quarta-feira, 4 de março de 2009

Guiné 63/74 - P3983: Nuvens negras sobre Bissau (16): O 'Nino' e o Luís Cabral que eu conheci, em 1979-1993 (António Rosinha)

1. Mensagem do António Rosinha, nosso amigo e camarada, ex-Furriel Miliciano em Angola (1961) , topógrafo na TECNIL, na Guiné-Bissau, entre 1979/93 (*), membro da nossa Tabanca Grande desde Novembro de 2006: 

  Assunto - Nino, Luís Cabral, Amílcar Cabral, Spínola... 


 Amigos editores e bloguistas, [Bold, da responsabilidade do editor, L.G.] Só pretendo emitir uma opinião neste momento histórico para a Guiné, com a morte de NINO, pelo simples facto de tentar explicar o que me foi dado perceber o que o povo da Guiné, o povo simples, pensava dos principais obreiros da independência da Guiné e Caboverde. Isto durante 1979-1993. E só faço este esforço de análise, porque sempre achei curioso o que pensavam os nossos colonizados, angolanos e guineenses, destas figuras. Gostava era de ler algo analisado por guineenses (**). 

 Caboverdeanos que tive inúmeros como colegas e superiores profissionais, e da boémia de juventude em Luanda, nunca os tive como colonizados. A maioria estão em Portugal, como eu. A propósito, temos que lembrar que o que se passa na Guiné, tirando os fuzilamentos dos nossos comandos africanos, e nunca escrevem os fuzilados em Conakri com o assassinato de Amilcar, tudo o resto de violência é entre os grandes, uns e outros, porque noutros paises, Serra Leoa, Ruanda, Congo, e mesmo Conacri, etc., não se contam pelos dedos, como na Guiné. 

 Voltando à Guiné, conheci e cumprimentei mais que uma vez, tanto Nino como Luis Cabral. O Luis Cabral visitava constantemente obras públicas onde eu andava. E aí, como eu vivia rodeado de trabalhadores braçais, era privilegiado em informações, só precisava de compreender o crioulo. E os guineenses, quando queriam que eu compreendesse, discutiam em crioulo aberto, caso contrário falavam cerrado e eu, patavina. Eu e qualquer um. 

 E uns meses antes do golpe do Nino, no 14 de Novembro de 1980, o povo já vivia numa revolta surda, em que diziam que o Luís mandava tudo e o Nino, coitado, não mandava nada. Os bormelho mandavam tudo e os filho da terra, nada. O Spinola tinha razão, a Guiné é dos guinéus! E não havia dúvidas, para quem via os dois constantemente passar de carro (estrada do aeroporto durante 1 ano), nunca se viam os dois juntos. 

 Outra coisa que o povo detestava no Luis em favor do coitado do Nino, é que para obter pão e vianda em geral eram bichas (forma) de 24 horas e mais. E de vez em quando lá vinham frases velhas do Spínola. Mas eu só compreendia o à vontade do Luis Cabral, porque de facto ele conseguia subvenções e ajudas e financiamentos mais incríveis, de que só dou duas(2) amostrinhas: 

 (i) Uma fábrica no Cuméré, de transformação de óleo de amendoim e outros, que bombava o óleo directamente para o navio no porto de Bissau para exportação. Eu vi a fábrica, e vi a extremidade do pipe-line no cais de Bissau. (financiamento francês); 

 (ii) Uma fábrica de montagem da Citröen, em frente aos quartéis de Brá. Vi e orientei uns trabalhos da minha especialidade nessa fábrica. Até umas casas para residência de fins de semana das familias dos funcionários, eu vi o projecto (só projecto). Esta ainda chegou a produzir alguns carros...

Mas ainda mais perigoso para Luís Cabral era o à vontade com que preparava um congresso do partido em que ia ser consagrado o sonho de Amilcar, a UNIDADE GUINÉ CABO VERDE. Partido e País Único. E vinha sempre a conversa do Spínola, a Guiné dos Guinéus. E o Nino, coitado, não manda nada. Até que, uns dias antes do tal congresso, se dá o 14 de Novembro, e para o povo, foi como que um tirar a pressão a uma panela, um respirar fundo, em que constantemente se ouvia que agora eram independentes. 

 Sem estarmos em Bissau, e pondo-nos a imaginar, será que foi outra panela de pressão que se abriu para aquele povo? Mas aquela imagem que se quer dar por nós, europeus, sobre Nino, como grande militar mas politicamente pelo contrário, não é bem assim para os africanos, e até se pode considerar que internacionalmente conseguiu muitos sucessos. Copiando o que viu fazer ao Amílcar e ao Luís, conseguiu toda a cooperação que eles conseguiram, ou seja os financiamentos Suecos, Soviéticos, Franceses (com estes teve muita classe), com Portugal não nos ficou barato, TAP, agricultura, bolsas, etc.. 

Com os políticos africanos esteve sempre em casa. O nosso ponto de vista (brancos, europeus) está nos antípodas dos africanos. Por exemplo, para nós, dentro da nossa lógica, bom seria o SENGHOR, menos seria SEKOU TOURÉ, para os guineenses. Mantive discussões, principalmente com gente do partido, que bom era o Sekou Touré, pois que o Senghor era um lacaio dos franceses, e lá vinha a conversa do neocolonialismo e do paternalismo, etc. Aliás, isso era um dos tópicos do Amílcar. 

 E quando se fala entre os europeus de Mandela ou Mugabe, não é a mesma coisa que entre os africanos. Mas com a Inglaterra os africanos não brincam... Outra ideia que me ficou do povo da Guiné, é que, sem excepção, todos queriam a Independência, não eram só os membros do Partido, mas isso já eu tinha compreendido em Angola, só que o povo tem a sua sabedoria, e usaram um cepticismo à espera de qualquer coisa

 Mas uma coisa é certa, os nossos ex-colonizados não nos podem acusar de ter preparado uma elite: E aí não produzimos Mobutus, Idi Amin's, Mandelas, nem Mugabes, nem Senghors Bokassas, etc. porque se os produzíssemos não tinhamos força militar nem política para os proteger como fez a França, a Inglaterra e até América e Rússia. 

 Eu como vi milhares de sanzalas em Angola, absolutamente incrédulas quanto aos três movimentos mais as franjas, sem Salazar ou com Salazar, com comunismo ou sem, achava que não podiamos fazer o que fizeram os vizinhos Belgas, porque todos os cooperantes internacionais que vim encontrar de máquina fotográfica a tiracolo na Guiné, já os tinha visto no Congo Belga, 30 anos antes. Ainda continuam lá. Então, a ONU, em África onde aparece atrai raio! 

 Um abraço Antº Rosinha 

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 Notas de L.G.: 


Guiné 63/74 - P3982: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (7): Ferreira da Silva, ex-Capitão Comando, novo comandante do COP 5 a partir de 31/5/1973

Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Uma Lancha de Desembarque Média (LDM) com militares e populares no Rio Cacine, fugindo do inferno... Há pontos (polémicos) que o antigo Cap Comando Ferreira da Silva poderia ajudar-nos a esclarecer como: (i) a debandada de Gadamael; (ii) a alegada ordem de Spínola para 'metralhar' os desertores...

Foto: © Delgadinho Rodrigues /
Manuel Rebocho (2006). Direitos reservados.


1. Mensagem de Ferreira da Silva, Cor Cmd Ref, que passa a ser um novo membro da nossa Tabanca Grande (Aguardamos que nos mande as fotografias da praxe, e que nos conte algo mais sobre os meses que passou em Gadamael entre 31 de Maio de 1973 e princípios de 1974)


Caro Luís Graça, amigos e combatentes (*)

Antes de mais os meus parabéns ao vosso blogue, e as minhas desculpas por ainda não ter participado, mas encontro-me a frequentar um curso de informática face às minhas dificuldades nestas novas tecnologias.

Em segundo lugar, quero salientar que tenho muita honra em ter sido combatente, como centenas de milhar de portugueses, que fizeram a guerra nas condições difíceis que todos conhecemos, a quem a Pátria ainda não prestou o devido reconhecimento.

Considero ainda a batalha de Gadamael, como uma das mais decisivas da nossa Guerra em África, e como estive aí colocado como comandante e adjunto durante vários meses tenho muito gosto em dar a minha opinião.

Todos os intervenientes tiveram uma actuação importante face à difícil situação verificada.

Relativamente a um artigo do jornalista Eduardo Dâmaso (**), publicado no jornal “Público”, de 26/6/2005, em que refere que no dia crítico de 1 de Junho de 2003 fiquei sem oficiais, informo que lhe enviei na altura um texto escrito, em que digo que fiquei sem capitães, o que foi verdade pois ficaram feridos e foram evacuados, o que ele confirma no desenvolvimento do artigo.

Para os mais interessados neste tema informo que o livro “Guerra Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros”, de Manuel Amaro Bernardo, contêm a minha opinião sobre Gadamael e que a intervenção dos paraquedistas consta do livro “A Geração do Fim”. (***)

Para terminar, para avivar a minha memória, gostaria de contactar com combatentes que estiveram em Gadamael em 1 de Junho de 2003. O meu contacto, para além do mail, é o 965772007.

Queria reiterar ao Luís Graça os meus parabéns e agradecimentos, e aos combatentes a minha solidariedade, respeito e admiração.

Ferreira da Silva
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Notas de L.G.:

(*) 1 de Março de 2009 >Guiné 63/74 - P3954: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (6): A posição, mais difícil do que a minha, do Cap Cmd Ferreira da Silva (João Seabra)

(...) O [então capitão, hoje Coronel, ] Ferreira da Silva foi inicialmente colocado no Batalhão de Comandos da Guiné, numa operação no Morés, a sua viatura (um Unimogue) rebentou uma mina que matou os demais ocupantes, tendo ele sofrido fracturas nos dois braços e mais ferimentos, e sido obrigado a pedir a sua própria evacuação.

Evacuado para Portugal, pediu para terminar a sua comissão na Guiné, sendo colocado no CIM [Centro de Instrução Militar] de Bolama.

No dia 31 de Maio de 1973, foi recolhido de helicóptero e depositado em Cacine, seguindo-se uma viagem de sintex para Gadamael onde foi despejado ao fim da manhã, para substituir o Sr. Coronel (hoje Major General) Durão, com quem teve uma brevíssima conversa, onde lhe foi sugerido que o Sector estava calmo e controlado.

Este último oficial, seguiu imediatamente para Cufar, via Cacine, no mesmo sintex.

O Cap Ferreira da Silva nem teve tempo para reconhecer o aquartelamento, e mal conheceu os capitães das duas Companhias [ ali estacionadas ].

Ao princípio da tarde desse mesmo dia começaram as flagelações a Gadamael, e no dia seguinte de manhã os dois capitães foram evacuados.

O Cap Ferreira da Silva não conhecia os demais oficiais e, naquela confusão, não sabia onde os encontrar.

Dito isto, o proverbial “tratamento jornalístico” encontra logo um grande motivo de interesse: “ficou sem oficiais”.

(...) O então Capitão Comando Ferreira da Silva ficou em Gadamael até 1974, e pode contar-nos coisas muito interessantes sobre aquele sector, no pós JUL 73.(...)


(**) O trabalho de investigação do jornalista Eduardo Dâmaso foi publicado em dois postes:

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

Vd. também igual trabalho sobre Guileje (com erros factuais já corrigidos) > 27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2137: Antologia (62): Guileje, 22 de Maio de 1973: Coutinho e Lima, herói ou traidor ? (Eduardo Dâmaso / Luís Graça)


(***) Sobre a batalha de Gadamael, vd. entre outros os seguintes postes:

27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3801: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (4): Cobarde num dia, herói no outro (João Seabra, ex-Alf Mil, CCav 8350)

14 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3623: Recortes de imprensa (11): A guerra do J. Casimiro Carvalho, pirata de Guileje e herói de Gadamael (Correio da Manhã)

16 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2949: Convívios (67): Pessoal da CCAV 8350, no dia 7 de Junho de 2008, na Trofa (J.Casimiro Carvalho/E.Magalhães Ribeiro)

7 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2729: Estórias de Guileje (10): os trânsfugas de Guileje, humilhados e ofendidos (Victor Tavares, CCP 121/BCP 12, 1972/74)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1613: Com as CCP 121, 122 e 123 em Gadamael, em Junho/Julho de 1973: o outro inferno a sul (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista)

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael (Afonso M.F. Sousa / Serafim Lobato)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

2 Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73)(Magalhães Ribeiro)

Guiné 63/74 - P3981: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (1): Aprender a ser solidário

1. Mensagem de Helder Sousa(*), ex-Fur Mil de Transmissões TSF (Bissau e Piche, 1970/72), com data de 21 de Fevereiro de 2009:

Caros amigos e camaradas Editor e co-Editores

Em anexo envio um texto com uma história que, se eventualmente encontrarem algum interesse, podem publicar no nosso Blogue.

Ocorreu durante a Especialidade (2.º Ciclo do CSM) e tem o mérito de, para além do anedótico da situação, revelar a capacidade que havia de se gerarem laços de solidariedade e de resistência, já prenunciadores da disposição que se ia aos poucos alastrando, e também aborda (ao de leve) um outro aspecto que já foi também aflorado num outro texto do Blogue, que é a situação de alguns elementos profissionais irem vivendo e alimentando esquemas remuneratórios alternativos resultando tal, muitas vezes, em prejuizo do pessoal comum.

Cumprimentos
Hélder Sousa


APRENDER A SER SOLIDÁRIO OU UM SALAME DE CHOCOLATE ESPECIAL

A história que quero partilhar convosco teve lugar durante o período do meu 2.º Ciclo de Instrução do CSM o qual, por ser da Especialidade TSF, foi efectuado no então Batalhão de Telegrafistas (BT) à Graça, em Lisboa, decorrendo do final de Setembro de 1969 a Janeiro de 1970.

Fui testemunha directa e parte interessada e envolvida, do acontecimento que a seguir relato, que se passou na segunda quinzena de Outubro de 1969 (em plena época de eleições, lembram-se?) e relembro-o agora principalmente para salientar e reforçar a ideia que a tomada de consciência de cada vez mais elementos da nossa juventude questionando a guerra de África foi sendo feita de modo progressivo e com base em situações com que se viam confrontados, de que o episódio que se segue é um exemplo.

Os dois personagens que acabaram por ser as vítimas desta história foram o Fernando Cruz e o Mário Miguel Rodrigues que foram Fur Mil Transmissões TSF em Nampula, Moçambique. Ambos homens do norte, o Cruz do Porto e o Mário de Barcelos, que foram músicos nos seus tempos de juventude (o Cruz confessou-me que se encontra on de road again), são dois bons amigos, que também seguem o nosso Blogue e que, por via disso, conversando sobre tempos passados, relembraram este episódio que agora passo então a relatar.

O que é que o poderá tornar interessante?

Antes do mais porque, estando eu já em Bissau, portanto em 1971 ou 1972, não sei agora precisar, acabei ouvindo a história, deturpada, como é natural, pois é sabido que quem conta um conto aumenta um ponto e quem a relatava não sabia que eu tinha sido contemporâneo e que por tal poderia fazer correcções ao seu relato, mas também não me dei ao trabalho de o desdizer, já que tenho a ideia de que estava muito mais bem composta, romanceada e bastante lisonjeira para toda a rapaziada do Curso, transformados em verdadeiros heróis, contra as arbitrariedades e desmandos da hierarquia e seus lacaios.

Além disso nem sempre havia disposição, mesmo estando em Bissau, longe do Vietnam, como o Luís Graça escreveu naquela carta dirigida ao seu amigo e que já foi publicada no Blogue, não havia disposição, dizia eu, para grandes discussões. Assim deixei passar as deturpações naquela época e já nem me lembrava da história não fosse o Blogue e os amigos que o lêem.

Depois, porque para lá do caricato da situação, podemos encontrar muitas coisas que devem merecer reflexão e até, porque não, discussão sobre o que se perdeu ou não desde esses tempos, como sejam a solidariedade, o espírito de grupo, a unidade contra situações opressoras, bem assim como relembrar os tais desmandos que ocorriam muitas vezes em nosso prejuízo e muitas mais em benefício dos prevaricadores.

O caso em questão aconteceu, porque já vinha sendo hábito desaparecerem coisas das nossas mesas junto às camas e também dos nossos armários, sendo a vítima principal o Mário Miguel Rodrigues que tinha por norma comprar umas bolachas de chocolate que vinham em caixa metálica de formato rectangular. Andávamos todos aborrecidos com a situação, que ocorria por norma durante a nossa permanência nas aulas, num edifício distante da caserna, e as desconfianças iam, naturalmente, para quem fazia a faxina ou a supervisionava.

Deste modo, tiveram uma ideia para apanhar o ladrãozeco e resolveram passar aos actos. Mas vou deixar o Cruz relembrar os factos. Escreveu-me ele o seguinte:

“…quanto ao incidente na Graça, em Lisboa, as bolachas eram roubadas do armário metálico e eu, numa hora de inspiração intestinal, substitui as bolachas na caixa por um apropriado excremento e coloquei a mesma na parte superior e exterior do armário. Ainda mais fácil do que quando as guardava dentro dele e ao mesmo tempo evitava algum odor menos agradável que ficasse no interior. Mas foi tiro e queda. Não me lembro da marca das bolachas mas eram boas com certeza. Sei que a caixa era rectangular e do trabalho complicado que foi acertar na dita sem danificar a mesma. Obra de arte! (hoje talvez a pudesse expor em Serralves!!! ) Bem...

Nós fomos para as aulas e nessa mesma manhã perto da hora do rancho o Sargento A quis saber quem tinha colocado a caixa em cima do armário. Claro que na altura ninguém se acusou e só eu e o Mário Miguel sabíamos do facto e fomos disfarçando como podíamos.

O tipo (acho que era um Cabo RD) levantou a tampa e, sem ver o conteúdo, pois já era hábito sacar as bolachas, meteu a mão e... sujou os dedinhos. Chamou o Sargento, alegou que tinha ido lá porque cheirava mal, que andava a ver se a camarata tinha sido limpa e que nunca tinha roubado bolachas etc., etc. O Sargento leva a novidade ao Capitão. O Capitão, de que neste momento não sei o nome, quando mais tarde nos inquiriu, quis saber quem foi, começou com um ar muito sério, riu, gozou com o assunto, que nunca tinha tido um caso semelhante, de tal forma que cheguei a pensar que estava safo, mas perante a pressão do Sargento A que era um cara de pau, nos prendou com 3 dias de detenção por autoridade do Comandante Ca FT/BT (Companhia Formação Transmissões/Batalhão Telegrafistas) em 31 Outubro 1969 “por haver introduzido dejectos na camarata infringindo os n.ºs 4 e 9 do Art.º 4 do RDM”.

Esta brincadeira fez com que ficasse de faxina às latrinas pelo menos durante uma semana. Ainda hoje me lembro bem de lavar aqueles poleiros e os azulejos com ácido de baterias (o detergente da época para as pôr a brilhar) e ainda hoje me admiro como alguns gajos tem tão fraca pontaria, mesmo sendo ele cego... E o buraco não era tão pequeno assim...! Acho que o Miguel apanhou castigo igual.

O Capitão deu uma descasca no RD, acreditou que as bolachas estavam a ser repetidamente roubadas mas, perante os factos e falta de provas de roubos anteriores, só eu e o Miguel nos lixámos. O Cabo ficou conhecido pelo Cabo da merda.

Mas nós só nos acusámos como autores materiais e cúmplices do sucedido na aproximação do fim-de-semana, porque havia os camaradas casados, o Reis e o Marques, que queriam muito ir a casa e enquanto não aparecessem os infractores não havia fim-de-semana para ninguém. Todos ficavam no quartel a fazer serviços. Não me lembro bem quanto tempo durou a nossa resistência, (eu e o Miguel discutimos a situação várias vezes até chegarmos a uma decisão), mas perante o quadro que se apresentava e num espírito de camaradagem assumimos a autoria e o fim-de-semana foi radioso para todos... menos para nós. Levei tudo na maior. Afinal três dias passam depressa. E ainda nos divertimos com o truque de deixar cair as moedas no muro do Quartel que era contornado pelo passeio exterior e pela abertura na vedação ficar a ver as pessoas na parte de fora a procurar no chão pelas moedas que achavam tinham deixado cair! Por vezes não controlávamos o riso e lá vinha palavrão como moeda de troca.

Só o toque a detidos a horas inesperadas e a lenga-lenga que tínhamos de dizer ao Oficial de Dia... “apresenta-se o Soldado Miliciano n.º 18489568 que se encontra detido... blá, blá, blá...” não era música para os meus ouvidos nem a letra era agradável. O estar detido não impediu que fosse várias vezes comer qualquer coisa (o bitoque lisboeta) tomar café e beber uns copos na tasca que ficava mesmo em frente da porta de armas. Os Sargentos que estavam na porta normalmente eram compreensivos e os Oficiais eram milicianos e nós não íamos fugir. Ser TSF era outra coisa!...”

Desta história o que eu quero ressaltar são, essencialmente, duas coisas:

- a solidariedade (cumplicidade) que se conseguiu gerar entre nós, um grupo de jovens que só se conheciam há apenas 5 semanas, que, eventualmente, teriam as suas rivalidades, pois faziam-lhes crer que a posição relativa numa lista de classificação podia ser motivo para uma não mobilização (de facto isso aconteceu para os 2 primeiros classificados que eram os 2 que eram casados na altura, lá os conseguimos colocar aí) e que aguentaram sem vacilar, sem bufar, todas as pressões para que houvesse denúncia dos delinquentes;

- a situação de relativa, chamemos-lhe assim, corrupção, com o Sargento A a gerir os serviços a matar (dizia-se) e portanto com os seus homens de mão sempre prontos para o que fosse preciso e protegidos quanto bastasse, com o tal Cabo RD em serviço permanente e que obviamente mereceu todo o empenho do A em sua defesa junto do Capitão que, realmente, perante os factos, e com a impossibilidade de provar que tinham havido roubos anteriormente e que tinham sido efectuados pelo mesmo faxineiro, não tinha outra alternativa, face aos regulamentos, senão aplicar a tal porrada.

E a vida continuou, mais fortes e solidários e em plena época de eleições, as eleições de 1969!

Um abraço!
Hélder Sousa
Fur Mil Trms TSF

Miguel Rodrigues e Fernando Cruz em Nampula
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3926: Efemérides (17): Piche, 22 de Fevereiro de 1971 ou... Carnaval, nunca mais! (Helder Sousa)

Guiné 63/74 - P3980: Convívios (98): Pessoal da CCAÇ 816, Estalagem Zende, dia 9 de Maio de 2009 em Esposende (Rui Silva)

1. Mensagem de Rui Silva(*), ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67, com data de 4 de Março de 2009:

Caro Luís:
Recebe um grande abraço.
Abraço extensivo ao Briote e ao Vinhal. Desejo a melhor saúde nas Vossas pessoas assim como na de todos os nossos camaradas ex-Combatentes na Guiné e que ultimamente (nós todos) foram vítimas de ofensa da parte de um pseudo-jornalista que, em minha opinião, veio à procura de protagonismo (insuficiências) mas não à minha custa.

Junto envio o programa do próximo Convívio da 816 que este ano tem como promotor o nosso camarada de luta o Carlos Salsa e que te peço o publiques no Blogue da Tabanca Grande cada vez mais abrangente cada vez mais interessante e que tu tão sabiamente sabes coordenar, sem esquecer os préstimos valiosos do Briote e do Vinhal.
Bem hajam! Parabéns.

Mais uma vez convido-te a estares presente (era um grande prazer); muita gente da 816 já sabe quem tu és.

Rui Silva
Ex-Fur Mil
CCaç 816


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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3806: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (2): Golpe-de-mão a Morés

Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3945: Convívios (96): Pessoal da CCAÇ 2679, na Pérola do Atlântico no dia 2 de Maio de 2009 (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P3979: Nuvens negras sobre Bissau (15): Morreu o Comandante Nino (David Guimarães)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xitole > 1970 > Vista aérea do Xitole (aquartelamento, posto administrativo e tabanca), localizado perto da margem direita do Rio Corubal. O sector L1 era essencialmente composto pelo triângulo Xime - Bambadinca - Xitole (havia ainda o Cuor, a norte do Rio Geba). O PAIGC tinha, praticamente desde o início da guerra, uma forte presença, em homens armados e em população civil ao longo na margem direita do Rio Corubal (região rica em bolonhas e em florestas-galeria, como a Mata do Fiofioli). Nino também conheceu bem esta zona. Não sei se alguma vez terá ouvido a viola do Guimarães a gemer o fado de Coimbra... Em contrapartida, o Guimarães levantou-lhe as suas minas e armadilhas... Mas nunca as devolveu...

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados



Porto > Maio de 2006 > O David David Guimarães e o António Marques Lopes, dois históricos do nosso blogue, e que são também figuras conhecidas e populares da Tabanca de Matosinhos, encontrando-se regularmente, todas as semanas, ao almoço de 4ª feira, no Restaurante Milho Rei... Como eu costumo lembrar, foram os primeiros, a atabancar, logo em Maio de 2005, no nosso blogue, por mão do Sousa de Castro (se a antiguidade fosse um posto, entre nós, eles os três já hoje eram generais de muitas estrelas)... Por razões circunstanciais, não têm aparecido este ano no nosso blogue.

Foto: © David J. Guimarães (2006). Direitos reservados



1. Mensagem do camarada nº 3, em termos de antiguidade, da nossa Tabanca Grande, o David Guimarães (ex-Fur Mil At Atilharia e Minas, Xitole, sede da CART 2716 / BART 2917, 1970/73), que vive em Espinho, é funcionário da Segurança Social, reformado, e membro do Grupo de Fado de Coimbra do Choupal até à Lapa.


Assunto - Lamento (*)

Nino Vieira... Morre um Presidente de um País que afinal a nós nos é querido, um país que por força de convicções e época nós todos evitamos que se constituísse mais cedo - era assim.

Para mim hoje morre um homem que ontem lutou em favor de sua Pátria e morre às mãos de seus irmãos guineenses. Não me interessa as circunstâncias porque foi morto e se tinham ou não razão para tanto ódio, mas para matar, NÃO.

Curvo-me perante um Comandante, herói da Guiné Bissau, que, quando da minha comissão, lutou nas fileiras do PAIGC exactamente na região onde perstei serviço - a confirmação era dele... E que viveu em Vila Nova de Gaia e de que Luís Cabral faz menção no seu livro Crónica da Libertação .

Morreu, para nós, ex-combatentes, o Comandante Nino, Presidente democraticamente eleito da Guiné-Bissau, um ser humano e isso é que tem significado - NÃO HÁ DIREITO, que se acabe com ninguém nem ninguém tem o direito de matar.

Toda a argumentação de morte adivinhada, anunciada, etc., etc., não cabe nestes parágrafos sob risco de ingerência, embora eu entenda que haja essa tentação, porque também conheci outros comandantes que morreram também desta forma, mas isso é de outro capítulo que não este.

David Guimarães

Ex-Furr Mil At Artilharia e Minas
Xitole 1970/1972

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 4 de Março de 2009 >Guiné 63/74 - P3978: Nuvens negras sobre Bissau (14): N' cansa tchora guine (Anastacio di Djens / Luís Graça)

Guiné 63/74 - P3978: Nuvens negras sobre Bissau (14): N' cansa tchora guine (Anastacio di Djens / Luís Graça)

Video clip de Anastacio de Djens - N'cansa tchora guine - Produção: TVKlele. Um dos temas, o 4º, inseridos no álbum musical, não comercial, com video clipes da TV Klele, distribuídos juntamente com a pasta do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, Guiné-Bissau, 1 a 7 de Março de 2008). O álbum tem por título Guiné-Bissau, Terra de História e Cultura. A televisão comunitária TV Klele, do Bairro Quelélé, de Bissau, tem o apoio da AD - Acção para o Desenvolvimento.

O tema musical deste videoclipe é fortíssimo. Mesmo não entendendo a 100% toda a letra (em crioulo de Bissau), não consigo ouvi-lo e vê-lo sem deixar de me emocionar. Anastácio di Djens, que eu conheci por ocasião do Simpósio, em Março de 2008, é uma das vozes mais belas e promissoras da nova geração musical. Oxalá haja oportunidades de trabalho para ele desenvolver e dar a conhecer o seu grande talento, a sua voz, a sua sensibilidade, dentro e fora da Guiné-Bissau, país de grandes músicos e de grandes tradições musicais. Daqui de Lisboa, numa semana de luto, para todos nós, vai um grande abraço, amigo e solidário, para ti, Anastácio, e para todos os jovens da tua terra que cantam e dançam a tua música. Um abraço também para a talentosa rapaziada da TV Klele. E, claro, para o Pepito e a malta da AD... Eles são, todos eles, os melhores filhos da Guiné.

Vídeo (5' 25''): You Tube > TVKlele (2007) (com a devida vénia...)

Guiné-Bissau > Bissau > Simpósio Internacional de Guiledje (1 a 7 de Março de 2008) > Capa e contracapa do álbum Guiné-Bissau, terra de história e de cultura. Bissau, TV Klele Produções, 2008. Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

Guiné, Tabanca Grande (...) Quem disse que Deus, Alá e os bons irãs não montaram morança nesta terra ? Não foi o muntu. Não foi o tucurtacar pangolim. Não foi a rapaziada do Bairro do Quelélé. Não foi o fula nem o nalu. Não foram as aves do Cantanhez. Não foram os homens grandes do Gabu. Não foi o tuga, nem foste tu nem fui eu. (...) Ah!, como está ainda bem longe, Cabral, o ideal por que lutaste e morreste, uma vez, tu e tantos outros combatentes da liberdade da pátria. Nada que tu não saibas, lá no Olimpo dos deuses e dos heróis, ou não soubesses já, cá na terra dos homens, que a História é fértil em exemplos de efeitos perversos, de Revoluções que devoram os seus filhos... (...) Quem disse, afinal, que tu,Guiné, não tens futuro ? Se não o foi macaco fidalgo, foram os teus inimigos, os de fora e os de dentro, os teus filhos bastardos e os filhos bastardos de outras nações. Os que dizem mal de ti, que te querem comprar a preço de saldo, e que te arrastam pela lama do tarrafo. E que dizem que és um narco-Estado. E que vives da caridade internacional. E que já não tens fé, nem caridade, nem esperança, nem voz, nem lágrimas para chorar. Que já não tens alma, nem salvação, nem pudor. E que Cabral morreu e está enterrado, na antiga fortaleza colonial da Amura. (...) Como te imploram os teus filhos, não queiras chorar mais, Guiné! N ka misti tchora mas! Faz das tuas lágrimas a força do macaréu da tua revolta e do teu ânmimo que te ajudarão a abrir a Picada do Futuro, a construir o Novo Corredor do Povo, a Nova Estrada da Liberdade. Que eu só desejo que seja tão grande, larga e fecunda, como os teus rios míticos, do Cacheu ao Cumbijã, do Geba ao Cacine. Ou tão límpidos e belos e selvagens como o Corubal. E que o Nhinte-Camatchol, o grande irã, te proteja, Guiné, Tabanca Grande. Excertos de: "Que o Nhinte-Camatchol te proteja, Guiné, Tabanca Grande" por Luís Graça (*) ___________ Nota de LG. (*) Vd. poste de 31 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2704: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (12): Que o Nhinte-Camatchol te proteja, Guiné-Bissau Vd. também último poste da série Núvens negras sobre Bissau > 4 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3977: Nuvens negras sobre Bissau (13): Como acabar de vez com esta espiral de violência ? (Pepito)

Guiné 63/74 - P3977: Nuvens negras sobre Bissau (13): Como acabar de vez com esta espiral de violência? (Pepito)

Guiné > PAIGC > Manual escolar, O Nosso Livro - 2ª Classe, editado em 1970 (Upsala, Suécia). Exemplar cedido pelo Paulo Santiago, Águeda (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho , 1970/72) > Fotografia do "Camarada Amílcar Cabral, Secretário Geral do Partido", pág. 107.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


1. Mail que mandei hoje ao meu amigo Pepito:

Na segunda-feira, de manhã, andávamos todos angustiados por vossa causa... Imagino também o que vos ia na alma... Falei logo com a tua mãe, sei que lhe telefonaste duas vezes... Ele acha-te um 'optimista profissional'...

De qualquer modo, foi uma tragédia shakespeariana, essa que aconteceu, aí, e que vai deixar marcas na memória e na identidade do teu povo... Há uma geração que cresceu marcada pela violência (armada) das máfias...

Os nossos tugas também devem ter apanhado o seu susto... Tive que tranquilizar um das nossas mulheres... Desta vez porém os tropas não desataram aos tiros uns aos outros, incendiando a Guiné... Vocês agora precisam de todo o apoio (diplomático e não só) da comunidade internacional e da CPLP.

O que se diz por aí, que a gente aqui não saiba? Quem era esse comando de Mansoa? Balantas, uma sociedade secreta, à margem da hierarquia militar? O Nino, apesar de tudo, era popular em Bissau, e era o "último moicano"... Aqui era apontado como um 'amigo de Portugal'...

Não sei quais são os teus sentimentos pessoais (sei que também era um arqui-inimigo teu e da AD), mas será que estas duas mortes (físicas e simbólicas) representam também um 'virar de página' ? Gostava de ter um escrito 'guineense' sobre estes acontecimentos, vistos de Bissau... Tens um quarto de hora para nós? Ou a Isabel...que é portuguesa. Tens que lhe recordar que ela é também membro da Tabanca Grande?

Um chicoração. Cuida-te. (Não tenho o teu telemóvel de Bissau).
Luís


2. Resposta do Pepito (a quem agradeço a amizade, a frontalidade, o desassombro, a reafirmação dos valores éticos e políticos que são uma herança de Amílcar Cabral e que continuam a ser inspiradores para muitos de nós, cidadãos de Portugal, da Guiné-Bissau e do mundo) (*):

Luís

Sempre ouvi aos combatentes da independência da Guiné-Bissau referir que Amílcar Cabral se opunha com todas as suas forças à morte praticada por camaradas a camaradas de luta, por razões, fossem elas qual fossem, das "mais" às "menos" justificadas.

Ele promoveu julgamentos contra camaradas que mandavam matar outros que se iam entregar nos quartéis portugueses, porque tinham momentos de fraqueza ou desistiam de lutar. Ele dizia que a luta não era para nos matarmos uns aos outros. Que se assim fosse e se assim desejassem que continuasse a ser, então ele ia embora porque não se reconhecia nessas práticas.

Durante a organização do simpósio de Guiledje voltei (re)ouvir estas histórias contadas na primeira pessoa, por aqueles que as viveram.

Cabral ensinou-nos a todos que a luta não era contra os portugueses mas sim contra o regime colonial que oprimia uns e outros. Esta lição foi bem aprendida e hoje todos podem verificar o carinho com que os ex-militares são recebidos em Bissau.

Infelizmente já a primeira lição, a de não usarmos a violência, não foi aprendida. Ele foi a primeira grande vítima e nós acabámos todos por apanhar por tabela. O assassinato dele tem implícito a conivência de camaradas de luta que o mataram duas vezes: uma fisicamente e outra, nos últimos 30 anos, ao "esquecermos" completamente a sua existência, o seu pensamento e o seu exemplo. Os que estiveram implicados na primeira morte voltaram a estar implicados na segunda.

Daí em diante foi um rol infindável de aniquilamentos, de assassinatos, de matanças. Revoltado, vi morrer o meu Ministro da Agricultura, Paulo Correia, o melhor que tive em 18 anos de técnico daquele Ministério. Ele, entre muitos outros. Todos camaradas de luta mortos por camaradas de luta.

A espiral de violência atingiu neste fim de semana o grau que nunca antes tinha atingido.

Se há um nome a quem se possa imputar a responsabilidade maior desta cultura de violência, não pode ser outro senão o de Nino Vieira.

Depois do regresso de Portugal do pós-conflito armado de 1998, veio claramente fragilizado. Não tinha o poder que antes tivera: o poder militar estava na mão daqueles que lhe tinham imposto o exílio; o poder político e partidário escapava-lhe ao seu controlo absoluto. O regresso ao país e ao poder foi permanentemente marcado por uma estratégia de reconquista desses 3 poderes (militar, governo e partido). Fez e desfez alianças. Perdeu aquilo em que no passado era um mestre: a intuição.

Falhou estrondosamente nas últimas eleições ao apostar num partido sem liderança credível e sem militantes, convencido que o seu nome e figura era o bastante.

O seu último falhanço foi no plano narco-militar. Geriu mal os interesses de uns e outros, fossem eles de poder ou narco-financeiros. A bomba que matou Tagme cheirava a Colômbia e este, que tinha conhecimento do que se estava preparar, não sabendo apenas a data e local, pediu antecipadamente aos seus camaradas: "se ele me matar de manhã, matem-no à noite". Talvez tenha sido a primeira vez que um morto mata um vivo.

Morreu de forma ultrajante, violenta e repugnante: à catanada.

Mais do que a morte deles, o que me preocupa é como é que vamos acabar com esta espiral de violência de vez.

abraço do teu amigo
pepito
__________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 3 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3975: Sr. jornalista da Visão, nós todos somos combatentes, não assassinos (12): José Teixeira, ex-1.º Cabo Enf da CCAÇ 2381

terça-feira, 3 de março de 2009

Guiné 63/74 - P3976: (Ex)citações (18): Amílcar Cabral, todos os dias, todas as horas, estás sendo assassinado (Jorge Picado)

Selo, de 20 pfening (1 marco alemão = 100 pf) com a efígie de Amílcar Cabral (1924-1973), emitido em 1978 pelos correios da antiga RDA - República Democrática Alemã (hoje integrada na República Federal Alemã)

Fonte: sv.Wikipedia (versão em sueco) > Amilcar Cabral

1. Comentário de Jorge Picado ao poste de 2 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3964: Núvens negras sobre Bissau (6): O Nino morreu vítima de si próprio (Alberto Nascimento)

Camarada Alberto Nascimento:


Quando esta semana vi o documentário na RTP, da Catarina Furtado, sobre a situação actual da saúde na Guiné-Bissau, escrevi:

"Amilcar, todos os dias, todas as horas, estás sendo continuamente assassinado." (*)

Agora, a tua última expressão, é o que igualmente desejo possa acontecer quanto antes, para melhoria daquele povo que tanto sofre.

Jorge Picado
____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 3 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3970: (Ex)citações (17): Spínola e Nino, do guerreiro ao estadista (José Belo)

Guiné 63/74 - P3975: Sr. jornalista da Visão, nós todos somos combatentes, não assassinos (12): José Teixeira, ex-1.º Cabo Enf da CCAÇ 2381

1. Mensagem de José Teixeira(*), ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70, com data de 26 de Fevereiro de 2009:

Camaradas amigos
Junto mais um texto, escrito com o coração nas mãos, a sangrar de revolta. Chamem-me tudo, menos assassino e . . . já que procuram esquecer-me como filho da Pátria a quem dei o melhor da minha vida - a minha juventude, ao menos respeitem a minha velhice e deixem-me acabar os dias que Deus me vai conceder em paz e sossego.

Mando também uma foto minha mais actualizada, pois a idade não perdoa.

Um fraterno abraço para todos os camaradas

José Teixeira


Aquele abraço grande Vasco

A tua revolta é a minha revolta(**). É a revolta de todos nós. Todos aqueles que sofreram na carne e no espírito, uma guerra que na sua grande maioria, se não todos, não queriam fazer. O sangue que eu vi derramar, de brancos e africanos guineenses. Os mortos, cuja vida vi fugir, como enfermeiro feito às três pancadas em quatro meses, sem soluções, no meio da mesma selva por onde andaste uns anos depois.

Os gritos de dor dos que ficaram feridos e estropiados. As lágrimas que vi escorrer pelas faces dos homens meus camaradas e de mim mesmo pelo desespero de não os conseguir "safar". As lágrimas das mães que temiam pela vida das suas crianças. Ah aquela mãe em Buba que viu a sua bebé morrer carbonizada! A angústia sentida nas picadas de Buba, nas picadas de Gandembel, nas picadas de Mampatá e Chamarra, pelo perigo de emboscadas, muito bem montadas por um adversário que nos gritava:

- Tuga, vai para a tua terra - e nos deixava mensagens do mesmo teor. O acordar sobressaltado altas horas da noite, pelo despertar prematuro provocado pela a primeira “saída” dos canhões do inimigo, nas suas investidas nocturnas sobre o Tuga a convidá-lo a partir e deixar a Guiné em paz. Um pequeno atraso, foi fatal para o meu amigo Conceição Caixeiro. Quantas corridas para a vala, salva vidas, ou abrigo, de dia ou de noite para aguentar, enquanto os camaradas da frente se batiam com garra e destemor pela sua vida, a vida das populações que carinhosamente nos recebiam e a de todos nós. Os buracos onde tive de viver para tentar salvar a pele.




Não consigo apagar estas cenas vividas e sentidas da minha memória, apesar das grandes alegrias vividas nos meus regressos recentes àquelas martirizadas terras, com a recepção das pessoas que passados quarenta anos me reconheceram, me chamaram pelo nome e se penduraram no meu pescoço para extravasarmos a alegria de um retorno em paz.



O abraço a antigos inimigos que se bateram comigo, do outro lado da barreira em situações algumas delas localizadas na data e no terreno, para como que a pedir desculpa, pedir o tal abraço e chamar “tu ermom de mim”. Sentir mágoa e dor nas suas palavras quando, um deles me pergunta se passei o campo de minas onde morreram seis camaradas da CCaç 2317 entre Chamarra e Ponte Balana (foram cerca de setenta) e depois me diz:
- Eu era sapador e fui um dos que as montei





Senti sim uma grande paz interior, porque estas reacções espontâneas que ainda hoje fazem eco na minha vida e se repetem nos telefonemas que continuo a receber (ainda na semana passada a minha "lavandera" me telefonou para saber se eu estava bem e partir mantanhas.



Não aceito. Não posso aceitar que alguém tente passar uma esponja por tudo isto que eu, tu, nós, e, tantos foram, vivemos, forçados por um sistema político ultrapassado na época, através de escritos estropiados da verdade dos factos, ou mesmo inventados por máquinas informativas que não pretendem senão calar-nos e provocar nas gerações vindouras, uma visão errada das estóicas realidades vividas, por todos nós.



Obrigado Luís e tantos outros camaradas que ousaram criar condições para podermos falar, escrever, passar à história a verdade dos factos. A verdade de quem sentiu e viveu.

Não podemos calar. Temos de gritar bem alto o que sentimos e demonstrar a esses atrasados mentais, os que não são capazes ou não querem ver e os que se servem da pena para escrever baboseiras, que a realidade foi outra, a nossa, a que nós vivemos e sentimos. As lágrimas, o suor e o sangue que lá deixamos e . . . mostrar também os seus frutos. A vontade cada vez maior e em mais quantidade de voltarmos, agora voluntários, para rever, reviver e alimentar as amizades que lá deixamos, na população. E não vamos de arma na mão bolsos vazios e coração a sofrer, como da primeira vez. Procuramos levar-lhes para além do carinho e amizade, um pouco de nós mesmos. Os contentores vão cheios com um pouco de cada um de nós, dos nossos amigos, para lá ficar e resolver situações de vida e de miséria, numa terra inóspita e agreste que pouco dá aos seus habitantes e que os sistemas políticos portugueses de outrora, pouco se preocuparam em dar às suas populações as condições de cultura que lhes permitisse tirar o melhor rendimento. O importante era “sacar” a pouca riqueza pela exploração de mão de obra barata.

Vasco, Vascos, Zés Maneis, Joaquins... aquele abraço.
Zé Teixeira
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3791: Estórias do Zé Teixeira (34): O El Gonzalez (José Teixeira)

(**) Vd. poste de 26 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3939: Sr. jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assassinos (1): Vasco da Gama, ex-Cap Mil, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74

Vd. último poste da série de 3 de Março > Guiné 63/74 - P3969: Sr. Jornalista da Visão, nós todos fomos combatentes, não assassinos (11): Jorge Picado, Manuel Reis, Luís Dias

Guiné 63/74 - P3974: Por falar em solidariedade (Jorge Teixeira)

1. Mensagem de Jorge Teixeira(*), ex-Fur Mil (Guiné, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2009, dirigida ao nosso Blogue:

Caro Luís,
Vão aqui mais uns apontamentos de memórias dos tempos idos, com fotos.
Fica ao teu critério publicar.

Por falar em solidariedade

Cheguei a Bolama no dia 7 ou 8 de Maio de 1968, directamente do Niassa numa LDM ou LDG, já não lembro.

Foi uma estadia de cerca de 15 dias sem nada para fazer, enquanto esperávamos que nos levassem para Catió, o que aconteceu num batelão, numa viagem que durou cerca de 12 horas. Mas esses pormenores não interessam.

Durante a estadia em Bolama, na companhia do meu grande amigo e camarada David Santos (já falecido), que iria para Cufar, aproveitámos para conhecer a ilha e fazer amizades com o pessoal que guarnecia as várias unidades. Entre eles estavam os fuzas, em cujo aquartelamento conhecemos um menino, filho dum fuzileiro que morreu em combate, e duma senhora nativa da ilha.

Por solidariedade com o camarada morto, este menino foi criado pelos fuzas. Conhecêmo-lo já com 3 ou 4 anos. Aqui ficam as fotos dele com o David Santos e com um fuza de quem não lembro o nome. Quiçá, eles vendo o blogue se venham a reconhecer.

Um abraço de amizade

Menino Fuza com um Fuzileiro

David Santos com o menino Fuza
__________

Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

29 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3682: Os Combatentes e a responsabilidade do Estado. (Jorge Teixeira)
e
11 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3722: Fauna & flora (4): Tudo o que sabemos sobre o macaco-kom (Jorge Teixeira / António Costa)

Guiné 63/74 - P3973: Nuvens negras sobre Bissau (11): Em Novembro de 2000, no golpe de Ansumane Mané, eu também estava lá... (Albano Costa)


Guiné-Bissau > Bissau > Novembro de 2000 > Tensão em Bissau com mais uma tentativa de golpe de Estado, liderada por Ansumane Mané (1940-2000). Albano Costa, o filho Hugo Costa e os camaradas que estavam, com eles, na Guiné, em 'turismo de saudade', foram apanhados pelos acontecimentos, mas não alteraram os seus planos.

Fotos: © Albano Costa (2009). Direitos reservados

A história (recente e passada) da Guiné-Bissau tem sido marcada pela violência política. Recorde-se que em 14 de Novembro de 1980, o presidente Luís Cabral é derrubado pelo 1.º golpe de Estado da jovem República, liderado por Nino Vieira, seu primeiro ministro e antigo camarada de armas.
Em 1984 é aprovada uma nova Constituição mas só em 1991 passa a haver um sistema multipartidário. Com o novo regime, as primeiras eleições têm em 1994. Nino Vieira, concorrendo contra Kumba Yalá, é eleito Presidente da República à 2.ª volta, tomando posse em 29 de Setembro de 1994.

Em 1998, a Guiné-Bissau mergulha numa sangrenta guerra civil. O golpe que derruba Nino Vieira é precedido por uma rebelião militar em 7 de Junho de 1998, causada pela destituição do general Ansumane Mané como Chefe do Estado Maior das Forças Armadas.

Mané destitui Nino Vieira em 7 de Maio de 1999 (que se vê obrigado a refugiar-se na Embaixada Portuguesa em Bissau, de onde só saiu em Junho para Portugal).

Em 13 de Maio de 1999, o presidente do Parlamento, Malam Bacai Sanhá, ocupou interinamente a presidência, ficando Ansumane Mané à frente da Junta Militar.

Em Janeiro de 2000, o líder do Partido da Renovação Social (PRS), Kumba Yalá é eleito presidente e tem pela frente a difícil tarefa de reconstruir um país, devastado pela guerra civil. Em Novembro de 2000, o general Mané, que reivindicava o comando supremo das Forças Armadas, protagoniza mais uma frustrada tentativa de golpe. É assassinado a 30 desse mês. Há novas tentativas de golpe de Estado em Dezembro de 2001 e em Maio de 2002.

Em Novembro de 2002, Yalá dissolve o Parlamento. A pedido das Nações Unidas, são convocadas eleições para Outubro de 2003, mas, em 14 de Setembro desse ano, um novo golpe depõe Yalá. A Junta Militar nomeia Henrique Rosa como presidente interino.

As eleições legislativas de 28 de Março de 2004 foram ganhas pelo o PAIGC: Carlos Gomes Júnior é nomeado primeiro-ministro. Em Outubro daquele ano, devido à falta de pagamento de salários dos capacetes azuis guineenses em serviço na Libéria causou um motim no qual morreu o chefe de Estado-Maior, general Correia Seabra.

Em Maio de 2005, Nino Vieira e Kumba Yalá regressam ao país. Nino ganha a segunda a volta das eleições, contra Bacai Sanhá, o candidato oficial do PAIGC.

Em agosto de 2008, Nino Vieira nomeou Carlos Correia como primeiro-ministro, após dissolver o Parlamento e convocar eleições legislativas para novembro.

Poucos dias antes, os serviços de segurança militar prendem o almirante José Américo Bubo Na Tchuto, acusado de preparar um golpe de Estado. Em 16 de novembro de 2008, o PAIGC obteve a maioria absoluta nas eleições legislativas.

Após outra tentativa de golpe militar, em 23 de novembro, o presidente 'Nino' Vieira nomeou Carlos Gomes Júnior, líder do PAIGC como primeiro-ministro, em 26 de Dezembro.

Em 2 de Março de 2009 Vieira é assassinado por militares leais ao Chefe do Estado-Maior do Exército, general Tagme Na Waie, de etnia balanta, morto no dia anterior num atentado à bomba.


1. Mensagem de Albano Costa (Guifões, Matosinhos)

Eu estava na Guiné, em 2000, quando se deu um golpe de estado na Guiné-Bissau (*).

Queria deixar uma palavra de conforto para os familiares e amigos dos nossos colegas portugueses que estão hoje na Guiné-Bissau em missão de solidariedade e turismo de saudade.

Devem estar descansados, porque os guineenses são um povo que sabe destrinçar as coisas, ao contrário do que muitas vezes se pensa deles, isto quero dizer pela experiência que tive, os estrangeiros e principalmente nós portugueses somos sempre muito bem aceites, eles vão ter o cuidado de informar que nada lhes vai acontecer e que vão poder continuar o seu percurso normal por terra da «nossa» Guiné-Bissau.

Aos familiares e amigos podem ficar descansados que tudo vai seguir o seu percurso normal com um pequeno senão, que é uma pequena tensão, o que é normal, e quando regressarem, ficam logo com saudades de lá voltar.

Também queria deixar aqui um abraço de esperança ao povo da Guiné-Bissau, para que ultrapassem mais este percalço no seu país, e que há sempre vida para além da morte.

Um abraço de amizade e conforto para todos,
Albano Costa
__________

Nota de L.G.

(*) Vd. último poste da série Nuvens negras sobre Bissau > 3 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3968: Nuvens negras sobre Bissau (10): Voluntários da missão humanitária 2009 a distribuir água pelos militares nas ruas da capital

Guiné 63/74 - P3972: Blogoterapia (93): O que é difícil é ficar calado (José Brás)

1. Mensagem de 20 de Fevereiro de 2009 de José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, autor do romance "Vindimas no Capim", que lhe valeu o Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura.





O QUE É DIFÍCIL É FICAR CALADO

SE NA CALADA DA NOITE EU ME DANO
(*)

Diz-se…
Diz-se.

…que nestas coisas da vida não se deve misturar alhos com bugalhos.

Diz-se, e dito assim, sobre coisas tão comezinhas como aquelas, ninguém estranha que se digam.

Entretanto, é legítimo perguntar se é disso que se fala aqui na Tabanca Grande?

De alhos e de bugalhos? Simplesmente alhos e bugalhos?

Não me parece.

Se fosse (o que não é) , porquê, então, os criadores do blogue gastariam tempo e paciência na sua criação e manutenção, aturando as manhas de cada um, as queixas, os relatos de dores e alegrias, as fotografias de macaco ao colo, em vez de irem ao futebol, ou, ainda mais cómodo, ficarem a assistir na bancada do sofá? Umas cervejitas, umas ervilhanas (sabem o que é?), um nome feio ao árbitro (também se chamam nomes ao árbitro a partir do sofá).

Não me parece. Citando Catrieiro (que vocês não conhecem porque nunca fiz apresentações), citando o Catrieiro… “desculpem lá, a minha palavra honrada” mas a mim não me parece.

São gente de boa formação académica e humana. Viveram o suficiente para se darem ao luxo de espreitar por cima do muro, os colegas em correrias, nas bolanhas da Guiné, nos corredores da morte, nas oficinas e fábricas da cintura industrial, nos campos, nos gabinetes dos figurões que tramam (e nos tramam) a brincadeira em que jogamos todos.

Sabem que o mundo é muito vasto e que na sua vastidão esconde ainda grandes diferenças entre as gentes que o habitam, e tão pequeno que pode resumir-se numa ânsia única e universal que é o desejo da felicidade.

E quem sabe tudo isto, de saber metódico, sistematizado e profundo, não iria perder tempo apenas para que uns tantos, outros, viessem aqui mostrar a sua fotografia na porta d’armas da Amura, no ar condicionado de Bissau, na fornalha das matas do Tombali, “olhem p´ra mim que também lá estive”.

Não! Não acredito.

Criaram-na, sim, na ressaca de uma jornada complicada para si e para os vizinhos, como opção consciente das muitas necessidades que dela restou, em si próprios e nos camaradas, claras, camufladas ou simplesmente ignoradas, contudo, extremadamente emocionadas e emocionantes.

Não ignoravam que ao criar esta janela, por ela entraria a pluralidade das opiniões que se construíram numa experiência tão complexa como uma guerra travada em terras que o sistema dizia ser solo pátrio, contra gente que não concordando com isso, dava a vida pelo sonho em que acreditava.

É complicado, isto.

É complicado porquê?

É complicado porque, se tinham razão os que afirmavam que ali era Portugal, que ali havíamos chegado quinhentos anos antes, em sacrifícios, em dores, em mortes, em glórias, então, era uma guerra civil que travávamos, e o que fazíamos era matar a vizinhos, a irmãos, a filhos e netos.

Se era falsa a ideia de uma pátria com vários povos, então era uma guerra de repressão contra gente sonhadora e libertária a quem nem odiávamos.

Num caso ou noutro, ninguém deixaria de pagar a factura nem a fractura.

Vamos lá ver!

Nessa guerra houve de tudo, como em todas as guerras, aliás.

Houve gente que já embarcava com dúvidas, houve gente que partia com certezas.

Dúvidas e certezas sobre muitas coisa que lhe haviam ensinado, crescendo, fazendo-se homem, cidadãos, cristãos quase todos.

Fazendo-se soldados.

Houve gente que, embarcando com dúvidas ou com certezas, confirmou lá, umas e outras, ou mudou de opinião, ou delas se encheu lá, atolado no tarrafo, encolhido atrás do baga-baga, imaginando Lisboa à noite, ou a aldeia de onde não havia saído nunca.

E nessas dúvidas e certezas, no terreno, matando, porque sempre mata quem dispara (noutros ou em si próprio), os comportamentos foram também muitos e diversos. Heroísmos e cobardias coabitaram nos “p’rós e contras”, às vezes saindo de onde menos se esperava, fossem soldados, oficiais milicianos ou do quadro, apenas porque humanos.

Sobre a nossa tropa de quadrícula nem quero falar porque toda a gente a sabia mal preparada do ponto de vista militar e, pior ainda, do ponto de vista cultural. Com excepções, claro.

Nas flagelações que sofríamos, nas emboscadas que fazíamos ou suportávamos, desatado o fogachal, o desejo maior era de meter “os c…..” no chão e disparar a esmo, apenas para se reconfortarem a si próprios, mais do que para dar combate ordenado ao inimigo.

Tropa fandanga que, sendo-o, ainda assim foi herói. Na fome, nos medos, nos sacrifícios, na coragem de aguentar a esperança do regresso e de fugir p’rá França e, tantas vezes, no acto de enfrentar a morte com galhardia, fosse em nome da tal Pátria, fosse para salvar um amigo, fosse apenas porque era isso que deles se esperava.

O mesmo não podia dizer-se das tropas especiais, comandos, fuzileiros, paraquedistas, gente preparada, com disciplina de fogo, aceitando o combate como um papel decorado e normal, capazes de aguentar, mesmo em situações difíceis. Heróis, de outro tipo, alguns, sem deixarem de se igualar aos outros nas dores, nos medos e nas dúvidas.

Mesmo os oficiais do quadro.

A par dos que se afirmaram pela coragem física (foram muitos e aceito-os assim, ainda que não concorde com eles em termos culturais/ideológicos), além desses, vi também alguns de exemplo bem deplorável e decepcionante, negando bravatas e loas badaladas entre a escola militar e o embarque.

Um vi eu em Buba, gravemente ferido apenas porque bloqueou debaixo de fogo de canhão sem recuo, no meio de nada, a dois passos dos abrigo, salvo pela acção (heróica) de um soldado, mais tarde condecorado por bravura (o oficial, claro).

Hoje, à distância de mais de trinta anos, tudo isto se baralhou e se deu de novo.

Quanto a mim, entre as várias perspectivas com que se pode analisar um dado tão complexo como uma guerra destas, duas se destacam.

Primeiro (ou segundo?), objectiva e material. Em termos puramente militares, meios humanos e materiais, formação, motivação, estratégia, táctica, como eram e como se comportaram dos dois lados os ditos inimigos.

Segundo (ou primeiro), subjectivo e imaterial. Em termos sociais, culturais e ideológicos, quem tinha a razão, ou pelo menos a razão maior.

Não quer dizer que não se possam misturar as duas perspectivas numa mesma análise. Afinal foi mesmo isso que fizeram aquele militares, capitães, majores e mesmo alguns de maiores galões, que sabiam não ser nossa a razão maior, e que ainda que fosse, não sendo possível ganhar no terreno, era necessário substituir as armas pela mesa de negociações. Ainda assim, tendo consciência clara sobre a realidade, se empenhavam na guerra, arriscavam a sua vida e a dos seus comandados, no objectivo de deixarem o poder de Lisboa mais confortável para a possibilidade de negociações.

- Há aqueles que querem fazer a análise puramente militar.

- Há os outros que querem a análise apenas à luz da história e da lógica civilizacional.

Quanto a mim, de novo, os primeiros têm a análise mais dificultada porque muitas vezes a fazem ainda à luz dos compêndios militares que assimilaram na sua educação, compêndios não “entenderam” nunca que tal guerra será sempre difícil de travar com êxito absoluto, quer dizer, com uma vitória clara. Mesmo quando for de vitória tal luta, o que se faz é adiar a solução tendo como certo que nova guerra eclodirá logo a seguir.

Os segundos estão mais comodamente instalados na evolução da história, vendo cumprir-se, finalmente, a razão que se construíra dentro de si e consigo, em relação ao domínio que a sua terra exercia sobre outros povos e outras terras a milhares de quilómetros geográficos e em descontinuidade territorial e cultural.
Não faz sentido argumentar tipo brincadeira de rapaz pequeno “o meu canhão é maior que o teu, eu mexo no teu nariz e tu não mexes no meu”, que tem saído bastas vezes no blogue, da responsabilidade de sapateiros a subirem acima das chinelas.

Claro, sem prejuízo de excelentes e bem colocadas análises militares realizadas por gente preparada e séria, coisa que felizmente também se tem lido e considerado maioritariamente, ainda que não se encaixem muito bem tais análises nas diferenças que exibem.

A meu ver, não faz sentido continuar a afirmar que “perdemos em Guileje e ganhámos em Guidage e em Gadamael”

Como já perguntei antes, pergunto de novo.

Ganhámos o quê?

Afinal estamos a falar de guerra!

E fazer a guerra, fazer tal guerra, não é a mesma coisa que jogar a matraquilhos, meter mais bolas que o adversário, gritar ganhei e… beberem-se uns copos a seguir.

Nem somar medalhas de ouro nos jogos olímpicos, superando-se a si próprio, mais que a adversários.

Fazer a guerra é encurralar gente, é matar gente, esventrá-los, roubar-lhe a terra, as pernas, os filhos, o sonho, a luz dos olhos e o futuro.

E, a maior das loucuras, fazermo-nos isso tudo, também, a nós próprios.

Invocar a legitimidade de quinhentos anos, as glórias passadas, os heróis e os mártires não me parece grande achado, e menos legítimo me parece ainda, invocar valores cristãos e a defesa da civilização ocidental.

Da nossa identidade como portugueses fazem parte, sim senhor, tais glórias e seria estultícia sugerir que quem esteve e está com a revolta desses povos e contra as mortes de irmãos brancos e pretos, é apenas parte de um sintoma de uma tal doença psicológica e moral colectivas que fazem com que este povo caminhe de cabeça baixa.

De cabeça baixa, já agora, caminhámos sempre ao longo da história, apesar das tais glórias, heroísmos e santidades.

As descobertas (ou os descobrimentos), quer dizer, as viagens marítimas dos portugueses do século XV e XVI, pela sua grandiosidade, pelo espantoso contributo que deram ao desenvolvimento do mundo, o único que realmente demos como povo, são hoje património da humanidade.

Gente grande tivemos então, e na sequência, homens da ciência, da cultura e… da guerra, que nos pasmam ainda hoje.

Quase todos foram perseguidos pelo poder instalado nas sombras das igrejas e muitos acabaram mesmo nas fogueiras porque queriam explicar pela matemática, pela cartografia, pelas “humanidades” o que só a Deus (como diziam os interesses da “companhia”) cabia explicar.

Camões!

Pois, já cá faltava Luís. Pode estranhar-se é que não venha aí, também, o Fernando, e se não vem é, provavelmente, porque não “esteve lá”.

Camões foi dos maiores vultos intelectuais da história deste País.

Cantou as glórias dos conquistadores, sim (e também as cantaria eu se soubesse cantar).

Mas também as denunciou quando viu submeter povos à bruta, traindo acordos, massacrando, saqueando, colonizando as terras e as gentes.

com hũa armada grossa, que ajuntara
o vizo-rei de Goa, nos partimos
com toda a gente d’armas que se achara,
e com pouco trabalho destruímos
a gente no curvo arco exercitada;
com mortes, com incêndios os punimos
.”

Denunciou ganâncias e ladroeiras dos poderosos...

E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente.
Milhor é merecê-los sem os ter,
Que possui-los sem os merecer
.”
.....................................................

Este (o ouro) rende munidas fortalezas,
Faz tredores e falsos os amigos;
Este, a mais nobre faz fazer vilezas.
E entrega capitães aos inimigos
;”


Denunciou a fome e a miséria do povo no contraste com a ostentação da corte…

Vestido o Gama vai ao modo hispano
Mas francesa era a roupa que vestia
De cetim da Dalmática Veneza
….”
.........................................................

Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade,
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade;
Da feia tirania e da aspereza
Fazem direito e vã severidade;
Leis em favor do rei se estabelecem,
As em favor do povo só perecem
".

Ninguém antes dele, neste rectângulo da beira-mar, e poucos depois, entenderam tão bem a multiplicidade das culturas e das aspirações humanas respirando sobre a terra que acabávamos de aumentar.

E está visto que ainda hoje, muitas vezes, se entende Camões apenas para o que dá jeito, esquecendo que:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades


A meu ver, não entendendo que muita gente queira apenas análises na perspectiva militar e dos antigos feitos de portugueses, acentuando tal análise com desabafos do tipo “sou um incompreendido, este país está doente…”, não é senão voltar, sempre, ainda que no sub-consciente, à velha dictomia do Portugal progressista (1383, Descobertas, Camões, Damião de Góis, Pedro Nunes…) e o Portugal feudal, do Portugal do “Santo Ofício”.

Muita gente importante diz que a desgraça portuguesa foram as descobertas, afastando o País do desenvolvimento do resto da Europa.

Eu prefiro a senda do pensamento de José Saramago na “Jangada de Pedra”. Com as Descobertas demos um enorme contributo para as profundas mudanças do mundo, rachando a terra, separando a Península do resto da Europa, aproximando-a dos povos de África e da América, “casando” com as nativas, fazendo mulatos, abrindo vendas nos confins do mato, recriando lá a nosso forma de vida, sujando as mãos na terra e também em sangues.

Contudo, descobrindo, abrindo caminhos novos, porque partíamos já presos do nosso próprio atraso, nunca fomos capazes de aproveitar em favor próprio, os sacrifícios e as glórias, deixando para outros tal proveito, voltando a atracar a jangada ao cais de partida, dividida, divididos, sempre com um pé cá e outro lá.
Portanto…

É isso que me contém a análise à Guiné nos limitados preceitos desse humanismo que igualiza o homem na diversidade das suas crenças, no seu direito à terra onde nasceu, na sua liberdade, no sonho que o leva a enfrentar enormes perigos para reclamar tais direitos.

E entendendo isso, assumindo isso, desejando mesmo isso, não é possível acreditar que do ponto de vista puramente militar se pudesse ganhar a guerra.

Não é possível acreditar que ocupando Gadembel e Ponte Balana se acabava com a passagem dos guerrilheiros do PAIGC, numa mata densa onde outros corredores poderiam sempre ser abertos a duzentos ou trezentos metros do primeiro e no mesmo dia do seu fechamento, porque a vontade dos homens do outro lado era maior.

Será que o Comandante Chefe não sabia disto?

Será que a sua inegável coragem e disponibilidade para assumir o risco físico era só isso, e nada mais que isso?

Ou, ao contrário, sabendo-o, garantia com tais medidas, ou o tal tempo para os políticos, o seu “curriculun vitae” para os voos com que sonharia, ou as duas coisas em simultâneo?

Num caso ou no outro… ou nos três, à conta dos seus rapazes (mortos).

Pai
Afasta de mim este cálice
(*)

Montemor-o-Novo,
02.02.09

(*)Chico Buarque


2. Comentário de CV:

As minhas desculpas ao camarada José Brás por ter retido tanto tempo este brilhante texto. Poderia tê-lo incluído na série "A guerra estava militarmente perdida?", mas achei que a série Blogoterapia, era a mais adequada. Afinal o José Brás não alimenta qualquer das facções, a do sim ou a do não, antes nos leva a reflectir sobre a guerra e como cada um dos intervenientes a viu e viveu.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3922: Blogoterapia (92): A guerra nunca acaba para aqueles que se bateram em combate (Luís Borrega)