Ícone máximo da dor de uma mãe, um filho morto nos braços - Pietá, a belíssima escultura em mármore de autoria de Miguel Ângelo, cujo original, que a gravura representa, pode ser visto na Basílica de S. Pedro, em Roma.
1. Texto do nosso camarada Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, enviado em mensagem, com data de 25 de Novembro de 2009:
Caros camarigos:
O belo poema do Zé Teixeira** dedicado às mães trouxe-me à memória um episódio passado com a minha mãe, (que teria feito 100 anos no passado dia 20 deste mês), e que diz respeito à minha ida para a Guiné.
Sempre fui, (apesar de ser um sentimentalão), um tipo muito prático em relação a despedidas e idas para outros lados.
É uma filosofia do tipo, tenho de ir, tenho de ir e pronto, ou seja não vale a pena fazer grande drama, porque nada se resolve nem acrescenta, a não ser um pouco mais de tristeza e sofrimento.
Costumo também dizer que a gente só se deve incomodar com o que consegue controlar, (uma coisa assim a modos como a queda do cabelo), porque senão incomodamo-nos e não resolvemos nada!
Essa mesma filosofia levava-me sempre a dizer que preferia estar na mata, em vez de estar em Bissau, porque num sítio ou noutro não havia nada para fazer e ambos eram maus, mas como em Bissau sempre havia uma ilusão de se viver numa cidade, eu preferia cair na real. Manias!
Se calhar era também uma maneira de me defender da realidade de não poder estar em Bissau! Sejamos honestos!
Bem, mas vamos à história!
Chegados ao Cais da Rocha Conde de Óbidos esperava-nos o Niassa, (paquete de luxo), e entre embarcar e não embarcar as horas passavam intermináveis, entre abraços, choros e beijos.
Lá entrámos para o navio e da amurada iam-se acenando lenços, dizendo adeus, chorando mais umas lágrimas e não havia maneira do raio do barco se afastar do cais e da visibilidade das caras daqueles que ansiosa e tristemente se despediam de nós.
Eu já estava pelos cabelos com tudo aquilo, que segundo a minha filosofia não servia para nada, a não ser entristecer ainda mais um momento sempre triste.
É que não íamos de férias, como sabem!!!
Assim que o barco se afastou uns escassos metros do cais, houve um toque qualquer, para chamar não sei para quê, mas logicamente o pessoal não moveu sequer um músculo para sair daquela amurada.
Só que eu, agarrado à minha filosofia, aproveitei o momento para, acenando mais vigorosamente, me afastar definitivamente daquele adeus interminável.
Na primeira carta que recebi da minha mãe no Xitole, lá vinha a chazada!!!
Escrevia ela na sua letra redonda e bonita: Voltaste-nos as costas, nem uma lágrima choraste!
Ainda hoje me lembro dessas palavras escritas, que a minha mãe, sei-o bem, não sentia, mas que as escreveu, porque me queria agarrar, porque me queria abraçar, porque me queria dizer que estava sempre ao meu lado, porque nada nem ninguém tem forças, para arrancar um filho dos braços de sua mãe.
Um abraço camarigo para todos do
Joaquim Mexia Alves
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 22 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5320: Controvérsias (56): Direito de resposta (Joaquim Mexia Alves)
(**) Vd. poste de 24 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5333: As nossas mulheres (10): Poema dedicado às mães de todos os que não voltaram (José Teixeira)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 28 de novembro de 2009
Guiné 63/74 - P5362: Patronos e Padroeiros (José Martins) (3): Exército - Arma de Cavalaria - Mouzinho de Albuquerque
1. Terceiro poste da série Patronos e Padroeiros das Armas do Exército Português, um trabalho de pesquisa do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil, Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70).
PATRONOS E PADROEIROS - III
EXÉRCITO - ARMA DE CAVALARIA – MOUZINHO DE ALBUQUERQUE
EXÉRCITO - ARMA DE CAVALARIA – MOUZINHO DE ALBUQUERQUE
Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque, nasce no dia 12 de Novembro de 1855, na Quinta da Várzea, concelho da Batalha e distrito de Leiria, filho de José Diogo Mascarenhas Mouzinho de Albuquerque e de Maria Emília Pereira da Silva e Bourbon, descendentes de uma família da nobreza local. Era neto paterno de Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque.
Desde novo destinado a seguir a carreira das armas, alista-se como voluntário no Regimento de Cavalaria n.º 4, frequentando a Escola Politécnica para ingressar na Escola do Exército (actual Academia Militar). Passou, ainda, pelo Colégio Militar e foi promovido a Alferes em 1878, quando terminou a Escola do Exército.
Em 1879 Mouzinho de Albuquerque inscreve-se na Universidade de Coimbra, onde frequenta as Faculdades de Matemática e Filosofia.
Casa, entretanto com sua prima D. Maria José Mascarenhas de Mendonça Gaivão.
Em 1882 adoece, regressa a Lisboa e, dois anos mais tarde, é nomeado regente de estudos no Colégio Militar, com a patente de Tenente.
Na Índia, em 1886, desempenha um lugar na fiscalização do Caminho-de-ferro de Mormugão e Secretário-geral do Governo do Estado da Índia, em 1888.
Em Moçambique, já com a patente de Capitão, é nomeado Governador do Distrito de Lourenço Marques, que exerce entre 1890 e 1892.
No ano de 1894 volta a Moçambique, comandando um Esquadrão de Cavalaria, de reforço, com a finalidade de dominar as rebeliões que existiam. Estava-se nas Campanhas de Ocupação, onde se deu a prisão, em 25 de Dezembro de 1895, do chefe vátua Gungunhana no combate de Chaimite, tendo sido posteriormente galardoados com a Ordem da Torre e Espada, vinte e cinco militares, incluindo Mouzinho. Foi promovido ao posto de Major em 28 de Dezembro de 1895.
Em 13 de Março de 1896 foi nomeado Governador-geral de Moçambique, e em 27 de Novembro desse mesmo ano, foi nomeado Comissário Régio, cargo de que foi destituído em 7 de Julho de 1898, regressando a Lisboa.
O rei D. Carlos I, em 30 de Setembro de 1898, nomeia-o seu Ajudante de Campo, Oficial-mor da Casa Real e aio de D. Luís Filipe de Bragança, na altura príncipe herdeiro.
Face às intrigas que se geraram à sua volta, nomeadamente em relação ao seu comportamento em África, levaram-no ao suicido em 8 de Janeiro de 1902, na Estrada das Laranjeiras, no interior de uma carruagem.
Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque, foi proclamado Patrono da Arma de Cavalaria pela Determinação n.º 7, não datada e Ordem do Exército n.º 6 (1.ª Série), de 31 de Maio de 1961.
José Marcelino Martins – 24 de Novembro de 2009
[Organizado a partir de imagens e textos da Wikipédia]
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5352: Patronos e Padroeiros (José Martins) (2): Exército - Arma de Artilharia - Santa Bárbara
Guiné 63/74 - P5361: Bibliografia (32): Homenagem ao Manuel Maia, autor de História de Portugal em Sextilhas (António Matos)
Retrato a carvão do Manuel Maia, feito pelo nosso amigo e camarada António Matos, a partir de foto tipo passe publicada no nosso blogue (*).
1. Mensagem do António Matos:
Caro Magalhães, aqui vai através de ti, um abraço ao Manuel Maia.
Manuel Maia, ainda que ao correr do carvão, permite-me que te felicite uma vez mais pela tua obra .
Quando a receber, será este o marcador !
Um abraço com votos que este pequeno post possa aparecer à luz do dia na demonstração plena da minha liberdade de expressão.
Desagrade a quem desagradar !
António Matos
___________
Nota de L.G.:
(*) Vd. poste de 27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5353: Notas de leitura (38): Prefácio ao livro do Manuel Maia, História de Portugal em Sextilhas, a ser lançado na Tabanca de Matosinhos, em 9/12/09 (Luís Graça)
1. Mensagem do António Matos:
Caro Magalhães, aqui vai através de ti, um abraço ao Manuel Maia.
Manuel Maia, ainda que ao correr do carvão, permite-me que te felicite uma vez mais pela tua obra .
Quando a receber, será este o marcador !
Um abraço com votos que este pequeno post possa aparecer à luz do dia na demonstração plena da minha liberdade de expressão.
Desagrade a quem desagradar !
António Matos
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Nota de L.G.:
(*) Vd. poste de 27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5353: Notas de leitura (38): Prefácio ao livro do Manuel Maia, História de Portugal em Sextilhas, a ser lançado na Tabanca de Matosinhos, em 9/12/09 (Luís Graça)
Guiné 63/74 - P5360: Estórias avulsas (18): “O trinta putas” (Armandino Alves)
1. Em 22 de Novembro de 2009, recebemos uma divertida estória do nosso Camarada Armandino Alves, que foi 1.º Cabo Auxilitar de Enfermagem na CCAÇ 1589 (Beli, Fá Mandinga e Madina do Boé, 1966/68) e que passamos a transcrever:
Camaradas,
Vou-vos contar uma estória, que não presenciei, mas que ainda hoje, durante os convívios da nossa companhia, se recorda com grande diversão.
Nos princípios de 1967, já a minha companhia estava em Fá Mandinga, quando recebeu ordem para fazer uma batida, a uma certa área, por suspeitas de movimentação de tropas IN. Lá saíram mato fora e, depois de muito andarem, o capitão pediu um voluntário para carregar o rádio AN\PRC 10, que era bastante pesado.
Logo um soldado se ofereceu. Era o nosso apontador do morteiro 60 mm, conhecido pelo “trinta putas” (pois quando a pontaria dele não era a melhor, costumava dizer “Com trinta putas não acertei.”).
Ora o rádio tinha uma antena, que era uma fita de aço vertical, igual á das fitas métricas, esverdeada e que na passagem pelas ramagens se vergava e depois de recolhida voltava à sua posição normal.
Durante o percurso da batida tinham que atravessar um rio (não faço a mínima ideia do seu nome), que se processava por cima de pedras submersas, mas que possibilitavam manter o tronco fora de água e, portanto, não molhar as armas.
Por aí foram o capitão e os outros camaradas.
O nosso “trinta putas” porque estava carregado com o rádio e nunca mais chegava a vez dele, não esteve com meias medidas e meteu-se a atravessar o rio a vau e, como é de prever, começou a desaparecer, ficando submerso, pois o declive era grande, até se ver apenas a ponta superior da antena.
Toda a gente se pôs a gritar e o capitão rapidamente descalçou as botas e atirou-se ao rio, para o resgatar. Outros camaradas que sabiam nadar fizeram o mesmo e lá conseguiram que o homem viesse à tona da água.
Este “trinta putas” não sabia ler uma letra do tamanho da Basílica da Estrela, mas como apontador de morteiro 60 mm, era difícil errar uma granada.
Passou à “peluda” com a 4ª classe.
Mais tarde apareceu um novo rádio nas NT, conhecido na gíria por Racal, que era mais leve e mais bonito que o da nossa companhia.
Não tivemos direito a nenhum.
Assim se viu como um voluntariado poderia ter acabado numa tragédia, por mera estupidez do seu protagonista.
Abraço,
Armandino Alves
1º Cabo Aux Enf CCAÇ 1589
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Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:
22 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5323: Estórias avulsas (61): Reencontro de irmãos (Armandino Alves)
Guiné 63/74 – P5359: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (VII): Ontem, dia 26 de Novembro de 2009, chorei uma lágrima…
1. Mensagem do nosso camarada Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Os Tigres de Cumbijã, Cumbijã, 1972/74, enviada em 27 de Novembro de 2009:
BANALIDADES DA FOZ DO MONDEGO - VII
ONTEM, DIA 26 DE NOVEMBRO DE 2009, CHOREI UMA LÁGRIMA
Alertado por camarada amigo, combatente, como eu o fui na Guiné, decidi assistir, há sempre uma primeira vez para tudo, à inauguração de um “ Memorial aos Combatentes no Ultramar da Figueira da Foz”, onde constam, gravados em pedra, trinta e cinco nomes dos figueirenses mortos ao serviço da Pátria, alguns deles tendo por sepultura uma cova aberta no mato de uma qualquer Guiné, outros jazendo em sepulturas nas antigas colónias à espera, estarão (?), que alguém , porque não a tal Pátria, os traga até ao seio das suas famílias que ainda , creio, os vão chorando.
Para todos vós, alguns dos quais tão bem conheci e com quem brinquei pelas ruas de Buarcos, a minha lágrima de respeito e de saudade. Que a mesma lágrima honre também os mortos em combate da Figueira da Foz, que por motivos que desconheço, não aparecem no Memorial e logo no local referenciámos dois.
Aos camaradas mortos digo-vos que estavam muitos combatentes que ouviram, num misto de emoção e revolta gritar, bem alto, os vossos nomes, um por um, e quase todos respondiam bem alto: Presente.
A cerimónia oficial, querem saber dela (?), foi “bonita” “pá”.
Discursou um senhor presidente da Liga da Figueira, um novel presidente da Câmara, o senhor padre, perdão, cónego, e um senhor Tenente General, no vosso tempo este posto não existia, chegado num reluzente Mercedes Benz e que é o Sr. Presidente da Liga dos Combatentes. Não digam a ninguém, mas eu nem sequer sabia o nome de Sua Excelência, mas agora temos umas “máquinas infernais”, que é como o nosso Vate Manel chama aos computadores, onde vem tudo, até o nome do Sr. General Chito Rodrigues.
Disseram coisas muito bonitas e todos eles falaram sempre na palavra Pátria e em heróis (que são vocês), porque morreram…que os mortos assim, que os mortos assado.
Sabem, peço-vos desculpa mas achei os discursos muito de plástico, muito de circunstância, muito repetitivos, muito vazios, com pouca força, sem aquele sentimento genuíno que os combatentes conhecem, mas se calhar não compreendi bem e posso estar errado, pois agora a velhice já não é um posto, como era na nossa altura, a velhice agora só atrapalha…
Agora queridos camaradas mortos em combate, mortos em acidente, mortos afogados nos rios traiçoeiros, de uma coisa eu tenho a certeza, é que nenhum dos senhores que falou teve uma pequenina palavra para os Combatentes (lato sensu), uma palavra de carinho, de apoio, de gratidão para com os antigos Combatentes.
Sabem, é que para mim, se calhar estou errado, há muitos mais “mortos” nesta guerra que todos travámos e nós, os que não morremos, respeitamos os nossos camaradas feridos com gravidade, os camaradas estropiados, os camaradas que estendem a mão à caridade, os camaradas que foram abandonados pela família, os camaradas que se vão suicidando e também os camaradas que vão andando sem grandes problemas.
Mas todos estes, queridos companheiros heróis, vão morrendo lentamente e no dia do seu funeral, se ainda houver alguém para os recordar, também serão chamados de heróis e os seus familiares também ouvirão falar em Pátria.
Nós, os combatentes que não morreram, temos de viver com um grande nó na garganta, com um grito que não se solta, com essa incapacidade, eu assumo a minha parte de não termos sido capazes de dizer a quem nos governa, em devido tempo:
BASTA! RESPEITEM- NOS!
Por temer que já seja tarde demais, choro também uma lágrima por todos nós.
Vasco A.R. da Gama
Cap Mil da CCAV 8351
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Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:
17 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4969: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (VI): Os Novos Pelotões de Fuzilamento, os do Abandono, Esquecimento e Desprezo
sexta-feira, 27 de novembro de 2009
Guiné 63/74 - P5358: Memórias de Manuel Joaquim (1): O Balanta furtador
1. O nosso Camarada Manuel Joaquim, ex-Fur Mil Armas Pesadas da CCAÇ 1419 (Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), havia-nos enviado uma primeira mensagem em 31 de Julho p.p. (poste P4774), onde escreveu “… Meu caro Luís Graça: Quero inscrever-me na Tabanca, mas ainda não sei bem utilizar esta coisa (mandar fotos por exemplo); estou mesmo no início. Um info-excluído, ou quase, que está a tentar sair desta situação e dando os primeiros passos na net, encontra um blogue (Luís Graça & Camaradas da Guiné) e... que descoberta!...”.
2. O Manuel Joaquim, aplicou-se a fundo e lá acabou, da melhor forma, por conseguir os seus intentos, pois enviou-nos nova mensagem, com um texto e as fotos da praxe, em 20 de Novembro de 2009:
Camaradas:
Inscrito na Tabanca Grande (P4774) sem satisfazer as condições (fotografias e texto), aqui estou a colmatar a falha com o envio das fotos e do texto:
BALANTA FURTADOR
Bissorã, 1966. Os balantas dedicavam-se quase só à agricultura e actividades afins, labutando na área que rodeava o quartel. Um dos poucos balantas da tabanca que fugiam à regra era Fafé. Trabalho agrícola não era com ele.Na bolanha ninguém o apanhava.Não precisava de trabalhar a terra para ter arroz. Este nascia,descascado e tudo, no quartel.
Frequente era vê-lo a acamaradar com tropa, bebendo e gesticulando para melhor se fazer entender. Era o caminho ideal para soldado chegar a algumas balantas mais dispostas a amenizar a sua difícil situação. Qual marginal da tabanca, prometia-as por dá cá aquela palha ou, às vezes, exigindo coisas substanciais... alguns cobertores da caserna ganharam asas!
Fafé alardeava coragem. Era vaidoso.Vaidade bem alimentada por outros para aproveitarem o espírito de aventura que revelava.A roubar vacas era excepcional. E com que orgulho contava os seus feitos! A tropa escutava-o e servia-se.Impedia-lhe o furto na área próxima da vila mas dava-lhe pé leve para se embrenhar no mato,à procura das vacas dos «turras».
Cada vaca que trazia não era só redução alimentar no PAIGC e mais carne na tabanca.Vinha também informação para o quartel. E bem valiosa. E assim se tornou numa peça importante.Importância que não sentia. Apresentar vaca na tabanca, dar barriga cheia à sua gente, reconhecerem a sua coragem e esperteza,verem nele um balanta exemplar, eis o que lhe interessava.
Nem todos os do quartel lhe davam palmadinhas nas costas e gostavam dos seus actos. Não dava por isso, era campeão da esperteza, da coragem, do furto perfeito. E era louvado pelos "homens grandes" da tropa. Mas as suas façanhas faziam perder o apetite a muitos.
Eram informações que levavam aos donos das vacas, à caminhada dolorosa pela mata, ao medo que pesava quilos no estômago, aos vómitos secos, ao combate, à dor, à morte. E, alguns, viam nele um símbolo da utilização abusiva que a guerra faz do indivíduo.
Naquela madrugada Fafé não chegou, mesmo sem vaca. As balas da PPSH fizeram das suas, não matavam só tropa mas também pessoal "amigo" de tropa. Ele sabia-o, mas balanta é artista no roubo de vacas. Quantas histórias, sobre este tema, devem ter ouvido aos velhos balantas! Fafé não teve sorte e, daquela vez, voltou arrastado por camarada de furto com a morte e não a vaca por companheira.
E na manhã quente de Dezembro foi «choro» na tabanca. No terreiro, família de balanta grita e rebola no chão. Família de balanta mata vaca para todo o pessoal: choros, lamentos, gritos, gemidos, rufar de tambores, danças, suor, poeira. É o «choro» em honra de Fafé. São horas a passar, em estonteante mistura de dor e prazer, de arroz e lágrimas, de carne e dança, de álcool e pó. Cumpre-se a tradição.
Mais tarde: Cortejo em marcha acelerada, gritos e cânticos, tantãs rufando, pancadas surdas e ritmadas no chão poeirento, à frente corpo de balanta em esquife de esteira baloiçando sobre altivas cabeças de amigos, Fafé foi a sepultar. Enrodilhado nesta onda lá vai o soldado branco, confuso e inseguro, seguindo não sabe quê.
Pó e mais pó solta-se do chão e sobe, sobe por sobre a tabanca. Entorpece o Sol. Soldado branco pára. A multidão acotovela-o. Redemoinha no pó. Tenta limpar os lábios e os olhos. Incapaz de continuar, vê afastar-se a esteira de palma que envolve corpo de Fafé. Soldado branco é turista em funeral de balanta.
Baixa a cabeça, dá meia volta, tenta regressar por onde vê menos pó... repara que mulher balanta, idosa, ainda chora e dá cambalhotas. Mulher balanta não defende lábios nem olhos do pó e da terra que irá cobrir corpo de seu balanta furtador.
Abraço,
Manuel Joaquim
Fur Mil CCAÇ 1419
____________
Nota de M.R.:
Vd. primeiro poste sobre o autor em:
Vd. último poste desta série em:
Guiné 63/74 - P5357: O Nosso Livro de Visitas (72): Manuel Baptista Teixeira da CCAÇ 3518 (Guidaje, 1973)
1. Ao que supomos, uma nossa amiga de nome Manuela, filha do nosso camarada Manuel Baptista Teixeira da CCAÇ 3518, deixou este comentário no Poste 5330:
O meu pai, foi um dos combatentes nesta guerra sangrenta, felizmente regressou, mas o Gabriel Telo*, foi um dos que ele ajudou a enterrar pois estava lá, e outra vez o voltou a enterrar 36 anos depois.
Foi com muita emoção que presenciei ao reencontro do meu pai com camaradas que não via há 36 anos.
Ele pretende ir ao continente à confraternização em 02 Maio 2010, para recordar.
É preciso que ninguém esqueça a juventude e a sanidade que foi roubada a muitos de vós!
Como cantam os Delfins: "combater na selva sem saber porquê, e sentir o inferno de matar alguém".
O meu pai é Manuel Baptista Teixeira - Da mesmo Companhia do Gabriel Telo, é da Madeira - Camacha, se alguém quiser contactá-lo poderá enviar mensagem para: manuela2376@gmail.com
Um bem haja a todos
O regresso dos restos mortais de mais três camaradas, mortos na defesa de Guidaje, Região do Cacheu, Guiné, em Maio de 1973.
Foto: © José Martins (2009). Direitos reservados.
(*) 1.º Cabo GABRIEL FERREIRA TELO, mobilizado no Batalhão Independente de Infantaria n.º 19, no Funchal, integrando a Companhia de Caçadores n.º 3518, solteiro, filho de João de Jesus Telo e Maria Flora Ferreira Telo, natural da freguesia de Paul do Mar, concelho de Calheta - Madeira:
Morreu em Guidage em 25 de Maio de 1973, vítima de ferimentos em combate durante um ataque inimigo ao aquartelamento. Foi sepultado no cemitério de Guidaje.
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 14 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5272: Efemérides (31): Regressaram os restos mortais de mais três heróis de Guidaje, Maio de 1973 (José Martins)
24 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5330: Efemérides (32): Funeral das ossadas do 1º Cabo Gabriel Telo (Magalhães Ribeiro)
Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5350: O Nosso Livro de Visitas (71): João Pereira, filho do nosso camarada Vitorino Dores Pereira, ex-1.º Cabo Enf no HM 241, 1965/67
O meu pai, foi um dos combatentes nesta guerra sangrenta, felizmente regressou, mas o Gabriel Telo*, foi um dos que ele ajudou a enterrar pois estava lá, e outra vez o voltou a enterrar 36 anos depois.
Foi com muita emoção que presenciei ao reencontro do meu pai com camaradas que não via há 36 anos.
Ele pretende ir ao continente à confraternização em 02 Maio 2010, para recordar.
É preciso que ninguém esqueça a juventude e a sanidade que foi roubada a muitos de vós!
Como cantam os Delfins: "combater na selva sem saber porquê, e sentir o inferno de matar alguém".
O meu pai é Manuel Baptista Teixeira - Da mesmo Companhia do Gabriel Telo, é da Madeira - Camacha, se alguém quiser contactá-lo poderá enviar mensagem para: manuela2376@gmail.com
Um bem haja a todos
O regresso dos restos mortais de mais três camaradas, mortos na defesa de Guidaje, Região do Cacheu, Guiné, em Maio de 1973.
Foto: © José Martins (2009). Direitos reservados.
(*) 1.º Cabo GABRIEL FERREIRA TELO, mobilizado no Batalhão Independente de Infantaria n.º 19, no Funchal, integrando a Companhia de Caçadores n.º 3518, solteiro, filho de João de Jesus Telo e Maria Flora Ferreira Telo, natural da freguesia de Paul do Mar, concelho de Calheta - Madeira:
Morreu em Guidage em 25 de Maio de 1973, vítima de ferimentos em combate durante um ataque inimigo ao aquartelamento. Foi sepultado no cemitério de Guidaje.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 14 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5272: Efemérides (31): Regressaram os restos mortais de mais três heróis de Guidaje, Maio de 1973 (José Martins)
24 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5330: Efemérides (32): Funeral das ossadas do 1º Cabo Gabriel Telo (Magalhães Ribeiro)
Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5350: O Nosso Livro de Visitas (71): João Pereira, filho do nosso camarada Vitorino Dores Pereira, ex-1.º Cabo Enf no HM 241, 1965/67
Guiné 63/74 - P5356: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (9): Histórias palacianas: tiros indiscretos...
1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 25 de Novembro de 2009:
Olá amigo Carlos Vinhal,
Junto mais um pedaço das experiências que passei no Palácio. De propósito omito o nome do capitão nesta história. Não tenho a certeza do seu nome. Adoraria que alguém pudesse localizar ou dar informação sobre o capitão Tomás que foi ajudante de campo do general Spínola.
Uma fotografia do referido oficial, possívelmente, ajudar-me-ía a idenficar o capitão desta história.
Um abraço amigo para todos,
José Câmara
Histórias palacianas: Tiros indiscretos… ou como um capitão acabou por ser o herói da história
Para os militares que faziam serviço no Palácio do Governador, em Bissau, uma das principais regras não escritas, era a manutenção do sangue frio perante situações julgadas suspeitas. Essa regra era primordial quando, no exercício das suas funções, os militares eram confrontados com situações de cariz imprevisível. Essas situações eram tanto mais agudas durante o dia, quando a segurança era feita pelo lado de fora dos muros que circundavam os jardins do Palácio.
Entre essas situações estavam a aproximação de civis aos sentinelas, a concentração de civis nas imediações dos postos, e o barulho que os civis faziam, mesmo quando circulando nas imediações dos postos.
Nesses postos de sentinela havia intercomunicadores ligados directamente ao gabinete do Sargento da Guarda.
O povo de Bissau era, essencialmente, um povo ordeiro e, como tal, obediente das regras então impostas. Desconheço se era regra ou não, a verdade é que de uma maneira geral a população circulava nos passeios do outro lado das ruas que circundavam o Palácio. Os mais jovens, talvez por isso mesmo, nem sempre o faziam. Para além disso, junto ao posto da direita, ao fundo do jardim havia um pequeno atalho muito usado pelas populações, e que encurtava em alguns passos para quem usava a rua que confrontava com o fundo do jardim. Esse atalho desembocava precisamente em cima daquele posto de sentinela. Por isso, mesmo este posto era, em minha opinião, o mais sensível.
Num dos meus dias de Sargento da Guarda, nesse posto de sentinela, estava o soldado Rocha, possuidor de uma pequena estatura e algo nutrido que, talvez por esses factos, era mais conhecido entre os militares da companhia por Rochinha.
O Rochinha foi o primeiro soldado que, comigo, usou o intercomunicador daquele posto de sentinela. Pediu para ser substituído no posto. Quando lhe perguntei as razões do seu pedido, referiu que estava nervoso com a aproximação dos civis ao posto, e que não se sentia à vontade. Disse-lhe que não era razão para ser substituído, e que eu iria de imediato ter com ele e fazer-lhe companhia durante algum tempo. Para minha surpresa ele disse que ou era substituído ou que me iria arrepender.
Confesso que, para além da surpresa da resposta, fiquei bastante admirado com a mesma, por vir de um soldado que reputava de respeitador, e com quem tinha excelentes relações pessoais e militares. Claro que a ameaça em si não podia passar em branco, mas disso trataria depois.
De imediato saí do gabinete do Sargento da Guarda e não estranhei que alguns soldados estivessem com a arma a tiracolo, até porque o render dos sentinelas tinha sido feito ainda não havia muito tempo. Apenas se tinham passado escassos minutos da rendição, pelo que não fazia sentido nenhum que o Rochinha estivesse a pedir para ser substituído. Assim pensei.
Enquanto dava a volta para sair do jardim pelo portão de serviço e ir ao encontro do sentinela, aquilo que eu sempre temi aconteceu… Pummmm! Tiro de G3 e vinha do posto do Rochinha. O que teria acontecido? Meu Deus será que o Rochinha… não! Não queria acreditar o que o meu pensamento me dizia. Já não corria, voava. Ao chegar junto do posto de sentinela encontrei um soldado sorridente, calmo, bem disposto, bem… raios o partam, que por alguns minutos pensei que ele se tivesse suicidado.
Não lhe perguntei o que tinha acontecido. Disse-lhe que o ia substituir, que depois falaríamos. De imediato disse que não, que estava bem, pediu desculpa. Por essa é que eu não esperava. Regressei à Casa da Guarda.
Ali, à minha espera estava o Capitão, o Ajudante de Campo do General Spínola, a pedir explicações.
Contei-lhe a verdade sem nada omitir. Finda a minha explicação, ele disse-me para não esquecer de participar do soldado e de escrever no relatório a ocorrência.
Nunca tinha feito uma participação oficial, e não estava na disposição de o fazer ainda. Sentia que não podia estragar a vida inteira de um indivíduo por causa de um tiro maluco.
Foi com este pensamento que pedi ao capitão para dizer algo sobre este assunto.
Expliquei-lhe que uma Caderneta Militar suja complicava muito a vida daqueles que ficavam nos Açores, onde os trabalhos eram escassos, pois perdiam o acesso a cargos públicos tais como contínuos, jardineiros das Câmaras Municipais, cantoneiros das Obras Públicas, entre outros serviços. Para aqueles que emigravam tinham que pagar uma avultada quantia para limparem o seu cadastro, na medida em que os governos americano e canadense não aceitavam emigrantes com cadastro.
O capitão disse-me que esta ocorrência iria chegar aos ouvidos do Comando do AGRBIS e alguém teria que responder por isso. Se eu estava preparado. Respondi-lhe que era por isso mesmo que o estava informando da verdade dos factos, e que lhe pedia compreensão e ajuda.
Como muitas vezes o vira fazer, o capitão meteu as mãos nos bolsos, e assobiando uma canção qualquer caminhou em direcção ao Palácio. Após alguns passos voltou-se e disse:
- Vê lá se não volta a acontecer!
E voltou a acontecer.
O Cabo José Marcelino Sousa, meu colega de escola primária, entrou no gabinete do Sargento da Guarda sem eu lá estar e pegou na FBP para fazer o render da Guarda. Qualquer dos procedimentos era anti-regulamentar.
Quando reparei no que estava a acontecer, de imediato, dei-lhe ordem para colocar a arma no gabinete e usar a sua G3. Disse-lhe ainda que a arma era perigosa e que estava com o carregador cheio. Ele disse-me que sabia que a arma estava descarregada pois que me tinha visto fazer a inspecção à arma. E era verdade que ele tinha visto fazer a inspecção à arma. Era um procedimento que fazia sempre que entrava de serviço. Só que depois mudava os carregadores.
Nós, os sargentos da guarda, quando preparávamos a rendição da Guarda deixávamos sempre o carregador vazio na arma. Era da responsabilidade de cada um de nós preparar depois aquilo que entendíamos ser o melhor para o desempenho do nosso serviço.
O Cabo Sousa que já tinha a arma a tiracolo, ao tentar tirá-la para a ir colocar no gabinete, levou a mão à correia e… o tiro saíu direito à biqueira da bota. Por pouco não lhe furou o pé. Do mal o menos!
A correr apareceu o capitão. Antes que me fizesse qualquer pergunta, disse-lhe que não havia ninguém ferido. Confesso que pressenti no oficial um relaxar de alívio. De repente, ainda hoje não o sei se a sério se a brincar, perguntou:
- Este também vai para a América?. Ao que respondi:
- Exacto meu capitão! E não menti.
Abanando a cabeça, o capitão lá se foi em direcção ao palácio.
A 24 de Março de 1971 escrevia à minha madrinha de guerra o seginte:
“...aqui no palácio, de vez em quando, há preocupações em demasia; no entanto vai-se resolvendo tudo da melhor maneira. O pior são as situações que se tem que participar de um soldado, e isso é aborrecido, pois suja-se a caderneta do moço. Nesse aspecto tenho resolvido a coisa, e ainda não participei de nenhum. De qualquer forma uma vez será a primeira. Tenho vindo a fugir disso, mas parce-me que já não posso mais”.
Nunca mais soube do Rochinha depois do serviço militar.
Passados muitos anos soube a verdade do que aconteceu naquele dia.
Quando saí do gabinete e vi os soldados com arma a tiracolo, deduzi que a rendição tinha acabado de ser feita. Por isso mesmo não questionei o Cabo da Guarda. A verdade, é que o Cabo Sãozinho, devido ao cansaço de muitos dias sem descanso apropriado, tinha-se deixado adormecer e atrasara-se na rendição. Os soldados encobriram-no e o Rochinha também.
Neste caso, posso muito bem ter estado ao lado do tal espírito de corpo entre soldados que, muitas vezes, nem nos apercebíamos da sua existência.
O Cabo Sousa viveu alguns anos em Stoughton, MA. Entretanto, regressou à sua freguesia da Fazenda, Ilha das Flores, onde reside com a esposa.
Hoje, passados todos estes anos, ainda lembro a atitude deste capitão como uma das mais compreensíveis e saudáveis que me apraz registar. Para ele, onde quer que esteja, só me resta uma palavra: Obrigado!
José Câmara
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 12 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5259: Ser solidário (45): Falando do apoio americano aos seus Veteranos de Guerra (José da Câmara)
Vd. último poste da série de 15 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5111: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (8): Guerras palacianas
Olá amigo Carlos Vinhal,
Junto mais um pedaço das experiências que passei no Palácio. De propósito omito o nome do capitão nesta história. Não tenho a certeza do seu nome. Adoraria que alguém pudesse localizar ou dar informação sobre o capitão Tomás que foi ajudante de campo do general Spínola.
Uma fotografia do referido oficial, possívelmente, ajudar-me-ía a idenficar o capitão desta história.
Um abraço amigo para todos,
José Câmara
Histórias palacianas: Tiros indiscretos… ou como um capitão acabou por ser o herói da história
Para os militares que faziam serviço no Palácio do Governador, em Bissau, uma das principais regras não escritas, era a manutenção do sangue frio perante situações julgadas suspeitas. Essa regra era primordial quando, no exercício das suas funções, os militares eram confrontados com situações de cariz imprevisível. Essas situações eram tanto mais agudas durante o dia, quando a segurança era feita pelo lado de fora dos muros que circundavam os jardins do Palácio.
Entre essas situações estavam a aproximação de civis aos sentinelas, a concentração de civis nas imediações dos postos, e o barulho que os civis faziam, mesmo quando circulando nas imediações dos postos.
Nesses postos de sentinela havia intercomunicadores ligados directamente ao gabinete do Sargento da Guarda.
O povo de Bissau era, essencialmente, um povo ordeiro e, como tal, obediente das regras então impostas. Desconheço se era regra ou não, a verdade é que de uma maneira geral a população circulava nos passeios do outro lado das ruas que circundavam o Palácio. Os mais jovens, talvez por isso mesmo, nem sempre o faziam. Para além disso, junto ao posto da direita, ao fundo do jardim havia um pequeno atalho muito usado pelas populações, e que encurtava em alguns passos para quem usava a rua que confrontava com o fundo do jardim. Esse atalho desembocava precisamente em cima daquele posto de sentinela. Por isso, mesmo este posto era, em minha opinião, o mais sensível.
Num dos meus dias de Sargento da Guarda, nesse posto de sentinela, estava o soldado Rocha, possuidor de uma pequena estatura e algo nutrido que, talvez por esses factos, era mais conhecido entre os militares da companhia por Rochinha.
O Rochinha foi o primeiro soldado que, comigo, usou o intercomunicador daquele posto de sentinela. Pediu para ser substituído no posto. Quando lhe perguntei as razões do seu pedido, referiu que estava nervoso com a aproximação dos civis ao posto, e que não se sentia à vontade. Disse-lhe que não era razão para ser substituído, e que eu iria de imediato ter com ele e fazer-lhe companhia durante algum tempo. Para minha surpresa ele disse que ou era substituído ou que me iria arrepender.
Confesso que, para além da surpresa da resposta, fiquei bastante admirado com a mesma, por vir de um soldado que reputava de respeitador, e com quem tinha excelentes relações pessoais e militares. Claro que a ameaça em si não podia passar em branco, mas disso trataria depois.
De imediato saí do gabinete do Sargento da Guarda e não estranhei que alguns soldados estivessem com a arma a tiracolo, até porque o render dos sentinelas tinha sido feito ainda não havia muito tempo. Apenas se tinham passado escassos minutos da rendição, pelo que não fazia sentido nenhum que o Rochinha estivesse a pedir para ser substituído. Assim pensei.
Enquanto dava a volta para sair do jardim pelo portão de serviço e ir ao encontro do sentinela, aquilo que eu sempre temi aconteceu… Pummmm! Tiro de G3 e vinha do posto do Rochinha. O que teria acontecido? Meu Deus será que o Rochinha… não! Não queria acreditar o que o meu pensamento me dizia. Já não corria, voava. Ao chegar junto do posto de sentinela encontrei um soldado sorridente, calmo, bem disposto, bem… raios o partam, que por alguns minutos pensei que ele se tivesse suicidado.
Não lhe perguntei o que tinha acontecido. Disse-lhe que o ia substituir, que depois falaríamos. De imediato disse que não, que estava bem, pediu desculpa. Por essa é que eu não esperava. Regressei à Casa da Guarda.
Ali, à minha espera estava o Capitão, o Ajudante de Campo do General Spínola, a pedir explicações.
Contei-lhe a verdade sem nada omitir. Finda a minha explicação, ele disse-me para não esquecer de participar do soldado e de escrever no relatório a ocorrência.
Nunca tinha feito uma participação oficial, e não estava na disposição de o fazer ainda. Sentia que não podia estragar a vida inteira de um indivíduo por causa de um tiro maluco.
Foi com este pensamento que pedi ao capitão para dizer algo sobre este assunto.
Expliquei-lhe que uma Caderneta Militar suja complicava muito a vida daqueles que ficavam nos Açores, onde os trabalhos eram escassos, pois perdiam o acesso a cargos públicos tais como contínuos, jardineiros das Câmaras Municipais, cantoneiros das Obras Públicas, entre outros serviços. Para aqueles que emigravam tinham que pagar uma avultada quantia para limparem o seu cadastro, na medida em que os governos americano e canadense não aceitavam emigrantes com cadastro.
O capitão disse-me que esta ocorrência iria chegar aos ouvidos do Comando do AGRBIS e alguém teria que responder por isso. Se eu estava preparado. Respondi-lhe que era por isso mesmo que o estava informando da verdade dos factos, e que lhe pedia compreensão e ajuda.
Como muitas vezes o vira fazer, o capitão meteu as mãos nos bolsos, e assobiando uma canção qualquer caminhou em direcção ao Palácio. Após alguns passos voltou-se e disse:
- Vê lá se não volta a acontecer!
E voltou a acontecer.
O Cabo José Marcelino Sousa, meu colega de escola primária, entrou no gabinete do Sargento da Guarda sem eu lá estar e pegou na FBP para fazer o render da Guarda. Qualquer dos procedimentos era anti-regulamentar.
Quando reparei no que estava a acontecer, de imediato, dei-lhe ordem para colocar a arma no gabinete e usar a sua G3. Disse-lhe ainda que a arma era perigosa e que estava com o carregador cheio. Ele disse-me que sabia que a arma estava descarregada pois que me tinha visto fazer a inspecção à arma. E era verdade que ele tinha visto fazer a inspecção à arma. Era um procedimento que fazia sempre que entrava de serviço. Só que depois mudava os carregadores.
Nós, os sargentos da guarda, quando preparávamos a rendição da Guarda deixávamos sempre o carregador vazio na arma. Era da responsabilidade de cada um de nós preparar depois aquilo que entendíamos ser o melhor para o desempenho do nosso serviço.
O Cabo Sousa que já tinha a arma a tiracolo, ao tentar tirá-la para a ir colocar no gabinete, levou a mão à correia e… o tiro saíu direito à biqueira da bota. Por pouco não lhe furou o pé. Do mal o menos!
A correr apareceu o capitão. Antes que me fizesse qualquer pergunta, disse-lhe que não havia ninguém ferido. Confesso que pressenti no oficial um relaxar de alívio. De repente, ainda hoje não o sei se a sério se a brincar, perguntou:
- Este também vai para a América?. Ao que respondi:
- Exacto meu capitão! E não menti.
Abanando a cabeça, o capitão lá se foi em direcção ao palácio.
A 24 de Março de 1971 escrevia à minha madrinha de guerra o seginte:
“...aqui no palácio, de vez em quando, há preocupações em demasia; no entanto vai-se resolvendo tudo da melhor maneira. O pior são as situações que se tem que participar de um soldado, e isso é aborrecido, pois suja-se a caderneta do moço. Nesse aspecto tenho resolvido a coisa, e ainda não participei de nenhum. De qualquer forma uma vez será a primeira. Tenho vindo a fugir disso, mas parce-me que já não posso mais”.
Nunca mais soube do Rochinha depois do serviço militar.
Passados muitos anos soube a verdade do que aconteceu naquele dia.
Quando saí do gabinete e vi os soldados com arma a tiracolo, deduzi que a rendição tinha acabado de ser feita. Por isso mesmo não questionei o Cabo da Guarda. A verdade, é que o Cabo Sãozinho, devido ao cansaço de muitos dias sem descanso apropriado, tinha-se deixado adormecer e atrasara-se na rendição. Os soldados encobriram-no e o Rochinha também.
Neste caso, posso muito bem ter estado ao lado do tal espírito de corpo entre soldados que, muitas vezes, nem nos apercebíamos da sua existência.
O Cabo Sousa viveu alguns anos em Stoughton, MA. Entretanto, regressou à sua freguesia da Fazenda, Ilha das Flores, onde reside com a esposa.
Hoje, passados todos estes anos, ainda lembro a atitude deste capitão como uma das mais compreensíveis e saudáveis que me apraz registar. Para ele, onde quer que esteja, só me resta uma palavra: Obrigado!
José Câmara
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 12 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5259: Ser solidário (45): Falando do apoio americano aos seus Veteranos de Guerra (José da Câmara)
Vd. último poste da série de 15 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5111: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (8): Guerras palacianas
Guiné 63/74 - P5355: Notas de leitura (39): Indústria Militar Portuguesa no Tempo da Guerra 1961-1974, de João Moreira Tavares (Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Novembro de 2009:
Carlos e Luís,
Este texto dá conta de um trabalho à volta da indústria militar portuguesa que, em grande parte, após a descolonização, se desmoronou e o autor analisa os porquês. Penso que os tertulianos vão apreciar esta dimensão dos bastidores da guerra, foi esta indústria que nos mandou as rações e os preciosos medicamentos para tratarmos o paludismo e os fungos.
Um abraço do
Mário
Indústria Militar Portuguesa no Tempo da Guerra
1961 – 1974
Por Beja Santos
É do mais elementar bom senso que só se pode combater anos a fio desde que se assegure uma presença física de contingentes, se lhes forneça a tempo e horas abastecimento em víveres, material para defender e atacar, equipamento, medicamentos, manutenção e reparação de viaturas, aviões e navios, munições de toda a espécie. “Indústria Militar Portuguesa no tempo da guerra 1961 – 1974” é o resultado de uma dissertação de mestrado de João Moreira Tavares em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em 2003, depois publicada pela Caleidoscópio em 2005, com o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar. Como escreve a orientadora do mestrado, Maria Fernanda Rollo, é indispensável conhecer o papel desempenhado pelos estabelecimentos fabris das Forças Armadas no quadro de esforço de guerra. Foi a guerra colonial que fez interromper a reestruturação e modernização da indústria militar, que se encetara no início da década de 50. Para esta investigadora, a guerra colonial repercutiu-se negativamente na situação económica e financeira e na actividade produtiva dos estabelecimentos fabris militares portugueses. Como se veio a ver, concluída a descolonização. Sem estes estabelecimentos fabris militares teria sido impossível termos feito a guerra que fizemos a tão baixo custo. O autor explica os porquês e o como.
Entre os porquês, sabemos bem que a falta de apoio político internacional e o bloqueio à venda de material bélico durante toda a guerra conduziram o país à procura de soluções internas no domínio da produção de armamento. E com resultados palpáveis. Igualmente foram envolvidas diferentes indústrias civis no fornecimento de bens e serviços às Forças Armadas. E não foi despiciendo o investimento feito para aumentar a capacidade e a diversificação dos vários tipos de produção dos estabelecimentos fabris estatais que compunham a indústria nacional.
Esclareça-se que a indústria militar era composta por estabelecimentos fabris de dimensões, características e finalidades muito diferentes uns dos outros, distribuídos pelos três ramos das Forças Armadas, mas, na maioria dos casos, tutelados pelo Exército. O autor analisa detalhadamente os três tipos de estabelecimentos que constituíram a indústria militar. No primeiro grupo estavam os responsáveis pela produção e comercialização dos artigos de fardamento e de equipamento, géneros alimentícios, medicamentos e produtos afins, caso da Fábrica Militar de Santa Clara, Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos, Manutenção Militar e as Oficinas Gerais de Fardamento. No segundo grupo, haverá que considerar os responsáveis pela manutenção e reparação de navios de guerra, aviões e toda a gama de veículos automóveis. Estão neste caso o Arsenal do Alfeite, as Oficinas Gerais de Material Aeronáutico e as Oficinas Gerais de Material de Engenharia. No terceiro grupo estão incluídos os estabelecimentos produtores de material de guerra como a Fábrica Militar de Braço de Prata e Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras.
O que se passou para o incremento da indústria militar em Portugal só é compreensível com os acontecimentos da guerra fria e a criação da NATO. Portugal cedo recorreu ao auxílio norte-americano, prestado através do Plano Marshall e investiu uma parcela de ajuda financeira recebida no reequipamento e modernização das suas fábricas de armamento e munições. Basta ver dois dados: em Abril de 1953, o Governo norte-americano assinou um acordo com o Governo português para a produção de 350 mil munições de artilharia de 10,5 cm pela Fábrica de Braço de Prata; as OGMA acordaram com a Air Material Force European Area, dos EUA, em realizar inspecções periódicas aos aviões C-47 e C-54 e, eventualmente, a outras aeronaves que operassem na Europa. De 1959 a 1969 a indústria militar produziu para a era RFA granadas de artilharia e de mão, munições de armas ligeiras e espingardas automáticas G3. As encomendas e os apoios provenientes do estrangeiro, sobretudo as da RFA, facilitaram o investimento estatal, foram um indispensável balão de oxigénio.
A indústria militar correspondeu ao que lhe foi pedido, mas a factura foi desastrosa. Nunca funcionou uma comissão coordenadora da indústria militar. Se é verdade que houve o objectivo prioritário do Governo que procurou uma cooperação entre os sectores público e privado, não é menos verdade que pagou sempre tarde e a más horas ao sector privado e descapitalizou os estabelecimentos fabris. Foram as manigâncias financeiras que possibilitaram a prossecução do esforço de guerra ocultando os verdadeiros custos do conflito. A verdade só foi conhecida no fim da guerra: houvera milagre no esforço dos homens, mas a erosão financeira, a batuta mágica que fizera funcionar o sistema, fez caminhar os estabelecimentos fabris para o desastre. Como observa o autor, a guerra colonial não favoreceu a indústria militar, acabou por a penalizar por motivos de ordem financeira, nomeadamente quando impediu que o processo de modernização e reestruturação iniciado na década de 50 ficasse concluído. O autor finaliza o seu trabalho dizendo que é uma questão em aberto a falta de cooperação entre a indústria militar nacional e a sua congénere civil.
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 26 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5344: Notas de leitura ( 37): Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?, de José Pedro Castanheira (Beja Santos)
Vd. poste de 27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5353: Notas de leitura (38): Prefácio ao livro do Manuel Maia, História de Portugal em Sextilhas, a ser lançado na Tabanca de Matosinhos, em 9/12/09 (Luís Graça)
Carlos e Luís,
Este texto dá conta de um trabalho à volta da indústria militar portuguesa que, em grande parte, após a descolonização, se desmoronou e o autor analisa os porquês. Penso que os tertulianos vão apreciar esta dimensão dos bastidores da guerra, foi esta indústria que nos mandou as rações e os preciosos medicamentos para tratarmos o paludismo e os fungos.
Um abraço do
Mário
Indústria Militar Portuguesa no Tempo da Guerra
1961 – 1974
Por Beja Santos
É do mais elementar bom senso que só se pode combater anos a fio desde que se assegure uma presença física de contingentes, se lhes forneça a tempo e horas abastecimento em víveres, material para defender e atacar, equipamento, medicamentos, manutenção e reparação de viaturas, aviões e navios, munições de toda a espécie. “Indústria Militar Portuguesa no tempo da guerra 1961 – 1974” é o resultado de uma dissertação de mestrado de João Moreira Tavares em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em 2003, depois publicada pela Caleidoscópio em 2005, com o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar. Como escreve a orientadora do mestrado, Maria Fernanda Rollo, é indispensável conhecer o papel desempenhado pelos estabelecimentos fabris das Forças Armadas no quadro de esforço de guerra. Foi a guerra colonial que fez interromper a reestruturação e modernização da indústria militar, que se encetara no início da década de 50. Para esta investigadora, a guerra colonial repercutiu-se negativamente na situação económica e financeira e na actividade produtiva dos estabelecimentos fabris militares portugueses. Como se veio a ver, concluída a descolonização. Sem estes estabelecimentos fabris militares teria sido impossível termos feito a guerra que fizemos a tão baixo custo. O autor explica os porquês e o como.
Entre os porquês, sabemos bem que a falta de apoio político internacional e o bloqueio à venda de material bélico durante toda a guerra conduziram o país à procura de soluções internas no domínio da produção de armamento. E com resultados palpáveis. Igualmente foram envolvidas diferentes indústrias civis no fornecimento de bens e serviços às Forças Armadas. E não foi despiciendo o investimento feito para aumentar a capacidade e a diversificação dos vários tipos de produção dos estabelecimentos fabris estatais que compunham a indústria nacional.
Esclareça-se que a indústria militar era composta por estabelecimentos fabris de dimensões, características e finalidades muito diferentes uns dos outros, distribuídos pelos três ramos das Forças Armadas, mas, na maioria dos casos, tutelados pelo Exército. O autor analisa detalhadamente os três tipos de estabelecimentos que constituíram a indústria militar. No primeiro grupo estavam os responsáveis pela produção e comercialização dos artigos de fardamento e de equipamento, géneros alimentícios, medicamentos e produtos afins, caso da Fábrica Militar de Santa Clara, Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos, Manutenção Militar e as Oficinas Gerais de Fardamento. No segundo grupo, haverá que considerar os responsáveis pela manutenção e reparação de navios de guerra, aviões e toda a gama de veículos automóveis. Estão neste caso o Arsenal do Alfeite, as Oficinas Gerais de Material Aeronáutico e as Oficinas Gerais de Material de Engenharia. No terceiro grupo estão incluídos os estabelecimentos produtores de material de guerra como a Fábrica Militar de Braço de Prata e Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras.
O que se passou para o incremento da indústria militar em Portugal só é compreensível com os acontecimentos da guerra fria e a criação da NATO. Portugal cedo recorreu ao auxílio norte-americano, prestado através do Plano Marshall e investiu uma parcela de ajuda financeira recebida no reequipamento e modernização das suas fábricas de armamento e munições. Basta ver dois dados: em Abril de 1953, o Governo norte-americano assinou um acordo com o Governo português para a produção de 350 mil munições de artilharia de 10,5 cm pela Fábrica de Braço de Prata; as OGMA acordaram com a Air Material Force European Area, dos EUA, em realizar inspecções periódicas aos aviões C-47 e C-54 e, eventualmente, a outras aeronaves que operassem na Europa. De 1959 a 1969 a indústria militar produziu para a era RFA granadas de artilharia e de mão, munições de armas ligeiras e espingardas automáticas G3. As encomendas e os apoios provenientes do estrangeiro, sobretudo as da RFA, facilitaram o investimento estatal, foram um indispensável balão de oxigénio.
A indústria militar correspondeu ao que lhe foi pedido, mas a factura foi desastrosa. Nunca funcionou uma comissão coordenadora da indústria militar. Se é verdade que houve o objectivo prioritário do Governo que procurou uma cooperação entre os sectores público e privado, não é menos verdade que pagou sempre tarde e a más horas ao sector privado e descapitalizou os estabelecimentos fabris. Foram as manigâncias financeiras que possibilitaram a prossecução do esforço de guerra ocultando os verdadeiros custos do conflito. A verdade só foi conhecida no fim da guerra: houvera milagre no esforço dos homens, mas a erosão financeira, a batuta mágica que fizera funcionar o sistema, fez caminhar os estabelecimentos fabris para o desastre. Como observa o autor, a guerra colonial não favoreceu a indústria militar, acabou por a penalizar por motivos de ordem financeira, nomeadamente quando impediu que o processo de modernização e reestruturação iniciado na década de 50 ficasse concluído. O autor finaliza o seu trabalho dizendo que é uma questão em aberto a falta de cooperação entre a indústria militar nacional e a sua congénere civil.
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 26 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5344: Notas de leitura ( 37): Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?, de José Pedro Castanheira (Beja Santos)
Vd. poste de 27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5353: Notas de leitura (38): Prefácio ao livro do Manuel Maia, História de Portugal em Sextilhas, a ser lançado na Tabanca de Matosinhos, em 9/12/09 (Luís Graça)
Guiné 63/74 - P5354: Estórias do Jorge Fontinha (9): Homenagem a Fernando Barradas, ex-Fur Mil Fotocine e ex-jornalista de "O Comércio do Porto"
1. Mensagem de Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 24 de Novembro de 2009:
Bom amigo Carlos
Hoje remeto este meu contributo, para lembrar um grande homem.
Portugal merece ter tido nas suas fileiras militares, pessoas como o Fernando Barradas.
Que esteja em paz!
Um abraço
Jorge Fontinha
HOMENAGEM
A necessidade de lembrar um grande amigo, leva-me a falar do malogrado e saudoso FERNANDO BARRADAS
Entrada do Destacamento de Mato Dingal
Foi dos melhores amigos que alguém pode ter, sobretudo em tempo de Guerra. Privei com ele a espaços, e normalmente passávamos noites quase inteiras na conversa. Acompanhados por um ou dois maços de cigarros, uma garrafa de whisky, um balde de gelo e dois copos, no meu abrigo nocturno, de MATO DINGAL.
O Fernando era Furriel Miliciano Foto-cine. Creio que era assim que se designava a especialidade. Periodicamente, deslocava-se ao Sector de Bula e quando o fazia, era ponto de honra projectar um filme no Destacamento de Mato Dingal e aí passar a noite.
Primeiro, porque havia a fama do bom leitão à Bairrada, que se fazia no nosso destacamento, ao ponto de termos visitas variadas doutros ilustres. Não sei onde o Antonino Chaves os arranjava!... Ele é que fazia a gestão do bar, das cozinhas e de tudo quanto era conduzir a parte interna do destacamento. O cozinheiro era oriundo da Bairrada e tanto quanto me recordo, tinha a profissão de ajudante de cozinha num dos Restaurantes daquela Região. Eu tinha mais jeito para as colunas, escoltas e afins… Aqui até foi construído um forno profissional, que mais tarde viria a servir para outra coisa…. Bem essa história do forno será contada a seu tempo, quando eu regressar de férias de 1972.
O segundo motivo que levava o Fernando a Mato Dingal, era o facto que desde a primeira hora ter nascido uma certa empatia e troca de ideias comigo. Eu era o antípoda dele. Naquela idade, 22 anos, eu era de uma inocência confrangedora. Não tinha experiência política de nenhuma espécie e ignorava certos princípios básicos sobre o tema. Atento ao que me rodeava, era contudo muito bom ouvinte e pouco falador, característica que sempre me acompanhou até hoje. Por seu lado, ele era já jornalista profissional do Comércio do Porto, para o qual já fazia as reportagens possíveis, para a época. Foi ele que me catequizou no tema e a partir das várias conversas tidas com ele, fiquei a ter a ideia do que na verdade era a chamada Guerra do Ultramar e não só!...
Ficou-me para sempre gravada as horas passadas naquele abrigo, na conversa onde ele também me passou a respeitar, não só pelo que eu era na altura, mas também pelo meu passado em Angola no antes e sobretudo no pós 15 de Março de 1961. Chorou comigo essas lembranças. Jamais o poderei esquecer.
Depois da passagem à disponibilidade, encontrei-o em Luanda, cidade onde me havia radicado ainda na mira de ajudar a resolver o problema aí deixado. Foi já depois do 25 de Abril, no Aeroporto. Por curiosidade, eu e a minha mulher fomos até ao Aeroporto assistir à chegada do Ministro dos Negócios Estrangeiros Português, Dr. Mário Soares. O Fernando vinha na sua qualidade de jornalista do Comércio do Porto na Comitiva Ministerial.
Da varanda superior, viu-me em baixo e logo gritou pelo meu nome. FONTINHAAAAA! Atónito, virei-me para cima e logo o vi de braço no ar. Correu, descendo as escadas duas a duas e deu-me um grande abraço. Combinamos um jantar em minha casa e quando foi embora, depois do jantar, foi a última vez que o vi.
Paz á sua alma!
Alguém não lhe perdoou o facto de ele ter tido a coragem de só contar a verdade sobre a Guerra da Guiné!...
Para toda a Tertúlia, aquele abraço.
JORGE FONTINHA
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 15 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5279: Estórias do Jorge Fontinha (8): A propósito de férias
Bom amigo Carlos
Hoje remeto este meu contributo, para lembrar um grande homem.
Portugal merece ter tido nas suas fileiras militares, pessoas como o Fernando Barradas.
Que esteja em paz!
Um abraço
Jorge Fontinha
HOMENAGEM
A necessidade de lembrar um grande amigo, leva-me a falar do malogrado e saudoso FERNANDO BARRADAS
Entrada do Destacamento de Mato Dingal
Foi dos melhores amigos que alguém pode ter, sobretudo em tempo de Guerra. Privei com ele a espaços, e normalmente passávamos noites quase inteiras na conversa. Acompanhados por um ou dois maços de cigarros, uma garrafa de whisky, um balde de gelo e dois copos, no meu abrigo nocturno, de MATO DINGAL.
O Fernando era Furriel Miliciano Foto-cine. Creio que era assim que se designava a especialidade. Periodicamente, deslocava-se ao Sector de Bula e quando o fazia, era ponto de honra projectar um filme no Destacamento de Mato Dingal e aí passar a noite.
Primeiro, porque havia a fama do bom leitão à Bairrada, que se fazia no nosso destacamento, ao ponto de termos visitas variadas doutros ilustres. Não sei onde o Antonino Chaves os arranjava!... Ele é que fazia a gestão do bar, das cozinhas e de tudo quanto era conduzir a parte interna do destacamento. O cozinheiro era oriundo da Bairrada e tanto quanto me recordo, tinha a profissão de ajudante de cozinha num dos Restaurantes daquela Região. Eu tinha mais jeito para as colunas, escoltas e afins… Aqui até foi construído um forno profissional, que mais tarde viria a servir para outra coisa…. Bem essa história do forno será contada a seu tempo, quando eu regressar de férias de 1972.
O segundo motivo que levava o Fernando a Mato Dingal, era o facto que desde a primeira hora ter nascido uma certa empatia e troca de ideias comigo. Eu era o antípoda dele. Naquela idade, 22 anos, eu era de uma inocência confrangedora. Não tinha experiência política de nenhuma espécie e ignorava certos princípios básicos sobre o tema. Atento ao que me rodeava, era contudo muito bom ouvinte e pouco falador, característica que sempre me acompanhou até hoje. Por seu lado, ele era já jornalista profissional do Comércio do Porto, para o qual já fazia as reportagens possíveis, para a época. Foi ele que me catequizou no tema e a partir das várias conversas tidas com ele, fiquei a ter a ideia do que na verdade era a chamada Guerra do Ultramar e não só!...
Ficou-me para sempre gravada as horas passadas naquele abrigo, na conversa onde ele também me passou a respeitar, não só pelo que eu era na altura, mas também pelo meu passado em Angola no antes e sobretudo no pós 15 de Março de 1961. Chorou comigo essas lembranças. Jamais o poderei esquecer.
Depois da passagem à disponibilidade, encontrei-o em Luanda, cidade onde me havia radicado ainda na mira de ajudar a resolver o problema aí deixado. Foi já depois do 25 de Abril, no Aeroporto. Por curiosidade, eu e a minha mulher fomos até ao Aeroporto assistir à chegada do Ministro dos Negócios Estrangeiros Português, Dr. Mário Soares. O Fernando vinha na sua qualidade de jornalista do Comércio do Porto na Comitiva Ministerial.
Da varanda superior, viu-me em baixo e logo gritou pelo meu nome. FONTINHAAAAA! Atónito, virei-me para cima e logo o vi de braço no ar. Correu, descendo as escadas duas a duas e deu-me um grande abraço. Combinamos um jantar em minha casa e quando foi embora, depois do jantar, foi a última vez que o vi.
Paz á sua alma!
Alguém não lhe perdoou o facto de ele ter tido a coragem de só contar a verdade sobre a Guerra da Guiné!...
Para toda a Tertúlia, aquele abraço.
JORGE FONTINHA
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 15 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5279: Estórias do Jorge Fontinha (8): A propósito de férias
Guiné 63/74 - P5353: Notas de leitura (38): Prefácio ao livro do Manuel Maia, História de Portugal em Sextilhas, a ser lançado na Tabanca de Matosinhos, em 9/12/09 (Luís Graça)
Prefácio (1º versão, posteriormente modificada e abreviada), de Luís Graça, ao livro de Manuel Maia, História de Portugal em Sextilhas (Editora Esses & Erres, 2009) (*)
Um pequeno grupo de homens, generosos e solidários, que têm em comum a experiência da guerra colonial na Guiné-Bissau (1963/74), sob o comando do Vasco da Gama, e onde se incluem – é justo citá-los – os nomes do Hélder Sousa, José Manuel Dinis e Belarmino Sardinha [ e eventualmente outros que seria injusto omitir] – deu corpo à ideia, já há uns meses acalentada no nosso blogue, de publicar A História de Portugal em Sextilhas, do nosso camarada Manuel Maia.
Pedem-me agora um prefácio, ou seja , um texto preliminar, claro, conciso, e preciso, que vem antes da obra, onde se fala do autor, do conteúdo e, às vezes, do próprio making of do livro… (Etimologicamente, o termo vem do latim praefactionem, a acção de falar ao princípio de)…
Falemos, pois, do poeta e das suas musas, já que é de poesia (épica) que se trata. Conheci, virtualmente falando, o Manuel Maia quando ele me escreveu para o blogue Luis Graça e Camaradas da Guiné, apresentando-se em Fevereiro de 2009: “Português dos quatro costados, apreciador de ditados populares (…), sou licenciado em História [ pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto ] e pretendo (…) enviar a história da minha Companhia em sextilhas (…) onde são respeitados os cânones desta vertente poética”…
Logo percebi, pelo mail e pelas primeiras estrofes recebidas, que, para além do sangue, suor e lágrimas, havia ali talento a rodos, e que a sua musa inspiradora era a Guiné, sedutora, da cor do ébano, mas também verde e vermelha….
Furriel miliciano da 2.ª CCAÇ – Os Terríveis, do BCAÇ 4610, andou por desvairadas terras, entre o purgatório e o inferno, de Bissum Naga (sector de Bula, região do Cacheu, a norte de Bissau) a Cafal Balanta e Cafine (zona do Cantanhez, região de Tombali, a sul), entre 1972 e 1974… A (re)ocupação do Cantanhez é descrita, por ele, como um “trabalho insano(…) nove ou dez meses ali passados, naquela zona minguada de tudo menos de mosquitos e balas”…
Ao ler e inserir no blogue as suas primeiras sextilhas, logo o alcunhei, com irreverência e humor, de “Camões do Cantanhez”, “bardo do Cafal Balanta”… Não lhe regateei elogios:
“E, olha, parabéns, pela arte e engenho de narrar, com humor, os feitos gloriosos dos Terríveis que ousaram penetrar no Santo dos Santos, que era, para o PAIGC, o Cantanhez. Furriel Maia, estás aprovado com 20 valores. São trinta e três sextilhas, ou seja, estrofes de seis versos de dez sílabas métricas. Não os revi todos, mas batem certo: são mesmo decassílabos... Ou não fosses tu um homem de letras, e quiçá um émulo de Camões.... O Camões do Cantanhez!”…
E acrescentava:
“Fico a aguardar o resto do poema épico, agora a entrar - espero bem - no mítico Cantanhez, lá por alturas de Novembro/Dezembro de 1972, quando o velho Spínola decidiu reconquistar e ocupar essas míticas terras de Tombali, numa prova de força contra o PAIGC: Cobumba, Chugué, Caboxanque, Cadique, Cafal, Cafine, Jemberém”…
E assim nasceu mais um Cancioneiro, no nosso blogue, o Cancioneiro do Cantanhez…
Os primeiros fãs das sextilhas do Manuel Maia não tardaram a revelar-se, até que, no início de Maio de 2009, o novo membro do nosso blogue submeteu à apreciação dos editores a sua História de Portugal em Sextilhas, que foi mandando segundo uma ordem cronológica (dos primórdios da nacionalidade, às quatro dinastias da nossa monarquia, e até ao fim da República, em 1926).
Em carteira, ficava – segundo confidências do poeta (cuja voz ouvi hoje e pela primeira vez ao telefone) – a futura História da Guerra Colonial em Sextilhas, outro trabalho insano que vai desafiar a sua imaginação, o seu talento, as suas musas e o seu saber, vivencial, poético e historiográfico… E o mote até pode ser este, de um qualquer anónimo poeta popular, que uma leitora do blogue, Maria Teresa Parreira, nascida em 1957, em Castro Verde, cita de cor, ligado às suas memórias de infância, quando os militares partiam para a guerra:
Mas desengane-se quem pensar que a imaginação e a liberdade criativa do artista não são compagináveis com o rigor historiográfico… Por detrás destas 4 centenas de estrofes, estão anos de labor, de pesquisa bibliográfica, de estudo, de leitura, de reflexão… Inéditas, ainda não divulgadas no nosso blogue, são as cerca de oito dezenas de estrofes respeitantes ao período que vai da Ditadura Militar (1926-1932) ao fim Estado Novo, em 1974.
Quanto resto, é sabido que o nosso Portugal foi (e ainda é) um país de poetas e de soldados onde a poesia não enchia a barriga do pobre, é verdade, mas onde o soldo do soldado também não dava para a caneta, a tinta e o papel... Mesmo assim, ontem como hoje, a malta escreve, e canta, até o dedo doer, até a voz doer...É o teu fado, Manel, meu vate, nosso bardo, nosso épico...Alegras-nos a alma, aguças-nos a curiosidade intelectual, enriqueces a nossa cultura e a nossa história, dás um bela lição a quem te quiser ler, os mais novos e os mais velhos...
É costume dizer-se que os portugueses conhecem mal a sua própria história, porque se calhar a escola, a nossa escola, a nossa escolinha, não nos ensinou amar, de alma e coração, os nossos poetas, os nossos heróis, os nossos santos, a amar e a criticar os nossos reis, os nossos comandantes, o nossa elite dirigente... Por que só critica quem ama, e só se critica quem se ama…
O que o Manuel Maia nos oferece, fruto do seu talento e saber, produzido com generosidade e paixão, é poesia, é pedagogia, é amor às nossas coisas, à nossa Pátria... São as nossas raízes, é a nossa idiossincrasia, é a nossa identidade...
Não tenhamos pejo nem pudor de ser e de cantar o que fomos e o que somos… O conhecimento do passado e do presente (e a poesia é também uma forma de conhecimento, não sendo aliás incompatível com o conhecimento, científico, erudito, académico, da história) é a também ponte levadiça que, mesmo com valas, fossas e cavalos de frisa logo a seguir, nos abre horizontes sobre o que haveremos de ser e o que seremos… Mal vai o povo a quem for amputada a memória do seu passado…
Termino, transcrevendo a primeira das belas estrofes que o autor dedicou ao grande Camões, sua figura tutelar (a outra creio que é o Bocage, truculento, iconoclasta, irreverente, selvagem, livre, pobre e magoado):
(…) Camões lhe dedicou sua grande obra
que mostra o peito luso ter de sobra
a força, a coragem e ousadia
que afasta, de uma vez, velhos temores
ao galgar mar, vencer Adamastores
que o mito popular criara um dia...
Fica bem, Manel, tu e as tuas musas.
Lisboa, 9 de Outubro de 2009 / Porto, 27 de Novembro de 2009
Luís Graça,
Sociólogo,
Doutor em Saúde Pública (ENSP/UNL)
Criador e editor do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné
_________
Nota de L.G.:
(*) Vd. postes de:
25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5335: Agenda Cultural (47): Lançamento do livro do Manuel Maia, dia 9 de Dezembro, em Matosinhos (José Manuel Dinis)
27 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5165: Agenda Cultural (36): A sair, em breve, o livro da História de Portugal em Sextilhas, do nosso camarada Manuel Maia
29 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4755: Blogpoesia (55): História de Portugal em Sextilhas (Manuel Maia) (IX Parte): Do início da República à Grande Guerra (1910/17
Um pequeno grupo de homens, generosos e solidários, que têm em comum a experiência da guerra colonial na Guiné-Bissau (1963/74), sob o comando do Vasco da Gama, e onde se incluem – é justo citá-los – os nomes do Hélder Sousa, José Manuel Dinis e Belarmino Sardinha [ e eventualmente outros que seria injusto omitir] – deu corpo à ideia, já há uns meses acalentada no nosso blogue, de publicar A História de Portugal em Sextilhas, do nosso camarada Manuel Maia.
Pedem-me agora um prefácio, ou seja , um texto preliminar, claro, conciso, e preciso, que vem antes da obra, onde se fala do autor, do conteúdo e, às vezes, do próprio making of do livro… (Etimologicamente, o termo vem do latim praefactionem, a acção de falar ao princípio de)…
Falemos, pois, do poeta e das suas musas, já que é de poesia (épica) que se trata. Conheci, virtualmente falando, o Manuel Maia quando ele me escreveu para o blogue Luis Graça e Camaradas da Guiné, apresentando-se em Fevereiro de 2009: “Português dos quatro costados, apreciador de ditados populares (…), sou licenciado em História [ pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto ] e pretendo (…) enviar a história da minha Companhia em sextilhas (…) onde são respeitados os cânones desta vertente poética”…
Logo percebi, pelo mail e pelas primeiras estrofes recebidas, que, para além do sangue, suor e lágrimas, havia ali talento a rodos, e que a sua musa inspiradora era a Guiné, sedutora, da cor do ébano, mas também verde e vermelha….
Furriel miliciano da 2.ª CCAÇ – Os Terríveis, do BCAÇ 4610, andou por desvairadas terras, entre o purgatório e o inferno, de Bissum Naga (sector de Bula, região do Cacheu, a norte de Bissau) a Cafal Balanta e Cafine (zona do Cantanhez, região de Tombali, a sul), entre 1972 e 1974… A (re)ocupação do Cantanhez é descrita, por ele, como um “trabalho insano(…) nove ou dez meses ali passados, naquela zona minguada de tudo menos de mosquitos e balas”…
Ao ler e inserir no blogue as suas primeiras sextilhas, logo o alcunhei, com irreverência e humor, de “Camões do Cantanhez”, “bardo do Cafal Balanta”… Não lhe regateei elogios:
“E, olha, parabéns, pela arte e engenho de narrar, com humor, os feitos gloriosos dos Terríveis que ousaram penetrar no Santo dos Santos, que era, para o PAIGC, o Cantanhez. Furriel Maia, estás aprovado com 20 valores. São trinta e três sextilhas, ou seja, estrofes de seis versos de dez sílabas métricas. Não os revi todos, mas batem certo: são mesmo decassílabos... Ou não fosses tu um homem de letras, e quiçá um émulo de Camões.... O Camões do Cantanhez!”…
E acrescentava:
“Fico a aguardar o resto do poema épico, agora a entrar - espero bem - no mítico Cantanhez, lá por alturas de Novembro/Dezembro de 1972, quando o velho Spínola decidiu reconquistar e ocupar essas míticas terras de Tombali, numa prova de força contra o PAIGC: Cobumba, Chugué, Caboxanque, Cadique, Cafal, Cafine, Jemberém”…
E assim nasceu mais um Cancioneiro, no nosso blogue, o Cancioneiro do Cantanhez…
Os primeiros fãs das sextilhas do Manuel Maia não tardaram a revelar-se, até que, no início de Maio de 2009, o novo membro do nosso blogue submeteu à apreciação dos editores a sua História de Portugal em Sextilhas, que foi mandando segundo uma ordem cronológica (dos primórdios da nacionalidade, às quatro dinastias da nossa monarquia, e até ao fim da República, em 1926).
Em carteira, ficava – segundo confidências do poeta (cuja voz ouvi hoje e pela primeira vez ao telefone) – a futura História da Guerra Colonial em Sextilhas, outro trabalho insano que vai desafiar a sua imaginação, o seu talento, as suas musas e o seu saber, vivencial, poético e historiográfico… E o mote até pode ser este, de um qualquer anónimo poeta popular, que uma leitora do blogue, Maria Teresa Parreira, nascida em 1957, em Castro Verde, cita de cor, ligado às suas memórias de infância, quando os militares partiam para a guerra:
Lá vai mais um barco
para o Ultramar,
levam nossos filhos
p'ra irem lutar.
P´ra irem lutar
deixam cá cadilhos,
para o Ultramar
levam nossos filhos.
para o Ultramar,
levam nossos filhos
p'ra irem lutar.
P´ra irem lutar
deixam cá cadilhos,
para o Ultramar
levam nossos filhos.
Os portugueses têm um fascínio pela poesia oral, desde o tempo (medieval) dos trovadores da corte e dos cantadores de feira, e esta que hoje ganha forma, em letra de imprensa, é para ser lida em voz alta, em público ou em privado, em tertúlia ou no espaço mais íntimo do lar, na escola ou no quartel. Tem um propósito lúdico mas também didáctico… Não é um livro de história, é mais do que isso: é uma narrativa épica, baseada no conhecimento dos factos históricos (alguns mitológicos), da sua sequência e do seu contexto, em que é o poeta, o artista (e não o historiador, o cientista) quem mais ordena…
Mas desengane-se quem pensar que a imaginação e a liberdade criativa do artista não são compagináveis com o rigor historiográfico… Por detrás destas 4 centenas de estrofes, estão anos de labor, de pesquisa bibliográfica, de estudo, de leitura, de reflexão… Inéditas, ainda não divulgadas no nosso blogue, são as cerca de oito dezenas de estrofes respeitantes ao período que vai da Ditadura Militar (1926-1932) ao fim Estado Novo, em 1974.
Quanto resto, é sabido que o nosso Portugal foi (e ainda é) um país de poetas e de soldados onde a poesia não enchia a barriga do pobre, é verdade, mas onde o soldo do soldado também não dava para a caneta, a tinta e o papel... Mesmo assim, ontem como hoje, a malta escreve, e canta, até o dedo doer, até a voz doer...É o teu fado, Manel, meu vate, nosso bardo, nosso épico...Alegras-nos a alma, aguças-nos a curiosidade intelectual, enriqueces a nossa cultura e a nossa história, dás um bela lição a quem te quiser ler, os mais novos e os mais velhos...
É costume dizer-se que os portugueses conhecem mal a sua própria história, porque se calhar a escola, a nossa escola, a nossa escolinha, não nos ensinou amar, de alma e coração, os nossos poetas, os nossos heróis, os nossos santos, a amar e a criticar os nossos reis, os nossos comandantes, o nossa elite dirigente... Por que só critica quem ama, e só se critica quem se ama…
O que o Manuel Maia nos oferece, fruto do seu talento e saber, produzido com generosidade e paixão, é poesia, é pedagogia, é amor às nossas coisas, à nossa Pátria... São as nossas raízes, é a nossa idiossincrasia, é a nossa identidade...
Não tenhamos pejo nem pudor de ser e de cantar o que fomos e o que somos… O conhecimento do passado e do presente (e a poesia é também uma forma de conhecimento, não sendo aliás incompatível com o conhecimento, científico, erudito, académico, da história) é a também ponte levadiça que, mesmo com valas, fossas e cavalos de frisa logo a seguir, nos abre horizontes sobre o que haveremos de ser e o que seremos… Mal vai o povo a quem for amputada a memória do seu passado…
Termino, transcrevendo a primeira das belas estrofes que o autor dedicou ao grande Camões, sua figura tutelar (a outra creio que é o Bocage, truculento, iconoclasta, irreverente, selvagem, livre, pobre e magoado):
(…) Camões lhe dedicou sua grande obra
que mostra o peito luso ter de sobra
a força, a coragem e ousadia
que afasta, de uma vez, velhos temores
ao galgar mar, vencer Adamastores
que o mito popular criara um dia...
Fica bem, Manel, tu e as tuas musas.
Lisboa, 9 de Outubro de 2009 / Porto, 27 de Novembro de 2009
Luís Graça,
Sociólogo,
Doutor em Saúde Pública (ENSP/UNL)
Criador e editor do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné
_________
Nota de L.G.:
(*) Vd. postes de:
25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5335: Agenda Cultural (47): Lançamento do livro do Manuel Maia, dia 9 de Dezembro, em Matosinhos (José Manuel Dinis)
27 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5165: Agenda Cultural (36): A sair, em breve, o livro da História de Portugal em Sextilhas, do nosso camarada Manuel Maia
29 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4755: Blogpoesia (55): História de Portugal em Sextilhas (Manuel Maia) (IX Parte): Do início da República à Grande Guerra (1910/17
Guiné 63/74 - P5352: Patronos e Padroeiros (José Martins) (2): Exército - Arma de Artilharia - Santa Bárbara
1. Segundo poste da série Patronos e Padroeiros das Armas do Exército Português, um trabalho de pesquisa do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil, Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70).
PATRONOS E PADROEIROS - II
EXÉRCITO - ARMA DE ARTILHARIA – SANTA BÁRBARA
EXÉRCITO - ARMA DE ARTILHARIA – SANTA BÁRBARA
Barbara, nasceu nos finais do Século III, na cidade de Nicodémia, actual Izmit na Turquia, filha única de Dióscoro, um rico e nobre habitante do Império Romano.
Tendo necessidade de viajar e não querendo deixar a filha desprotegida no meio de uma sociedade corrupta, resolveu deixá-la fechada numa torre. É que além de ser bela tinha muitos pretendentes para com ela casar, mas que recusava sistematicamente.
Dióscoro, seu pai, receoso de que a atitude da filha se devia ao facto de ter estado muitos anos fechada na torre, permitiu que fosse conhecer a cidade. Durante a visita teve contacto com os cristãos que lhe transmitiram os ideais do catolicismo, a vida de Jesus e o mistério da Santíssima Trindade. Algum tempo depois, um padre vindo de Alexandria, baptizou-a.
Para melhorar as condições de habitabilidade da torre onde Bárbara passava a maior parte do tempo, mandou construir uma casa de banho com duas janelas. Pouco tempo depois, voltou a ausentar-se.
Durante esse tempo, Bárbara mandou rasgar uma terceira janela no quarto de banho da torre, além de mandar esculpir uma cruz sobre a fonte. Quando voltou, ao ver as alterações operadas, questionou a filha, tendo esta dito que aqueles eram os símbolos da sua nova fé.
Vendo que a sua filha recusava a fé dos Deuses do Olimpo, denunciou-a ao Prefeito Martiniano que a mandou torturar, mas sem qualquer resultado, pelo que acabou condenada à morte.
Barbara, com os seios cortados, foi levada para fora da cidade, onde o próprio pai a degolou.
Quando a sua cabeça tombou no chão, um forte trovão ribombou, fazendo tremer céus e terra, enquanto um relâmpago atingiu o corpo de Dióscoro, que tombou por terra sem vida. Isto passou-se em Nicodémia, no século IV.
A partir dessa altura, Santa Bárbara, venerada pela Igreja Católica e pela Igreja Ortodoxa, passou a ser a padroeira dos Artilheiros, mineiros e dos que lidam com o fogo, tendo a sua Festa litúrgica em 4 de Dezembro.
Santa Bárbara, foi proclamada Patrono da Arma de Artilharia pela Portaria de 6 de Maio de 1959 e Ordem do Exército (1.ª Série), de 30 de Maio seguinte.
José Marcelino Martins – 24 de Novembro de 2009
[Organizado a partir de imagens e textos da Wikipédia]
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Nota de CV:
Vd. primeiro poste da série de 26 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5347: Patronos e Padroeiros (José Martins) (1): Exército - Arma de Infantaria - D. Nuno Álvares Pereira
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