Tite, Fulacunda, Buba! - alguém alvitrava nomes, como se fosse o cicerone daquele estranho tour by ngiht de aproximação à capital de um país em guerra...



(ii) Bissau. 29 de Maio de 1969

No dia seguinte, de manhã, desembarcávamos numa cidadezinha térrea, de casas térreas, de adobe, rachas de cibe e chapas de zinco, com quintais cheios de mangueiras, e onde em dois ou três quarteirões feitos a régua e esquadro se concentrava a administração, o comércio e a tropa (4).

Nas ruas, sujas das primeiras enxurradas de Maio, putos vendiam mancarra e eu começava a aprender as minhas primeiras palavras de crioulo. Gilas, de balandrau branco, óculos de sol e transistor a tiracolo, mercadejavam bugigangas de contrabando, falando um estranha mistura de francês, crioulo e dialectos locais (5). Os sons, os sabores e as cores de África baralhavam-me os sentidos e as emoções.


Nunca esquecerei aquela baforada de ar quente quando, nos primeiros dias, saímos dos Adidos e púnhamos o pé em cima da terra vermelha escaldante ou do asfalto quase líquido... E dos primeiros pesos gastos em bebidas de latas bem geladinhas... Foi em Bissau - creio eu - que eu pela primeira vez vi bebidas em lata que se bebiam dum sorvo, à sombra de uma magueira ou debaixo de uma ronceira ventoínha... Foi em Bissau que descobri a Seven-Up, a Orange ou a Coca-Cola, em lata...

Em relação à Cola-Cola, devo confessar que não me tornei fã, talvez por uma razão tão esrtúpida como  político-ideológico: partilhava dos preconceitos da época segundo a qual a Coca-Cola era a água suja do imperialismo norte-americano...

As imagens que eu tenho de Bissau, entre 30 de Maio e 2 de Junho de 1969, são fugidias, impressionistas, estereotipadas... Logo de manhãzinha, já as esplanadas estavam cheias de tropa à civil, beberricando cerveja, enquanto no mastro da fortaleza oitocentista da Amura flutuava uma descolorida bandeira verde-rubra. Indiferente aos velhos canhões de bronze, uma mulher passava com o filho às costas e um balaio à cabeça. Canoas talhadas em grossos troncos de poilão partiam do mítico cais do Pijiguiti, sulcando as águas lamacentas da Ria, em busca de mafé. Ronceiros aviões levantavam voo de Bissalanca e, no meio da praça do Império, em cima de um Unimog, de pé e de braços abertos, alguém de nós, militar, exclamava:
- Camaradas, cinco séculos de história vos contemplam!


(iii) Pelo Geba acima, na LDG Bombarda

Três dias depois iriam dar-nos uma G-3, novinha em folha, e uma ração de combate, para de seguida nos porem no fundo duma LDG, a caminho do Leste, Rio Geba acima, escoltados por uma equipa de fuzileiros navais que, à medida que o ri estreitava, batiam com fogo de morteirete a cerrada vegetação das margens (o tarrafe) até às proximidades do Xime…

Íamos dois, eu e o Martins, sentados em cima de uns colchões de espuma, empilhados numa Berliet… O fogo de morteirete dos fuzileiros apanhou-nos de surpresa… Qual não é o meu espanto quando o Martins, à saída da primeira granada se lançou de cabeça para o fundo da LDG!… Eu, que era de armas pesadas de infantaria, não tive felizmente reflexos tão rápidos como os do Martins que, na queda, acabou por ser a nossa primeira vítima na Guiné.

Com um olho à Belenenses e com contusões no rosto, o pobre do Martins, por ironia enfermeiro, foi o primeiro de nós a testar a competência dos nossos cabos maqueiros, seus subordinados dos serviços de saúde militar, que, noutras circunstâncias bem mais dramáticas, irão salvar a vida a alguns de nós…
- Como um cão apanhado na rede! - resmungava eu sentado na capota da Berliet, prescrutando a linha do horizonte, a bordo da LDG Bombarda...

Pobre Bolha d’Água, pobre Pastilhas!... A alcunha, as alcunhas, ficaram-lhe para sempre coladas à pele. Hoje, reconstituindo os acontecimentos em retrospectiva, penso que ele foi o meu primeiro herói, ou melhor, o meu primeiro anti-herói: nunca o vi a pegar uma arma, duvido até que fosse capaz de pôr a G-3 em posição de tiro; nunca alinhou connosco em operações, mesmo nas grandes operações; recordo-o sempre de bata branca, na palhota que servia de enfermaria, no posto médico de Bambadinca, e onde todos os dias uma interminável fila de mulheres, crianças e velhos aguardava a sua consulta de enfermagem (alguns seguramente gente de Nhabijões, quiçá até vivendo no mato, sob controlo do PAIGC...


Como enfermeiro, era um tipo competente, despachado, lesto, e a quem de resto recorríamos, com frequência, para picar as nossas bolhas de água nos pés, curar os nossos esquentamentos, com umas valentes doses de penicilina, ou aliviar os febrões do nosso paludismo..

Ele foi o mais útil de todos nós, soube cuidar de nós e da população local... Em contrapartida, gostávamos de lhe pregar partidas, algumas de mau gosto, gratuitas e até perigosas: recordo-me de um dia - às tantas da noite, no regresso de uma emboscada - o termos acordado, com uma pistola Walther apontada à cabeça; ou de o termos obrigado, com a cumplicidade do comandante da CCAÇ 12, já na parte final da comissão, a vestir no camuflado, a pegar na G-3 e a pôr ao ombro a mochila dos primeiros socorros... Simulámos uma ida ao mato, soprando-lhe ao ouvido um temível nome como Ponta Varela, Poindão ou Ponta do Inglês... Dissemos-lhe que ele não nunca poderia voltar connosco a Lisboa, virgem, sem o baptismo de fogo...

Cinquenta metros depois de termos passado a porta de armas a caminho do objectivo, o Martins teve um colapso, um ataque de pânico, vomitou por cima e por baixo, acabou por ser ele a pregar-nos um grande susto... Levámo-lhe de urgência ao posto médico...

No dia seguinte lá estava ele a servir as suas pastilhas aos doentes africanos, de Bambadinca, Bambadincazinha e tabancas dos arredores... Era aí que ele se sentia gente, e sobretudo enfermeiro a tempo inteiro... Um homem absolutamente deslocado na tropa e na guerra...

Voltei a encontrá-lo, muitos anos mais tarde - vinte anos depois - , numa situação algo insólita: era enfermeiro chefe no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, e estava a agora a frequentar um curso de administração de serviços de enfermagem, na Escola Superior de Enfermagem Maria Resende. Os nossos papéis agora eram outros: ele, aluno; eu, professor...

Sei que ele hoje está reformado... Voltei a encontrá-lo mais tarde e lembro-me de ele me ter falado, com muito orgulho, com um brilhozinho nos olhos, dos seus seus dois filhos, agora médicos... Perdi-lhe depois o rasto, mas confesso que gostaria de voltar a encontrá-lo, em Lisboa, ou aqui na nossa tertúlia, para lhe dizer que ele agora faz parte da minha de galeria de heróis e também para lhe pedir desculpa de algumas das nossas brincadeiras mais estúpidas que o terão magoado...

A guerra é cruel, e torna os homens estúpidos e cruéis. E o homem - primata social, territorial e predador - tem, além disso, a particularidade comportamental de ser o único animal do mundo que mata ou humilha as suas presas por mero prazer, usando a violência gratuitamente, sem necessidade...

O Martins teve o azar de ter sido marcado, desde muito cedo, como alguém que parecia transmitir medo, fraqueza, vulnerabilidade, insegurança - sinais a que qualquer predador está atento, quando observa uma potencial presa. O Martins era um verdadeiro animal acossado nos primeiras semanas ou meses de Bambadinca: ainda antes do lusco-fusco era frequente vê-lo a rondar os abrigos como se estivessemos na iminência de um ataque... Ora no tempo dele, no nosso tempo, nunca houve felizmente uma ataque directo ao aquartelamento de Bambadinca...

Por outro lado, ele cometera em Contuboel (onde estivemos um mês e meio, no início da comissão) um erro tático ao relacionar-se, de maneira preferencial, com o grupinho do 1º Sargento Fragata, com quem de resto tinha mais afinidades... Os milicianos, sobretudo os operacionais, em conflito com o Fragata, marcaram o Martins e às vezes faziam-lhe a vida negra...

Meu caro Martins: neste Natal de 2006 desejo-te longa vida e muita saúde, contrariando o provérbio popular que garante Muita saúde, pouca vida, que Deus não dá tudo... Se leres esta mensagem, contacta-me por favor... Há uma conversa que começámos no Niassa e que ficou por terminar...
_______

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1301: O cruzeiro das nossas vidas (4): Uíge, a viagem nº 127 (Victor Condeço, CCS/BART 1913)

21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1300: O cruzeiro das nossas vidas (3): um submarino por baixo do TT Niassa (Pedro Lauret)

19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1296: O cruzeiro das nossas vidas (2): A Bem da História: a partida do Uíge (Paulo Raposo / Rui Felício, CCAÇ 2405)


12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)

(2) Sobre a série Galeria dos meus heróis, vd posts de:

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã (Luís Graça)

14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)

12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá (Luís Graça)

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)

1 de Agosto de 2006> Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)

(3) Sobre o meu pai, Luís Henriques, 1º cabo de infantaria, expedicionário em Cabo Verde, Ilha de São Vicente, Mindelo (1941/43), vd. posts de:

12 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIV: Cabo Verde (1941/43) (1): os mortos e os esquecidos do império (Luís Graça)

26 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXVI: Cabo Verde (1941/1943) (2): esperando os invasores (Luís Graça)

22 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLIV: Cabo Verde (1941/43) (3): sodade di Son Vicente

4 Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXV: Cabo Verde (1941/43) (4): Mindelo, terra de B.Leza e de Cesária Évora (Luís Graça)


(4) Vd. série Estórias de Bissau:

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)


14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosimos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)


18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

(5) Alguns termos do crioulo da Guiné:

Balaio=cesto grande;
Cibe=palmeira;
Gilas (lê-se: djilas)= vendedores ambulantes;
Mafé= peixe, conduto que acompanha o arroz, base da alimentação da população local;
Mancarra=amendoim.
Peso= unidade da moeda local (mais ou menos equivalente ao escudo)

Guiné 63/74 - P1365: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (24): Discutindo os destinos do Cuor com o Coronel Hélio Felgas

Capa do romance de André Gide, Sinfonia Pastoral, publicado pelos Livros do Brasil, Lisboa, s/d, na sua famosaa colecção Miniatura (nº 56). Ilustração: Bernardo Marques. André Gide (1869 -1951), escritor francês, recebeu o Prémio da Literatura em 1947.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.



T/T Uíge > Julho de 1968 > O Alf Mil Beja Santos a caminho da Guiné. Foto gentilmente cedida, para digitalização, pelas suas filhas.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.

Texto enviado em 15 de Novembro de 2006. Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, ex-comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).


Meu caro Luís, aqui vai a prestação semanal. Espero poder coincidir o período natalício com as páginas referentes ao meu Natal de Missirá. Telefonei hoje ao Cherno Suane [, meu antigo guarda-costas,] que está em Missirá e pedi-lhe fotografias, bem como do régulo.

Obviamente falámos por telemóvel, o régulo emociona-se e paralisa-lhe a fala. Estou a ganhar a coragem para escrever com olhos daquele tempo o Presépio de Chicri. Continuo com sorte e comprei mais livros que li naquele tempo. Hoje mandei-te pelo correio uma fotografia e um livro do André Gide Sinfonia Pastoral com uma belíssima ilustração do Bernardo Marques. Obrigado por todo o teu esforço a dar imagem aos meus textos e aguardo que marques para Dezembro o nosso almoço. Um abraço do Mário.

Comentário do editor do blogue:

Mário: Como as nossas comunicações, no blogue, andam atrasadas, tenho que dizer, em plena caserna, que o almoço estava óptimo, no Institut Franco-Portugais, no dia 5 de Dezembro passado. Foi um prazer rever-te, desde o verão passado. Aproveito para esclarecer os nossos amigos e camaradas da Guiné, que lêem o nosso blogue e em especial os teus posts, que as tuas frescas memórias do Cuor não são apenas fruto de uma prodigiosa memória de elefante, mas também e sobretudo da tua aturada pesquisa documental (escrevias todos os dias à tua namarada e futura esposa Cristina, tendo conseguido reaver e juntar toda essa correspondência tiveste a gentileza de ma confiar) e das longas conversas que tens mantido, ao longo destes anos todos, com os homens que comandaste na Guiné...

Não se pense, pois, que a Operação Macaréu à Vista é ficção: bem, pelo contrário, são as tuas memórias vivas - sujeitas à crítica dos teus contemporâneos que passram na mesma altura pelo Sector L1 da Zona leste - e espero que no fim, delas possam resultar um grande blook, um livro de referência sobre o nosso quotidiano na guerra da Guiné.

Quero aproveitar para esclarecer que a maior parte dos títulos e subtítulos dos teus posts são da minha responsabilidade, embora eu tenha sempre a preocupação de respeitar o conteúdo e a forma dos teus escritos. Espero até ao Natal poder pôr a tua escrita em dia... Um abraço de amizade e camaradagem. Obrigado pelos livros que me ofereceste como prenda de Natal, e em especial o exemplar nº 1, autografado, do teu último livro Este Consumo que nos Consome (Campo das Letras, Porto, 2006). Luís


Em Bafatá, para discutir os destinos do Cuor

por Beja Santos


Seriam três da manhã quando o Teixeira das transmissões bateu à porta da minha morança. Estava ainda no torpor do primeiro sono e perguntei automatizado:
- A que horas é que eu cavalgo para Berlim?

Durante aquele mês de Novembro o código fixara a expressão Cavalgar Berlim como ida a Mato de Cão. O Teixeira trazia a mensagem decifrada e simplificou-me a vida:
- Apresentar hoje manhã cedo este urgente.

Voltei a adormecer a pensar a que Buruntoni iria desta vez. E com o primeiro orvalho do raiar do dia partimos para Finete e daqui para a cambança do Geba. Apanhei o Pimbas a tomar o pequeno almoço e mandou-me sentar, explicando a situação:
- Como sabes, estamos a pôr tabancas em autodefesa no propósito de reorganizar todo o sector. Na reunião que tive com o nosso Coronel Felgas, ele quer saber se devemos dar vencimento à proposta do régulo do Cuor que é trazer população de Canturé que está presentemente a viver no Cossé. Segues já de viatura e vais falar com ele a Bafatá. Ele está à tua espera. O plano do nosso sector tem que ficar pronto até ao fim da tarde para ser analisado em Bissau com o Comandante Militar da Guiné.


Com o Hélio Felgas, comandante do Agrupamento 2957 (2)

E lá fui até Bafatá encontrar-me com o Coronel Hélio Felgas, que ainda não conhecia. Recordo um gabinete enorme e austero, um homem magro, de cabelo embranquecido e um olhar de lâmina a faíscar pelas lentes. Mandou-me sentar e foi direito ao assunto:
- Pretendo saber a verdade sobre o que se está a passar no Cuor, o que há lá e se é possível introduzirmos mais população. Desde Outubro que estamos a trabalhar com régulos e chefes de tabanca para se encontrar um novo alinhamento do sistema de autodefesa, criação de forças de milícia e uma reorganização que impeça as situações ambíguas de populações permanentemente sujeitas à pressão do inimigo. Diga-me o que acha que podemos fazer.

Tivera a viagem para organizar a minha apresentação, tal como se seguiu:
- Meu Comandante, se reparar bem no mapa a defesa do Cuor é um exclusivo pretexto para garantirmos a navegação do Geba e segurança de Bambadinca. O meu aquartelamento em Missirá é uma perfeita ruína, com metralhadoras do tempo de Hitler e Mussolini. Só agora é que tenho um morteiro 81. A população civil vive praticamente misturada com os caçadores nativos e os milícias. As milícias estão muito mal preparadas e tenho uma secção em Galomaro. Diariamente, uma a duas vezes patrulhamos até Mato de Cão. Estou a esticar a corda com patrulhamentos para identificar a presença dos rebeldes. Finete está numa lástima e há mais espingardas Mauser do que G3. Estamos agora a melhorar os abrigos, a preparar apontadores de diagrama, vai chegar um morteiro 60. O inimigo passeia-se em praticamente todo o Cuor. Se me permite a opinião, a separação entre Missirá e o Enxalé não é boa para ninguém. Nós não temos meios a não ser para emboscar e aterrorizar em regiões que permitam a retirada rápida. Por isso embosco à volta de Missirá e Finete, perto de Mato de Cão e frente a Mero, pois aqui sabemos que existem comunicações e troca de abastecimentos. Introduzir população em Canturé parece-me uma excelente ideia desde que haja tropa, um sistema de autodefesa a sério, armamento para civis e preparação paramilitar que lhes dê confiança. Tenho duas viaturas permanentemente avariadas, os caçadores nativos estão exaustos, aproveito a oportunidade para lhe pedir que se reconsidere na necessidade de definir uma melhor logística para estes dois quartéis. Tenho 5 petromaxes em Missirá e outros tantos em Finete. Sem eles, viveríamos às escuras e completamente à mercê das flagelações. Se quiser pôr população em Canturé, por favor atenda a estas realidades. Estamos numa ponta do regulado e quem o controla é o inimigo. É indispensável articular o meu trabalho com Porto Gole e Enxalé, para melhorar a segurança do Geba e criar mais intranquilidade em Madina/Belel.

O Coronel escutava-me sem nenhuma interrupção e ergueu-se ágil e decidido:
- Você trazia a lição bem estudada e sabe pedir. Tenho pouco para dar, já que o Cuor não é prioritário neste momento. Lamento, mas não tenho mais tropas e a reorganização dos Nhabijões, no Cossé, no Xitoli e Mansambo é da maior importância. Em princípio vai ficar tudo como estava. Bom dia. Espero que continue a combater já que as informações não são más nesse sentido.

Munições esgotadas em Finete

Regressei, e de facto tudo continuou na mesma: Mato de Cão, o Ramadão, a tropa doente, os melhoramentos, o permanente pedinchar materiais junto da CCS de Bambadinca. Depois da emboscada em Chicri prevíamos uma qualquer retaliação, como veio a acontecer.

A 16 de Novembro, eu escrevia uma carta para Lisboa:

São 10 horas de uma bela noite equatorial. Em derredor deste arame farpado onde despontam flores silvestres, o céu do Cuor tem tonalidades de azeitona escura, sente-se o perfume dos cajueiros e mangueiros, saí há pouco pelo cavalo de frisa e estive a olhar o caminho sulcado que vai para Sancorlã. Agradeço-te a tua bela carta e a companhia que me trouxe.

Nisto, uma sucessão de estampidos anuncia uma flagelação a escassos quilómetros. Subo para o posto de vigilância onde está Quetá Baldé. Com aquela voz de quem está permanentemente a pedir desculpa, ele aponta para Finete. Fogachos meteóricos cruzam-se nos céus, ribombam as explosões num som cavo mas intermitente. Foram 15 minutos infernais e depois um silêncio total. Conversei com os furriéis, ficámos em estado de alerta e saí com 20 homens numa progressão lenta a flanquear as picadas principais.

Pelas 3 da manhã, depois de tornear as bolanhas em direcção a Bambadinca anunciámos a nossa presença a Finete. Ainda hoje guardo o calor do abraço de Bacari Soncó quando chegamos. Felizmente, fora só uma flagelação com dois feridos ligeiros mas aonde se provou a suprema vulnerabilidade de Finete: as munições estavam praticamente esgotadas, desde cartuchos a granadas de mão.

Percorrendo a tabanca a contabilizar os estragos pensei no que nos estaria reservado caso aparecesse uma autotabanca em defesa de Canturé. Dando garantias que no dia seguinte Bambadinca abriria o cordão à bolsa no tocante a munições, dormitei duas horas e regressei a Missirá, onde andamos a capinar na estrada de Missirá-Morucunda-Canturé-Gambana.

O Casanova continua a tratar do pequeno Braima e ao mesmo tempo reconstrói o seu abrigo enquanto o Adão enfermeiro (trolha em Almargem do Bispo) estampa cimento nas paredes térreas e o Barbosa faz nova porta.

Para quem combateu neste sector, o mês de Novembro ficou associado a emboscadas à companhia do Xime, a ataques a Mansambo e ao Saltinho, uma flagelação feroz que ia tirando Demba Taco do mapa. Embora privados dos rigores do jejum, os soldados comparecem aos ofícios das seis a das nove da noite. Cheio de projectos, escrevo noutra carta:

Nunca dei um tamanho agrado ao tempo e à vida como agora.

Sinto que a minha visão do cristianismo evolui inexoravelmente e sem retorno e leio Jean Guitton:

Ensina-me a imaginar o futuro sem me desolar, com a ideia de que ele não seja como eu o imagino - ensina-me a unificar a lentidão e a pressa, a serenidade e o fervor, o zelo e a paz. E sobretudo, enche tu mesmo, Senhor, o vazio das minhas obras.

Meu alferes, nunca vi uma coisa assim...


Demba, o filho de 6 anos de Malã Soncó, está atacado de tracoma, o David Payne tenta um tratamento assíduo que expurgue as infecções. Hoje Ieró Baldé (conhecido na gíria por Nova Lamego), o meu guarda costas, pregou-me um grande susto. Notei-o arredio e confuso a dizer que já não sabia se devia casar, estava cheio de febre e doiam-lhe as partes. Pedi para ir falar com o Adão. Arrumava papéis e facturas quando o Adão me entrou aos repelões com Nova Lamego pelo braço:
- Meu alferes, nunca vi uma coisa destas, juro que nunca vi. Eh pá baixa as calças.

Ieró, com o olhar apontado para o tecto mostrou-nos o seu cancro mole, um sexo purulento. Propus-lhe que fosse a Bambadinca com urgência, que adiasse o casamento, preparei uma carta para o David Payne pedindo-lhe mais um gesto de desvelo, a juntar a muitos mais.

Esta tarde convidei Lânsana Soncó para beber chá e ouvirmos música. Lembro-me perfeitamente: Mr Nice, por Cliff Richard. Escrevi aos meus soldados da CCAÇ 2402 que ia pedir autorização para ir visitar a Có, onde eles também sofrem aflições. A todos aqueles que partiram para férias e que vão chegar até 15 de Outubro levam a incumbência de trazer vitualhas natalícias: fritos, figos, ameixas e outra fruta cristalizada, tudo aquilo que sirva para adornar o nosso Natal em Missirá. A todo em Lisboa peço ajuda, nada me foi recusado.


Cardoso Pires e Anrdé Gide em Missirá

Amanhã regresso a Chicri. Pretendo continuar a fazer pressão, vou patrulhar em Sinchã Corubal, descer o rio de Ganturandi, até S. Belchior. Tenho o corpo moído e releeio O Delfim, obra prima absoluta. Creio que já vos disse que tudo não passa de uma metáfora nesta obra: o caçador é o disfarce do narrador, liga tudo, apresenta os locais e os personagens. A Gafeira e a Lagoa são Portugal e quem tenha dúvidas escute o que diz o autor:

Lagoa, para a gente daqui, quer dizer coração, refúgio da abundância. Odre. Ilha. Ilha de água cercada de terra pro todos os lados e por espingardas de lei. Mas ilha, odre, coroa de fumos ou constelação de aves, é a partir dela que uma comunidade de camponeses-operários, mede o universo; não a partir da fábrica onde trabalha, nem da horta que cultiva nas horas livres. Daí que os gafeirenses lhe conheçam tão bem os ciclos, as estações, os animais que as frequentam e as armadilhas de que dispõem- as dela e as dos guardas (páginas 129 e 130 desta edição de Outubro de 1968, que folheio com veneração pelo bem que me fez e por ser a última recordação da biblioteca devorada pelo fogo).

Obra prima absoluta pelo retrato em agonia do marialvismo, em sintonia com o fim do poder agrícola; pela trama de mistério que acompanha o desmoronamento dos Palma Bravo, o fim da Maria das Mercês e a morte de Domingos; uma lagoa que hiberna e que espera como todo o país que vive adormecido. A literatura portuguesa mudou com esta obra, é um anúncio de liberdade, de modernidade no estilo e na forma, uma trombeta que anuncia os novos poderes políticos depois da queda dos valores que o engenheiro Palma Bravo personificava. O Delfim é o momento exemplar antes das portas abertas pelo 25 de Abril.

Folheio ainda, a chamar o sono, uma outra obra prima convocada, Sinfonia Pastoral, por André Gide. Para quem leu Os Moedeiros Falsos, esta novela é surpreendente. Gide que era descrente e cosmopolita fala de um pastor suíço com vida familiar completamene estabilizada que se apaixona por uma jovem cega. O que era inadmissível para um espírito puritano torna-se viável, a ponto de uma paixão cega lançar uma família na perturbação e o pastor na solidão absoluta, tudo isto descrito numa narrativa ultra-romântica, cerebral mas igualmente falando do inquietante silêncio de Deus, já paradigmático para a sociedade em que Gide viveu.

Adormeço e amanhã será o último adolescente da minha vida. Amanhã em Chicri vou conhecer a cor da morte. Juro que não tenho coragem em contar.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 5 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1341: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (23): Alah Mariu Mansô (Deus é todo poderoso, em mandinga)

(2) O Agrupamento 2957, com sede em Bafatá, abarcava toda a Zona Leste, sendo constituído por cinco sectores. O de Bambadinca era o L1. Este agrupamento, comandado pelo Coronel Hélio Felgas, deu origem mais tarde ao CAOP 2.Sobre a figura deste oficial superior, que se reformou como brigadeiro, há vários posts no nosso blogue:

24 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIX: O Hélio Felgas do nosso tempo (A. Marques Lopes)

23 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCVIII: Antologia (27): depoimento do brigadeiro Hélio Felgas (1): os aquartelamentos

25 de Novembro de 20065 > Guiné 63/74 - CCCXII: Antologia (28): depoimento de Hélio Felgas (2): as emboscadas

29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIII: Antologia (29): depoimento de Hélio Felgas (3): os ataques aos acampamentos do IN

9 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIII: Antologia (32): depoimento de Hélio Felgas (4): "Ou se faz a guerra ou se acaba com ela"

O coronel Hélio Fellgas comandou a Op Lança Afiada bem como a retirada de Madina do Boé:

Sobre a Op Lança Afiada, vd posts:

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

Guiné 63/74 - P1364: Palmeirim de Catió emboscado em Berlim (Mendes Gomes)


Berlim > Novembro de 2005 > Restos do tristemente famoso muro de Berlim que até cair em 1989 dividiu em dois a cidade, a Alemanha, a Europa, e até o mundo... A nova ordem internacional do pós-guerra ditou também a sorte do nosso Império... Daí que o mundo de Berlim e a guerra colonial da Guiné, a milhares de quilómetros de distância, não pudessem ser abordados e analisados separadamente...

Curiosamente foi também em Berlim que, em 1884/85, se realizou - por proposta de Portugal - a célebre Conferência de Berlim que ditou as regras da ocupação de África pelas potências coloniais europeias.

Fotos: © João Graça (2005). Direitos reservados.



Mensagem do Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Catió, 1964/66).


Caro Luís:

Acabo de ler o 5º extracto das minhas crónicas (1). Como sempre, fiquei feliz. A vida é como um rio: quando nasce, todos sabem para onde corre... ninguém, por onde vai.

Quem me diria, há 4 longas dezenas de anos, que, pelo prodígio da técnica, ia ver publicada a memória sobre o meu baptismo de fogo, no caminho de Cufar, aqui em Berlim!..e, sobretudo, graças ao teu inestimável, engenhoso e empenhado Blogue...

Desta vez, por uma excelente e inefável causa: vim montar uma emboscadaexactamente no coração de Berlim, no Das Mite (2), ao meu 3º neto que pode nascer a todo o momento. É a Sara Joana.

Por essa razão, se Deus quiser, vou ter um Natal duplamente feliz. E, por isso também, aproveito para desejar a ti e tua familia, aos nossos amigos tertulianos e, claro, aos meus amigos Palmeirins, um Natal igualmente muito feliz e um Bom Ano.

Com um enorme abraço
Mendes Gomes

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

(2) O centro de Berlim

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1363: Questões politicamente (in)correctas (13): Combatentes e desertores não cabem no mesmo saco (Amaral Bernardo)

1. Mensagem enviada pelo nosso camarada Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico do BCAÇ 2930, com data de 15 de Novembro de 2006:

Luís Graça (permita-me que o trate assim):

Sou ex-Alf Mil Médico na Guiné, Dezembro de 1970/Outubro de 1972, Catió, Cacine, Guileje, Gadamael, Bedanda (11 meses), Tite e Jabadá, Bolama (20 dias para descacimbar).

Sigo com atenção ... e emoção, diariamente, este bolgue.

Hoje de manhã ao abrir o correio, foi o choque e a dúvida. A minha pergunta é: neste blogue os desertores (o termo é vosso) são considerados ex-combatentes por quem esteve na guerra? Este não é um local de ex-combatentes ? (1)

Respeito todas as opções e todas as pessoas. Mas penso que os grupos são distintos e não têm lugar no mesmo saco. Penso ainda que não deveria ser um lugar de branqueamento de posturas. Perdoe, mas é a minha opinão. E vale só isso.

Um abraço
amaral bernardo

P.S. - Claro que o Medeiros Ferreira não tem culpa nenhuma disto. Fez uma opção que eu respeito, repito.

2. Comentário do editor do blogue:

Meu caro Professor Doutor Amaral Bernardo: Não tenho o prazer de o conhecer pessoalmente, mas já descobri que temos várias coisas em comum, nomeadamente, o facto de sermos professores universitários, estarmos ligados à saúde e termos sido combatentes na Guiné, sensivelmente na mesma altura, você, entre 1970/72, e eu entre 1969/71...

O nome do Medeiros Ferreira apareceu no nosso blogue, evocado pelo Raul Albino, seu camarada da CCAÇ 2402. O Raul seguiu para a Guiné, o Medeiros Ferreira desertou na véspera do embarque (2)... O termo não é do Raul Albino, foi usado por mim em nota de pé de página... Objectiva e legalmente, a figura é a do desertor, sem qualquer juízo político, ideológico, moral ou ético.

O Raul Albino, que por razões de preparação logística seguiu em primeiro lugar para a Guiné duas ou três semanas antes, constatou apenas que à chegada da CCAÇ 2402 a Bissau, havia duas baixas de vulto no quadro de oficiais (sic): o Beja Santos e o Medeiros Ferreira (que hoje são, ambos, figuras públicas, sendo o primeiro membro da nossa tertúlia e colaborador activo do nosso blogue, tal como o Raul Albino).

Não há, por parte do Raul Albino ou do editor do blogue, nada que indicie ou sugira a condenação ou a glorificação da figura do desertor... Este blogue é de amigos e camaradas da Guiné... As regras de inclusão e de exclusão não estão definidas de uma vez por todas... Estamos abertos, por exemplo, a acolher, na nossa tertúlia, os homens e as mulheres que nos combateram, até 1974, sob a bandeira do PAIGC... Sem dúvida, que este é um blogue sobretudo dos ex-combatentes da guerra da Guiné, mas interessam-nos também os pontos de vista, as experiências, os testemunhos, de todos aqueles que directa ou indirectamente trilharam os caminhos da guerra e da paz...

Eu sei que a palavra desertor ainda hoje tem uma certa carga emocional para muitos de nós que fomos mobilizados para o ultramar... Eu sei que esta pode ser mais uma questão fracturante no nosso blogue, mas não devemos ter medo de a evocar e de a discutir...

Dito isto, registo, sem mais comentários, a opinião do Amaral Bernardo e aproveito o ensejo para o convidar a participar, mais regular e activamente, no nosso blogue. Espero, no minímo, que continue a seguir-nos diariamente, com a mesma atenção e emoção com que o tem feito até aqui.

Saudações do L.G.
__________

Notas de L.G.:

(1) José Maria Ferreira do Amaral Bernardo é Professor Catedrático Convidado no ICBAS - Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. Responsável do Departamento de Ensino Pré Graduado do HGSA - Hospital Geral de Santo António, Porto.

(2) Vd. post de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

GUiné 63/74 - P1362: Bibliografia (5): Encontro: guerra colonial e descolonização (Pedro Lauret)

Aniceto Afonso é autor, juntamente com Carlos de Matos Gomes, do monumental trabalho historiográfico Guerra Colonial (Lisboa, Editorial Notícias, 2000, 635 páginas).

Foto: Sítio da 4ª Companhia de Caçadores Especiais (Angola, 1960/62) (com a devida vénia...)



Texto do Pedro Lauret, com data de 5 de Novembro de 2006:

Caro Luís,

Seguem algumas notas sobre o colóquio no ISCTE (1). Ontem não me foi possível estar presente pelo que a minha apreciação se refere apenas a 6ª feira [3 de Novembro de 2006].

Sem querer por em causa quer a qualidade quer o interesse das diversas comunicações gostaria de referir que, à excepção da intervenção do coronel Aniceto Afonso (2), todas as outras abordaram temas laterais à guerra e às forças armadas. Não que os temas não fossem conexos, mas na minha modesta opinião não enquadraram suficientemante o propósito do encontro 30 anos de fim do Império. Guerra, Revolução, Descolonização. Não é possível tratar aquelas matérias sem desenvolver os temas directamente ligados à Guerra Colonial e às Forças Armadas. O 25 de Abril e a Descolonização não são entendíveis sem ser à sua luz.

Tem-se verificado muito pouco interesse dos nossos historiadores na investigação do mais importante acontecimento da segunda metade do século XX, a Guerra Colonial. Os nossos arquivos, incluindo os militares, estão disponíveis à investigação e existe uma disponibilidade imensa de testemunhos de ex-combatentes, o que torna mais inexplicável este desinteresse.

O Aniceto Afonso (2) disponibilizou uma série de dados referentes à guerra, que vou fazer chegar à tertúlia.

Estes comentários não se reportam, obviamente, aos palestrantes da Guiné e Angola.

A comunicação do nosso companheiro Leopoldo Amado, de grande interesse, descreveu a luta do PAIGC com base na actividade e personalidade de Amílcar Cabral. As diversas etapas da luta, os apoios internacionais, a criação de estruturas de administração nas áreas libertadas, a evolução da situação militar, foram temáticas muito bem desenvolvidas. Como seria bom que pudessemos ir fazendo uma História da Guerra Colonial em paralelo com as Histórias das Guerras de Libertação.

João Milando fez uma intervenção muito interessante sobre as mudanças e não mudanças que se operaram em Angola. O que mudou e não mudou entre o Colonialismo e a Independência. Que roturas e que continuidades. Uma abordagem diferente em que ficamos cientes da complexidade dos fenómenos em presença e sobretudo que a continuidade prevalece sobre a rotura.

Um abraço
Pedro Lauret
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 5 de Novembro de 2006 > 5 de Novembro de 2006> Guiné 63/74 - P1250: Os amigos são mesmo para as ocasiões, Leopoldo Amado!

(2) Aniceto Afonso, director do Arquivo Histórico-Militar, cargo que vai em breve deixar, com muita pena e apreensão por parte de todos aqueles que se interessam pela historiografia da guerra colonial e que admiram o trabalho daquele investigador.

Vd. blogue de Luís Alves de Fraga, Fio de Prumo > 29 de Outubro de 2006 > É tempo de homenagear

(...) Nas duas semanas que estive ausente do Fio de Prumo recebi muitos e-mails e chamadas telefónicas de camaradas de armas e de gente da cultura — em especial ligados à História — manifestando-me a justiça de se prestar uma homenagem pública ao Aniceto Afonso, agora que completa 65 anos de idade e abandona as funções que, com tanto brilho e empenho, tem vindo a exercer no Arquivo Histórico Militar, nos últimos catorze. Todos me dizem: — Lança a ideia no teu blog... Verás que tens aderentes. O Aniceto Afonso, como Homem de cultura e principalmente como cidadão e militar, é das raras figuras que merecem não ser esquecidas — como se eu não soubesse isso muito bem! — Não deixes passar a oportunidade.
Tenho meditado muito sobre o assunto.

"O Aniceto Afonso foi um de nós — os da geração militar do 25 de Abril — que muito tem trabalhado para, neste futuro que já vivemos, a memória dos melhores anos da nossa juventude não ser perdida nem vilipendiada por todos os que não respeitam — especialmente por ignorância — os esforços de quem lhes trouxe a paz, a democracia e as condições para Portugal merecer, como nação velha neste Velho Continente, o apreço e a admiração do mundo inteiro. Aniceto Afonso, escondido na sua natural modéstia — que não faz dele um Homem menos interventor, mas o posiciona na penumbra onde se resguardam os grandes espíritos — merece que nos juntemos à sua volta e que lhe digamos, olhos nos olhos, com a frontalidade que caracteriza quem não teme juízos malévolos, lhe digamos o quanto o estimamos e o quanto esperamos que continue a fazer excelente trabalho em prol da História recente deste martirizado Povo por séculos de sacrifícios, pois, correndo o risco de me repetir, como afirmava Alguém com justo atino, em Portugal ou se nasce por karma ou por missão.

"Fica aqui a minha parte no cumprimento das solicitações que me têm chegado; fica o apelo a todos — militares e civis, intelectuais ou meros cidadãos que se revêem na História recente de Portugal — para avançarmos para a homenagem pública ao Tenente-Coronel Aniceto Afonso, Homem de férrea vontade e indomável perseverança, Homem de uma coragem moral muito para além do comum, Homem que, avesso à luz da ribalta, com a generosidade do seu imenso coração, me vai perdoar o que lhe estou a fazer sem seu consentimento nem conhecimento.

"Aqui fica a ideia, cabe a todos nós dar-lhe corpo" (...).

Vd também post de 15 de Outubro de 2006 > A nossa História Militar: uma obra e um Amigo

Guiné 63/74 - P1361: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendença (3): Os meninos de Candamã, os meninos de África, um dia hão-de ser felizes

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Candamã > 1969 > Os meninos de Candamã... O Alf Mil Torcato Mendonça e o seu Grupo de Combate estiveram aqui em reforço do sistema de autodefesa da tabanca fula de Candamã, pertencente ao regulado do Corubal. A população balanta e biafada do regulado estava sob controlo do PAIGC, desde o início da guerra, vivendo ao longo da margem direita do Rio Corubal. A população fula sobrevivia e resistia (mal) em meia dúzia de tabancas, pobres, em decadência, dipersas, a leste da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole, nomeadamente depois da contra-ofensiva lançada pelo PAIGC como resposta à grande operação (1300 homens) que foi a Operação Lança Afiada (Março de 1969). Em Candamã, o Torcato Mendonça animou a escola local (LG) (1)...

Foto: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.

Luís Graça: abri, passei os olhos e vi os meninos (2)... Os meus meninos não se digladiavam por comida... faziam fila e, quando havia comida… recebiam. Na escola aprendiam, menos letras, mais determinados princípios… Atingia também os pais…Na ginástica brincavam, jogavam… depois iam ao banho e riam, felizes, naqueles breves momentos, os meninos de Candamã, Afiá…e outras tabancas…Poucas... Em Mansambo haviam poucos meninos. Assim se ensinavam regras de higiene – a sarna era endémica, e era tanta a doença… Por vezes uma simples aspirina determinava a cura.

Na primeira selecção [de fotos] não enviei crianças. Eram as principais vítimas. Eles e as mães, por isso o meu trauma de que, parece-me, já te terei falado.

Os meninos cresceram e os seus filhos têm hoje mais fome…fogem da Guiné – onde os Todo-o -Terreno de luxo são da minoria do privilégio. Fogem os menos meninos, os jovens de uma África sofrida, dantes partilhada, esquartejada pelas potências europeias…Hoje os privilegiados, os corruptos, os…os… Tanto sofrimento!!!

Paro, caro Luís…paro… escrevo e o que escrevo nunca terá eco, [pelo contrário será] recebido com sorrisos dos safardanas de um Poder qualquer e dos seus lacaios, sempre ávidos das migalhas que tombam. Como os poderes de desmando são efémeros, adularão, depois, outros senhores…

Um dia os meninos vão sorrir felizes... vão ser felizes os meninos!

Um abraço,

Torcato Mendonça (3)

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1167: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Candamã, uma tabanca em autodefesa

(2) Vd. post de 5 de Dezembro de 2006> Guiné 63/74 - P1342: Poema: os meninos da Ilha de Luanda (... pensando nos meninos de Bolama, de Chamarra, de Mansambo ou de Saré Ganá) (Luís Graça)

(3) Vd. post anterior > 5 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1340: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça (3): o meu segundo país

Guiné 63/74 - P1360: Lamparam III, novo sítio do historiador luso-guineense e membro da nossa tertúlia Leopoldo Amado

Leopoldo Amado é membro da nossa tertúlia desde Setembro de 2005 (1). Nasceu na Guiné-Bissau em 1960. O pai, funcionário dos correios, esteve em Bolama e Catió, terras que ele conheceu bem quando miúdo. Em 1981 concluiu, em Bissau, o curso de formação de professores liceais. Em 1986 licenciou-se em história pela Universidade de Lisboa (UL), de que é doutorando (2). Aguardamos com júbilo a marcação da data das suas provas públicas de doutoramento em história contemporânea pela UL. Desejamos-lhe as melhores felicidades, pessoais e académicas, para o novo ano que aí vem.

Fonte: © Leopoldo Amado (2006). Direitos reservados.


Mensagem que acaba de circular pela nossa tertúlia, enviada pelo nosso amigo Leopoldo Amado, luso-guineense, historiador, doutorando em história contemporânea com uma tese sobre a guerra colonial / guerra de libertação da Guiné-Bissau (Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Lisboa):

Caro amigo(a),

Venho por este intermédio convidar-lhe a visitar o site da nova série do Lamparam, rebaptizado Lamparam II, depois das séries I e II.

No novo site do Lamparam III poderá encontrar os seguintes novos posts:

- João Rosa morreu às mãos da PIDE-DGS?, por Leopoldo Amado

- Morreu Joseph Ki-Zerbo (1922-2006), por Leopoldo Amado

- José Carlos Schwarz, elementos escolhidos, por Norberto Tavares, O Cote
Informamos ainda que teremos imenso gosto em divulgar através deste espaço os seus trabalhos, opiniões e ou comentários.

Leopoldo Amado

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 7 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXIX: Leopoldo Amado, guinense, historiador, novo membro da nossa tertúlia (Leopoldo Amado / Luís Graça)

(2) Vd. post de 4 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P840: Curriculum Vitae do nosso doutorando Leopoldo Amado

segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

Continuação da publicação das memórias de Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Catió, 1964/66). Publicamos hoje a quinta parte das crónicas de um Paimeirim de Catió (1).


2.7. O baptismo de fogo


Ao fim de um mês, podia dizer-se que a Companhia tinha encontrado a própria rotina. Cada pelotão com a sua tarefa da semana e cada secção com a sua tarefa do dia. A escala da guarda ao quartel estava montada e a dos oficiais e sargentos-de-dia, também; a da secção de segurança à lancha que ia buscar água a Catió; a da capinagem do campo de aviação e a da limpeza ao quartel.

Um grupo de combate montaria emboscadas, de dia ou de noite, na mata, não muito longe do acampamento, para criar insegurança e afastar tentações aos nossos vizinhos.

Faltava, porém, a dura e temida experiência do contacto directo com o inimigo, em teatro de guerra. Um dia, teria de acontecer. E aconteceu mais depressa do que se desejava.

Uma grande operação iria ser desencadeada no Cantanhez, com companhias de intervenção, pertencentes aos vários batalhões, ali ao pé, mais uma de fuzileiros e a força aérea.

À [CCAÇ] 728, ainda inexperiente, competiria apenas manter a segurança na retirada, na zona de Cufar, a uns 12 km de Catió.

Partida, de lancha, pela noitinha, até Catió, dali seguiu-se, de madrugada, estrada fora, a pé, rumo a Cufar. Lentamente e em total silêncio, foi uma noite inteira de caminho, até ao cruzamento de Cufar, que teríamos de defender.

Durante a noite, apenas se ouvia, muito ao longe e de forma dispersa, o ribombar de morteiros ou artilharia, que tanto podia ser nosso como deles, à mistura com o piar lúgubre e o esvoaçar constante da bicharada da noite, em nosso redor.

Todos tínhamos consciência de que, de um momento para o outro, poderíamos estar a ser alvejados por uma chuva de tiroteio ou por metralha pesada de bazooka ou morteiro. Daquela vez, não seria, por certo, devido a falta de cuidado de ninguém, desde o capitão ao soldado mais insignificante. Todos éramos importantes e responsáveis, por todos e cada um.

Foram doze quilmetros de tensão, palmilhados a tactear o terreno, pé ante pé, de respiração contrita.

Pelo amanhecer, envolvidos na bruma húmida de nevoeiro, estávamos a instalar as secções, ao longo da berma, virada a norte.

À medida que o tempo passava, sem nada acontecer, foi-se instalando uma certa descompressão geral. Um certo à-vontade se apoderou dos mais irrequietos. Às vezes, já se via, aqui e ali, um soldado levantado; uma conversa cochichada, mais descontraída, apesar da repressão constante dos comandantes das secções.

Não fosse o tiroteio, ao longe e disperso, mais intenso e insistente que durante a noite, o deslumbramento da floresta pujante de vida e esmagadora, nas plantas e animais, nunca vistos, ali ao nosso pé, far-nos-ia sentir maravilhados.

O último troço de estrada térrea palmilhado, até à curva, estava coberto por autêntico rebanho denso de curiosos macacos-cães, especados, em plateia, a ver a nossa vida, intrusa.

De repente, debandaram em fuga, saltando para o cimo das árvores e nela desapareceram, à boa moda de Tarzan e da companheira, Jane, para melhor… A nossa inexperiência não deixou perceber a razão da debandada. Era o aviso infalível do que lhe sucedeu, imediatamente, tal como o relâmpago arrasta o trovão…

Uma chuva intensa de tiroteio varreu, impetuosa, as nossas cabeças coladas ao chão mais fundo das bermas. Várias granadas rugiram, atrás de nós, em estrondos infernais, cavando crateras no chão e espalhando metralha mortífera em redor.

O sítio escolhido não podia ter sido melhor. Foi a nossa sorte. A reacção tardou, mas foi esmagadora. Os ânimos acenderam-se e já alguns dos nossos se levantavam, afoitos, a lançar granadas e bazucadas para o seio da mata cerrada, obrigando-os a calar e a debandar.

Uns quinze minutos medonhos que pareceram anos. Em turbilhão, tudo passou pela cabeça. Pedra Maria nunca me apareceu tão linda…Os montes de Santa Quitéria, tão verdes… O sol manso da minha terra…

O desespero e a prece levaram-me à ermida da minha aldeia:

De quem é a ermida branca,
Erguida num rochedo de pedra,
No cimo do monte mais alto
Desta terra tão formosa?…
Senhora de Pedra Maria.
Rainha de Varziela…

Quem é aquela Senhora, bela,
De manto de renda, dourado,
Alumia inteira a capela,
No monte mais elevado
Desta bem formosa terra?..
Senhora de Pedra Maria.
Rainha de Varziela…

Quem é aquela Senhora,
Lá no alto do altar…
Mais brilhante que a aurora,
De tão doce e terno olhar?…
Com ele,
Enxugou as lágrimas meninas,
De nossos pais e avós…
É a Senhora de todo o mundo…
Rainha de Varziela…

Bendita é a Rainha e Senhora
Que mora no rochedo de pedra,
No monte mais altaneiro
Das terras de Varziela,
Senhora de Pedra Maria!…


...tornando-se num sentimento vivo de fortaleza… e, por fim, a serenidade da esperança.

O bravo capitão de Évora (2), nunca o vi tão branco…calou-se, ensimesmado, durante todo o caminho, no regresso, até ao quartel. Uma semana depois, desapareceu para Bissau e ninguém mais lhe pôs os olhos… Constou que regressara à metrópole, sob custódia e nas masmorras do cárcere, sepultou, para sempre, o sonho do generalato…

Espevitados por aquele banho inesperado de fogo, dali em diante, ficámos em alerta constante para o mais leve rumor de uma nova intervenção.

Um misto de gozo sublime e de medo era a sensação que nos invadia. A exaltação total do nosso ser que a operação causara, fascinava e atraía-nos para a repetição… Ao mesmo tempo, a consciência do risco de vida, extremo, trazía-nos estarrecidos perante um simples rumor ou hipótese de saída…

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

(...) "Em dia certo de Outubro [de 1964], a Companhia 728 fez as malas e teve de avançar para o sul da Guiné [, para a ilha do Como].

"A companhia 726 já tinha seguido para Guileje, de má fama. Seria lá que tudo iria ser jogado. O nervosismo inicial, de quando se conheceu o destino, foi abrandando e o desejo geral era de que, quanto mais depressa, melhor.

"A secção de espólio, comandada pelo alferes Barros dos Santos, com o 1º sargento Santos e o sargento Gaspar, já tinha feito a recepção do material, no próprio quartel, na ilha do Como. As suas impressões não eram tão más como isso.

"A companhia que íamos render [a CCAV 488 ?] já tivera o grande trabalho de construir, de raíz, as instalações mínimas que havia e, segundo disseram, limitava-se a marcar presença no terreno. Nunca fora atacada, depois de terminar a grande operação que a deixou lá [, a Op Tridente]" (...).

(2) Vd. crónicas anteriores:

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

Guiné 63/74 - P1358: No cais do Xime, dois velhos Unimog pedindo boleia a algum barco (António Rosinha, ex-topógrafo da TECNIL)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > 1997 > Rio Geba. Cais de desembarque em ruínas. Era a porta de entra da zona leste: por aqui passaram, durante a guerra colonial (1963/74), milhares e milhares de homens, viaturas , armas e demais material, desembarcados em LDG (Lanchas de Desembarque Grandes). A partir do Xime (em frente, havia um outro destacamento, Enxalé), o rio passava a designar-se por Geba Estreito, sendo navegável até Bafatá apenas através de pequenas embarcações civis ou LDP (Lanchas de Desembarque Pequenas). Entre as embarcações civis, destacava-se os barcos da famosa Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF - Companhia União Fabril. O ataque a embarcações no Geba Estreito era frequente, obrigando à realização de patrulhamentos ofensivos na região de Mato Cão.

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Bambadinca-Xime > Rio Udunduma > 1970 > A estrada Xime (à direita) - Bambadina (à esquerda), com a respectiva ponte, semi-destruída. Vísivel também o troço da nova estrada que estava em construção, a cargo da empresa Tecnil, e que implicou a construção de uma nova ponte. Fioto aérea tirada no sentido Noroeste-Sudeste, ou seja, do lado de Nhabijões (vd. carta de Bambadinca).

Foto: © Humberto Reis(2006). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Bambadinca-Xime > Ponte do Rio Udunduma > 1970 > Gr Comb da CCAÇ 12 > Pesca à linha (Humberto Reis), banho à Pai Adão, passeio de canoa, dias felizes (se descontarmos o pesadelo das noites) (1)... Nesta velha ponte, construída em 1952 e dinamitada pelo PAIGC em 28 de Maio de 1969, passava a estrada que ligava o Xime a toda a zona leste. Em 1970, a Tecnil estava a construir uma nova estrada e uma nova ponte...
Foto: © Humberto Reis(2006)


Texto do António Rosinha (2), com um belíssimo e nostálgico título > A estrada Bambadinca-Xime e dois Unimog alinhados frente ao canal do Enxalé, pedindo boleia a algum barco (1990)

Luis Graça, este será em tua lembrança, o primeiro contacto com os tertulianos, cujas mensagens leio há meses, e a quem desejo as maiores felicidades.

Mais ou menos vinte anos depois de assistires, de arma na mão, à construção da estrada em referência, estou eu na Guiné-Bissau, nas Obras Públicas como cooperante (detesto esta palavra tanto como a de colonialista).

E a minha visita ao Xime foi precisamente dentro de um projecto de manutenção de estradas do Banco Mundial em que tinha que observar todas as estradas a fim de serem reabilitadas. Esta era uma estrada com curvas suaves, bastante plana num terreno acidentado, teve portanto muito trabalho de aterros altos, com vários aquedutos com tubos metálicos, muita vegetação verdíssima.

Verifiquei que o asfalto tinha envelhecido sem uso: de facto, não vi nenhuma viatura passar por mim talvez em mais de 2 horas. Chegando ao Xime, vê-se do lado esquerdo um morro com umas construções abandonadas que tanto seriam para quartel como também para alguma função administrativa. E mesmo no fim do asfalto, um grande descampado que poderia ser parada de quartel: onde se apresentam dois Unimogues ,alinhados, envelhecidos sem uso, junto ao canal [Rio Geba], onde provavelmente passou algum barco e eles não couberam.

Pareceu-me tudo intocado. Informei-me, com um velho empregado da TECNIL, que o encarregado dessa estrada era de Alpedrinha, Beira Baixa. Os velhos patrões da Tecnil, embora se dessem bem com Luís Cabral, não tiveram pedalada, e a seguir ao Luís ir embora, venderam tudo à Soares da Costa.

Quem não viveu aquela guerra e estava na idade, passou ao lado dum momento histórico, relevante, de Portugal e daqueles países. Eu, tendo oportunidade como tive, não os perderia jamais.
___________

Notas de L. G.:

(1) Vd. post de 4 de Fevereiro de 2006> Guiné 63/74 - CDXCVIII: Os dias felizes na ponte do Rio Undunduma (CCAÇ 12) (Luís GRaça / Humberto Reis)

(2) Vd. post de 29 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1327: Blogoterapia (7): Furriel Miliciano em Angola, em 1961; topógrafo da TECNIL, em Bissau, em 1979 (António Rosinha)

domingo, 10 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1357: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (3): Nem a cruz nem o altar (Mário Dias / Luís Graça)

Guiné > Brá > 1965/66 > Emblema do Grupo de Comandos Diabólicos, do Alf Briote, e a que pertenceu também o então 1º cabo Marcelino da Mata (hoje, cortonel do exército, na reforma, e cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada) (1).

Foto: © Virgínio Briote (2006). Direitos reservados. (Reproduzido do blogue Tantas Vidas, com a devida vénia...).


1. Mensagem do Mário Dias, com data de 9 de Outubro de 2006:

Caro Luis:

Como sabes, conheci e lidei de perto com o Marcelino da Mata, actualmente residente em Queluz e com quem me encontro de vez em quando.

Estou disposto a ajudar a filha dele nesta homenagem tão simpática que ela quer prestar ao pai. Como fazê-lo? Directamente para ela ou através de ti?

Mantenhas.

Mário Dias

2. Resposta de L.G., na volta do correio:

Mário:

És um homem puro e generoso, sem parti-pris... Eu nunca conheci o Marcelino da Mata... Não me sinto juiz de ninguém, nem quero sê-lo, nomeadamente quando estão em causa antigos combatentes da Guiné, como eu... Deformação profissional, sociológica ? É possível... Deixo isso à história, ao futuro, aos nossos nossos netos, que nos hão-de julgar... Além disso, estamos a falar de antigos combatentes que ainda estão vivos... A questão é sempre delicada.

Julgo não ter feito a guerra como o Marcelino da Mata, ou nem sequer como tu que te ofereceste para os comandos... Tu defendias uma terra que amavas, desde os teus 15 anos... Quem te poderá apontar o dedo por lutares por convicção e patriotismo ? Ou a mim, por ter feito um papel de resistência passiva (fraca, mole...) que a minha consciência me impunha ?

No caso do Marcelino, eu gostava no mínimo de conhecer a sua história de vida, a sua acção, os seus feitos... Muita coisa já pertence ao domínio da lenda, do mito ... Eu quero o teu testemunho sereno e privilegado, o teu, o do Virgínio e de outros camaradas que com ele conviveram de perto... Vocês têm uma autoridade que ninguém mais tem na tertúlia, com excepção do coronel Nuno Rubim de quem ele foi subordinado nos anos de 1966 (segundo creio): por isso, o vosso depoimento, o vosso testemunho, é essencial...

Eu sei que o Marcelino da Mata - heroificado à direita, crucificado à esquerda - poderá vir a ser outra questão fracturante no nosso blogue, na nossa tertúlia... Vamos ter que agir com serenidade, lucidez, objectividade... Não vamos crucificá-lo nem pô-lo no altar... Interessa-nos o homem, o cidadão, o militar, o combatente (2)... É, além disso, um oficial superior do Exército Português que deve deve ser tratado como tal.

Mas eu penso que já atingimos a maturidade... Somos capazes de falar, uns com os outros, sem puxar pela G-3, ou no mínimo com a G-3 em segurança... Não há nada - pelo menos, comigo, como editor do blogue - que não se possa evocar, falar, descrever, narrar, criticar, contestar, do Salazar ao Amílcar Cabral, do Otelo ao Nino, do Alpoím Galvão ao Luís Cabral... Em suma, não há vacas sagradas na nossa caserna virtual...

Só quero (exijo) que as pessoas, os tertulianos, exponham os factos, contem o que viram, o que sentiram, o que pensaram... Sem preconceitos ideológicos (O que não quer dizer sem valores): o Marcelino da Mata foi um combatente, ao que parece excepcional... Posso interrogar-me sobre os seus métodos de actuação, depois de conhecer a sua estória... Não o conhecendo, não posso ter uma opinião sobre ele, muito menos baseada no diz-que-disse...

Há a questão (delicada) da informação a dar à sua filha... A vida de seu pai não foi nenhum conto de fadas, como ela de resto o deve saber há muito... Mas ela é uma pessoa adulta, saberá ler e contextualizar a informação que vier a ser inserida no blogue... Ela tem direito à verdade, tal como os filhos de outros combantentes, tal como nós e os nossos filhos... Foi ela, de resto, que nos pediu estes testemunhos...

O Marcelino, o Saiegh, o Bacar Jaló, o Luís Graça, o Mário Dias, o Beja Santos, o João Tunes, o Jorge Cabral ou o Virgínio Briote e os restantes membros da nossa tertúlia, todos nós estivemos, objectivamente, do mesmo lado da barricada... Seguramente, que não pensávamos todos da mesma maneira, nem actuámos da mesma maneira, mas isso que importa agora!?...

Mário: tens uma grande responsabilidade... Vais dar o pontapé de saída... O Virgínio também vais vasculhar o baú, lá em Esposende (2)...

3. Comentário do Mário Dias (cujo prometido testemunho sobre o Marcelino da Mata continuo a aguardar, desde 10 de Outubro de 2006):

Caro Luís:

Passando por cima dos elogios que me fazes, imerecidos, mas que agradeço, aceito o teu desafio e o mais brevemente que me for possível, vou narrar a história do Marcelino apenas na parte respeitante à vivência que com ele tive entre 1963 e 1966 (3). Do restante da sua vida, apenas conheço o que tenho ouvido e lido e que é do domínio público.

Claro que o julgamento que cada um faz está condicionado pela forma como ideologicamente vê e interpreta os factos. O que para uns é um acto justo e necessário, para outros será um excesso criminoso. Não é raro que alguém clame contra a injusta barbaridade dos seus opositores e enalteça como justas e patrióticas barbaridades semelhantes, e por vezes bem maiores, cometidas pela parte com que simpatiza e apoia.

Um abraço e até breve.

Mário Dias

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. o sítio oficial da Associação de Comandos > Galeria dos Heróis > Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito > Marcelino da Mata


(2) Vd. posts anteriores:

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1355: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata a pedido de sua filha Irene (2): Orgulho-me de o ter conhecido em Guileje (José Carvalho)

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1354: Testemunhos sobre Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (1): De 1º Cabo Comando a Torre e Espada (Virgínio Briote)

(3) De acordo com o blogue do Virgínio Briote, Tantas Vidas, o Marcelino da Mata fez parte do Grupo de Comandos, os Diabólicos, estando estado integrado na 1ª equipa:


GRUPO DE COMANDOS DIABÓLICOS (ao tempo da estadia em Barro)

1ª Equipa

1º Cabo Marcelino da Mata
Soldado Carlos Alberto dos Santos Roberto
Alferes Briote
Soldado José Feitinhas de Matos/ANPRC10
Soldado Álvaro dos Santos/Enfº

2ª Equipa

Soldado José Marques
Soldado José Caleiro
Furriel Caetano Azevedo
Soldado António Alves Maria da Silva
Soldado Joaquim Esperto

3ª Equipa

Soldado Domingos Lopes
Soldado José C. Martins
Sargento Mário Valente
Soldado Albino Ferreira da Silva / MG-42
Soldado Mamadú Jaló

4ª Equipa

Soldado Fernando Moura
Soldado Bacar Mané
1º cabo Carlos Faria Black
1º Cabo Casimiro Anselmo
1º Cabo António Domingues


Em 4 de Setembro de 1965, quando terminaram o 2º Curso de Comandos,- juntamente com os Apaches (Alf António Vilaça e Vítor Caldeira), os Vampiros (Alf António A. Neves da Silva) e os Centuriões (Luís M. N. Almeida Rainha), os Diabólicos eram assim constituídos (entre parênteses, indica-se a sua unidade de origem e assinalam-se, em observação em itálico, os que já morreram e em circunstâncias):

Alf. V. Briote (CCAV 489/BCAV 490)
2º Sarg. Mário J. Machado Valente (CCS/QG)
Fur. Caetano Azevedo (CCAÇ 764)
Fur. Fernando Marques de Matos (Pel Caç 953)
1º Cabo Carlos Filipe Faria (CCaç 462)
Sold. Bacar Djassi (CCS/QG) (fuzilado)
1º Cabo Mamadu Jaló (Agrup 16) (fuzilado)
Sold. Albino F. Silva (CCS/BCAÇ 697) (falecido)
Sold. José Vicente Caleiro Júnior (CCS/BCAÇ 697)
1º Cabo José Henriques Cristóvão(CCS/BCAÇ 790)
Sold. António Jesus da Silva (CCS/BCAÇ 790)
Sold. António A. M. Silva (CCAÇ 674) (morto, Jabadá, 06/03/66)
Sold. Fernando Simões Moura (CCAÇ 726)
Sold. António Amador Caeiro (CCAÇ 726) (falecido)
Sold. Bacar Mané (BAC) (falecido)
1º Cabo António Rita Domingues (CART 732) (falecido)
Sold. Álvaro dos Santos (CCAV 677)
Sold. Carlos Alberto S.Roberto (CCAV 677)
Sold. Domingos Lopes (CCAV 703)
1º Cabo Casimiro Oliveira Anselmo (CCAV 789)
Sold. José Correia Martins (CCAV 789)
Sold. Joaquim Ventura Esperto (CCAV 789)
Sold. José Feitinha de Matos (CCAV 789)
Sold. Diamantino F. M. Carvalho (CCAV 789)
Sold. José Joaquim Pereira Marques (CCAV 678)

Guiné 63/74 - P1355: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata a pedido de sua filha Irene (2): Orgulho-me de o ter conhecido em Guileje (José C. Carvalho)

Lisboa > Belém> 10 de Junho de 2003 > Marcelino da Mata, antigo comando, ao lado do ex-furriel mil op especiais José Casimiro Carvalho (CCAV 8350 , Guileje, 1972/73). Marcelino da Mata é hoje oficial superior, na reforma, do Exército Português, tendo sido graduado em tenente coronel (LG).

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do José Carvalho, com data de 11 de Outubro de 2006:

Tenho um orgulho tão grande em falar desse homem que se me arrepia o corpo só de falar no célebre Marcelino da Mata (1).

Tive o grande privilégio de o ter conhecido e cumprimentado em Guileje, aquando da queda do FIAT G-91 da FAP, conduzido pelo Tenente Pessoa (se a memória não me atraiçoa).

Ele era a imagem do combatente de [contra-] guerrilha, que eu aspirava ser. E não era por acaso, pois o Marcelino, com o seu grupo tão famoso como famigerado - na opinião de alguns -, ostentava garbosamente no seu ombro esquerdo a chapa com Os Vingadores de Operações Especiais...

Estávamos em Maio de 1973, se não me engano, e o tal grupo ia tentar resgatar o corpo do tenente pilooto do FIAT G-91, conjuntamente com a CCAV 8350 e as tropas parquedistas do BCP 121, entretanto chegadas a Guileje.

Eu, na verdura dos meus 21 anos e com o sangue na guelra, sedento por acção - na acepção da palavra -, ofereci-me para fazer parte do grupo do Marcelino. E já pensar na minha gabarolice dos anos vindouros...

O problema é que o Marcelino (grande homem!) aceitou!!!.... Eu nem queria acreditar, mas o meu comandante, o Cap Abel Quintas, irredutivelmente, recusou. Ao que o Marcelino, retorquiu, dizendo:
- Eu trago o seu homem, este ranger, nem que seja às costas... Palavra!!!

Mas nem assim... Vieram-me as lágrimas aos olhos (e esta verdade ninguém a pode contestar), palavra de ranger)... de tanta raiva incontida.

E não é que o Marcelino, há cerca de três anos, lembrava-se textualmente deste episódio da guerra colonial, no dia 10 de Junho em que nos encontrámos ?

Fantástico, que memória, apesar do que sofreu depois do 25 de Abril segundo se consta.

Tenho fotos, no meu álbum (que emprestei ao editor do blogue), tiradas em Guileje, ao grupo do Marcelino, com armamento russo.

Para terminar e reportando-me à data dos factos, e ao clima de guerra em que se vivia - guerra nada honesta e nada concencional- , queria dizer à menina que pediu esta opinião (1) que deve ter muito orgulho nesse combatente destemido e tememário que foi (é) o seu pai.


Tenho dito.

José Carvalho
(ex-fur mil, op espec,
CCAV 8350, Guileje, 1972/73)
____________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posta anterior, de 10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1354: Testemunhos sobre Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (1): De 1º Cabo Comando a Torre e Espada (Virgínio Briote)

Guiné 63/74 - P1354: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene Rodrigues da Mata (1): De 1º Cabo Comando a Torre e Espada (Virgínio Briote)



Guiné > 1966 > Comandos a caminho de Bafatá, junto ao Dakota para operações na região do Xitole. O 1º Cabo Marcelino da Mata (hoje  tenente coronel graduado  na reforma, e com 69 anos de idade) é o primeiro da esquerda, na segunda fila (assinalado a vermelho). Dois dos actuais membros da nossa tertúlia também constam da foto: O Alf Mil Briote, o segundo, a contar da esquerda, da primeira fila (assinalado a verde); e o então Capitão Rubim (hoje coronel na reserva), o 6º da primeira fila, também a contar da esquerda (assinalado a amarelo).

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Em 4 de Outubro de 2006, recebi uma mensagem de e-mail da filha do Marcelino da Mata, Irene Rodrigues da Mata, a pedir a colaboração da nossa tertúlia:

Gostaria de saber se é possivel mandar-me informações sobre o meu pai, Marcelino da Mata. Gostaria de saber mais sobre ele, sobre as missões dele em África.

Para o ano o meu pai fará 70 anos e eu gostaria de lhe oferecer um bibliografia sobre ele e a vida e as missões dele .

Já conversei com alguns dos amigos do meu pai e eles concordaram em ajudar-me. Agradeceria muito se me pudesse ajudar neste trabalho, dando-me informações e fotos sobre ele.

O meu único problema é que eu estou a estudar em inglaterra, mas se me puder mandá las através de e-mail ou indicando-me sites onde poderia encontrar informação sobre ele, seria uma grande ajuda.

Fico lhe imensamente agradecida....
Irene Rodrigues da Mata.


2. Mandei, como de costume, a toda a tertúlia um pedido de colaboração, uma vez que já vários filhos de antigos combatentes nos contactaram a pedir ajuda. Alguns dos nossos tertulianos que o conheceram, de mais perto, na Guiné, já responderam à Irene Mata. Hoje começo por publicar o testemunho do Virgínio Briote, que mandou de imediato o seguinte e-mail à Irene.

Irene,

Conheci o teu Pai em Junho de 1965 em Bissau. O Marcelino já na altura era uma lenda da guerra que então se travava na Guiné. Nos comandos em Brá o então cabo Marcelino da Mata foi o 1º homem do grupo que eu comandava, os Diabólicos.

Estou a recolher fotos e documentos da época que eventualmente te possam interessar. Tenho muito gosto em o fazer e, desta forma, prestar também a minha homenagem a um homem não muito fácil e, por isso mesmo, muitas vezes incompreendido, mas com o qual mantive boas relações.

Entretanto podes procurar algumas imagens e alguns textos do Marcelino daqueles tempos no blogue, Tantas Vidas.

Um abraço,
vb


3. O editor do blogue fez um primeiro comentário, a 6 de Outubro, a este e-mail do Virgínio Brite:

Obrigado, Virgínio... Há muitos preconceitos contra o Marcelino da Mata... Não gostaria que o fuzilássemos, simbolicamente, aqui no blogue... É um nome incontornável da guerra colonial, um mito... A mim, que não o conheci, interessa-me o homem...

Achei bonito o gesto da filha... Tu que o conheceste, de tão perto, podes falar dele com o rigor, a isenção e a objectividade que nos faltam, a nós... Espero que isso possa ser também ocasião para uma (re)visita à tertúlia...

Entretanto, o que é feito de ti ? O Tantas Vidas parou em Julho... O que se passa ? Como vai a tua saúde ? Hoje fiz-te uma pequena homenagem, remetendo os nossos tertulianos para alguns dos teus "belos, intimistas e perturbantes" textos... Não há ninguém a falar das mulheres na guerra como tu... Acho que está na altura de arranjares uma editora e publicares uma selecção dos teus textos... Até 14 [de Outubro, na Ameira].


4. Novo pedido da Irene Mata, em 7 de Outubro de 2006, em resposta ao Virgínio Briote:

Sr. Virgínio, muito obrigada por me estar a ajudar.

Agradeço-lhe imenso por me ter mandado Informação sobre o meu pai. Estou muito impressionada pelo o que o meu pai fez e conquistou tanto aqui como na Guiné. Mas mais ainda estou contente por ele ter feito muitos amigos, de ter conhecido pessoas que o ajudaram e que lhe admiram.

Mas tenho uma dúvida: É verdade que o meu pai não pode entrar na Guine porque a PAIGC anda-lhe a perseguir e que tem um forno pronto para o meter la dentro ? Ou será que isso é só uma lenda ???

Eu ouvi essa historia quando era mais nova, mas, agora estou na dúvida... Será que me podia esclarecer, sff ?

Fico-lhe muito agradecida.


5. Entretanto, o Virgínio tinha respondido ao editor do blogue, a 7 de Outubro, nestes termos:

Caro Luís,

Claro que continuo a frequentar diariamente o foranada. É um gosto ver aparecer gente quase todos os dias. O Vinhais, o Beja, o Tino, o Marques dos Santos, o Vítor David, o Idálio, o Mexia, o Jorge Cabral que não conheço mas é como se o tratasse por tu quando leio as incríveis histórias que ele tão bem desenha, o Lema da Marinha, técnico e preciso nas descrições, o Pedro Lauret que já conhecia de nome, o Rebocho e os trabalhos dele com os corpos dos nossos camaradas que eu já nem sabia que houvesse gente desta por cá, as pontuadas do Tunes de vez em quando. Pessoal tão diferente, de comum apenas 24 meses passados há mais de 30 anos! Para a nossa história, a de Portugal, o foranada é uma obra inédita, até sinto pudor em palavrar.

O Tantas Vidas acabou. Eventualmente uma ou outra correcção, umas fotos para tratar e pronto. Amanhã vou a Esposende, procurar no sótão da casa da minha mãe algumas imagens do Marcelino da Mata para enviar à filha.

Obrigado Luís pelo teu cuidado, felizmente tenho-me aguentado. E ansioso por dar um abraço aos foranadas que aparecerem na Ameira, pena é que não veja o Tunes, o Beja Santos, o famoso Pira de Mansoa, o Mendes, o Coronel Lopes e tantos outros trabalhadores desta obra que tu tão bem coordenas.

Um abraço,
vb


6. Novo e-mail do Virgínio, dirigido à Irene:

Irene:

Gostei de ler a sua mensagem. Conheci o seu Pai, Marcelino da Mata, então 1º cabo do Exército, em Maio ou Junho de 1965. Vi-o em Brá, um aquartelamento do Exército Português a meia dúzia de kms de Bissau na estrada para o aeroporto de Bissalanca.

Era um jovem com bom aspecto, ar de reguila, aspecto enérgico. Ele tinha feito a opção pelo Estado Português e como militar teve que combater o PAIGC, o Partido que então encabeçava a luta armada contra o colonialismo português. Foi a decisão que tomou, tal como milhares de Guineenses e, por isso, passou a ser um inimigo do PAIGC.

Fez parte dos primeiros comandos que existiram na Guiné. Participou em inúmeras batalhas em praticamente todo o território. Foi sempre um militar muito valente e, por iso, várias vezes condecorado, desde a Cruz de Guerra (várias) até à Torre e Espada (a mais alta condecoração nacional e só atribuída em casos excepcionais).

Depois houve o 25 de Abril, ele estava na Guiné, a independência veio logo a seguir em Setembro de 1974 e o Marcelino, tal como vários militares que se distinguiram na luta ficou com a vida em perigo. Muitos dos que lá ficaram foram fuzilados e ele saiu da Guiné e fez muito bem porque se lá tivesse ficado já não era vivo há muito.

Penso que hoje, com tanto tempo passado, se ele regressasse ao chão que o viu nascer, nada lhe aconteceria. Mas a Irene sabe, as previsões só são isso. Nunca se sabe o que poderia suceder.

Quanto a essa história do forno, pode ser só isso, uma história apenas. E pronto Irene, podíamos estar aqui a falar do seu pai o dia todo e se calhar ainda nos esqueciamos de muita coisa.

E os seus estudos como vão? O que está a tirar?

Um abraço,
vb

Guiné 63/74 - P1353: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (1): O bababaga e o papa-figos

AO CORRER DA BOLHA - I

O Bagabaga e o Papa-figos

por Torcato Mendonça

Vi a foto – linda – do bagabaga (1). Recordei-os, espalhados por vários lados e sendo mesmo motivo de algumas estórias.

Com saudade, recordo uma. Eu conto:

O João Figueiras, 1º Cabo Condutor, algarvio de Faro, era um rapaz alegre e brincalhão. Havia, entre nós, uma natural empatia e cumplicidade por motivos vários. Coisas de homens do Sul e que ficam no vento ou vão com as aves… Dois breves episódios com ele:

1º episódio

Estava em Fá (1) e um dia fui chamado a Bambadinca. Viagem curta, rápida, sem perigos e fizemo-la de jipe. O João a conduzir, eu (à cautela devidamente armado) e um militar da mecânica para trazer baterias.

Assuntos rapidamente tratados, regressámos. Talvez, um quilómetro depois de Bambadinca disse ao João:
- A estrada é asfaltada, deixa-me conduzir.

Troca de lugar e lá vamos nós. Devagar dizia, de quando em vez o João. Abrandava um pouco e lá íamos nós.
- Olhe o cruzamento… o cruzamento!... - Só que tarde demais. Fui a direito capim fora, fintei bagabagas, tirei os pés dos pedais, agarrei forte o volante... mas zás, bati num tronco escondido no capim.
- Ai, ai!!! - gritava o João. Mas estávamos todos bem. Só que jipe tinha o pára-choques torcido.

Passou ele a conduzir e pouco depois estávamos em Fá. Um azar nunca vem só! Pouco depois da entrada, aí estava o 1º Sargento. Olhou, apontou o estrago e sorriu…
- Bateste!
- Não foi ele, fui eu. - Fez-se vermelho, inchou o peito gordo de ar e conteve a raiva. Tivemos sempre um contido ódio de estimação, desde Évora e mantivemo-la até fim da comissão.
Sendo assim abateu-se o pára-choques e siga a dança…

2º episódio

O João pediu-me, várias vezes, para ir comigo no mato. Numa daquelas idas simples... Sabe-se lá o que é simples. Eu dizia-lhe:
- Ó João isso não é para ti. Se te aleijas está tudo tramado e lá fica Faro sem um condutor de táxi.

Tanto insistiu, o bom do João, que um dia foi connosco.
- Vais sempre ao pé de mim e do Serra.

Íamos montar uma emboscada. Caminhamos, volteamos e, já com a noite a chegar paramos. Emboscada montada, silêncio total…toques nos rádios previamente combinados e pedrinhas atiradas, de tempos a tempos, para despertar algum dorminhoco. O João mexia-se, queria falar, soprava…para um algarvio estar tanto tempo calado é difícil. Tinha fome, sede…
- Então João, o colchão É duro…? Fumar…?

De repente o aviso. Aproxima-se qualquer coisa… Breve preparação… gestos treinados…à espera. Novo aviso: são bichos. Espera… É um casal de macacos-cães que berram desalmadamente. Ri a malta e descomprime. Fala o João:
- Mon dé, qué iste débe, nem cem cães?
- Cala, cala…quieto.

Com a primeira claridade da madrugada, redobram as cautelas. Só que o João olhou para o alto de um bagabaga, ali junto de nós, e exclamou:
- Olha um papa-figues.
- Cala-te, porra, aqui não há figos quanto mais papa-figos, não estragues isto.

Breve distracção e sinto um toque no ombro
– Olhe o gajo! … - E lá ia trepando o bagabaga…
- Ai o caraças… - Mas a malta olhava e apostava que ele apanhava o pássaro… Mais um pouco… um olho na picada, outro no João… ele estica, por fim a mão e quase apanha o pássaro que, certamente aflito, grasna e foge. Desequilibra-se o João, berra que nem capado e estatela-se no chão. Correm em seu socorro e com o barulho termina a emboscada.

O João estava triste e abanava a cabeça.

No futuro, quando passava pelo João às vezes dizia-lhe:
- Mon dé, queres um papa-figos? - Ou, se avistava um bagabaga e ele estava perto, bastava dizer o nome dele e olhar na direcção do formigueiro…

A 19 de Setembro de 1968, o meu camarada João Figueiras foi ferido gravemente, na célebre emboscada à fonte de Mansambo (3). Dizem que era comandada por um internacionalista cubano…!

Faleceu a 25 desse mês no Hospital Militar de Bissau (4).

E ainda dizem…

__________

Notas de L.G.:

(1) A CART 2339 (1968/69, a que pertencia o Alf Mil Torcato Mendonça, esteve originalmente em Fá (Mandinga), a nordeste de Bambadinca, antes de passar a undidade de quadrícula de Mansambo.

(2) Vd. post de 7 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1348: Concurso O Melhor Bagabaga (2): Bissau (David Guimarães)

(3) Sobre a fonte de Mansambo e as suas tragédias, vd. posts de:

5 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1248: Monteiro: apanhado à unha na fonte de Mansambo em 1968, retido pelo IN em Conacri, libertado em 1970 (Torcato Mendonça)

2 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXV: Do Porto a Bissau (12): A fonte de Mansambo (Albano Costa)

14 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCVIII: A emboscada na fonte de Mansambo (19 de Setembro de 1968) (Carlos Marques dos Santos)

30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDI: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (3): Memórias da CART 2339 (Luís Graça / Carlos Marques dos Santos)

(4) Vd. post de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DIX: As baixas da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) (Carlos Marques dos Santos).