1. “Sínico, mas não cínico": a frase de um missionário português, amigo do nosso aniversariante de hoje... Foi título da crónica ou coluna do Padre Manuel Teixeira, “Cálice do Fino”, publicada no jornal Macau Hoje, edição de 15 de Julho de 1998. Eis alguns excertos:
“A 16-4-1998, veio visitar-me um velho amigo, o Dr. António Graça de Abreu. Hoje é ele o único sínico português. Gosta de ser chamado sínico. É um prazer ouvi-lo falar. (…) Depois da sua primeira estadia na China, volta-se para a China, sonha com a China, fala da China e adora a chinesa – a mulher de jade com quem casou e de quem teve dois filhos”.
O colunista acrescenta os seguintes dados biográficos sobre o seu amigo:
“Nasceu no Porto a 30 de Março de 1947, tirou o curso liceal no Colégio Moderno de Lisboa; estudou alemão na Alemanha; formou-se em letras na Universidade de Lisboa. Combateu na Guiné. Veio para a China em 1977; foi professor de Português na Faculdade de Línguas Estrangeiras de Pequim. Regressando a Lisboa, casou, em 1987, na igreja de N. Senhora dos Anjos com uma chinesa budista, que se converteu e baptizou. Hoje é católica fervorosa”.
Uns meses antes, em 6 de Fevereiro de 1998, António Graça de Abreu, “sinólogo” (isto, especialista em cultura chinesa), fazia assim o seu "auto-retrato", no Diário de Notícias:
(i) Partiu para Pequim, via Paris, em Setembro de 1977; pouco ou nada sabia da China;
(ii) Ainda era “meio maoísta” (sic), tinha entrada na China por via do PC de P (m-l), de Eduíno Vilar, “o único partido português que mantinha contactos institucionais com o PC Chinês”;
(iii) Durante 4 anos será professor de Português e trabalha nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras;
(iv) Até ao seu regresso definitivo, em Maio de 1983, viajou pela China, aprendeu o mandarim, descobriu a China profunda e antiquíssima, conheceu Macau, foi correspondente em Pequim do Diário de Notícias;
(v) Voltaria a China diversas vezes, só ou com amigos, e em 1995, integrado na comitiva do Presidente da República Portuguesa, Mário Soares, na sua visita oficial à República Popular da China.
Recorda o seu primeiro mês de vida na China, o seu amor à primeira vista por um sociedade em ebulição que lhe parecia “cultural e politicamente correcta” (sic). Passado o estado de confusão entre o desejo e a realidade – coisa que é muito frequente entre os humanos - , o António “caiu na real”, como dizem os nossos amigos brasileiros. Perdeu as ilusões sobre a construção do “homem novo”… E foi aí que se tornou “sínico, mas não cínico”:
“Precisava de estudar, de aprender a língua, a história, a civilização, a cultura. Havia um fabuloso império a descobrir. Não a China actual (…), a China clássica, do ‘homem velho’, sempre novop, dos poetas e dos pintores, dos filósfoso e sábios,. Dos mongs e artistas”… E depois, havia Macau, esse lugar único, singular, “inventado por portugueses e chineses, a três mil quilómetros de Pequim”… Essa descoberta (que dará origem a outra paixão) far-se-á em Novembro de 1979…
2. O António autorizou-nos a espreitar as primeiras notas que escreveu, no seu diário da China, em 1977 (ele continuou a ter o bom hábito de anotar as suas impressões do dia-a-dia)
Pequim, 8 de Setembro de 1977
Emoção ao chegar à China. O aeroporto pequeno numa manhã de sol, o grande retrato de Mao Zedong, a garganta presa. O acolhimento afectuoso, fraterno dos camaradas chineses, futuros companheiros de trabalho.
O primeiro contacto com Pequim. Camponeses, carroças, casas pobres. As árvores bordejando a estrada, a vegetação repousante, as gentes que não conheço.
A primeira decepção, a habitação que me destinaram, um apartamento feio, esquisito, mal mobilado. Vai ser preciso mudar esta casa. Estranha sensação do estranho.
A primeira saída até ao centro da cidade. Pequim plana, avenidas largas, milhares e milhares de bicicletas, poucos automóveis sempre a buzinar. Trânsito desorganizado mas que funciona, reina uma grande ordem nesta desordem.
Ainda hortas e terras cultivadas, os campos entram por dentro da cidade. Sempre muita gente. Transparece uma ideia de pobreza, não de miséria.
A Praça Tian’anmen, a da Paz Celestial, enorme, vazia, majestosa. Amanhã faz um ano que morreu Mao Zedong. Cortejos com milhares de pessoas vêm depositar coroas de flores, de papel, nas tribunas da Praça e junto ao monumento dos Mártires da Revolução porque haverá cerimónias oficiais comemorativas do primeiro aniversário da morte de Mao.
No primeiro dia ainda uma visita e algumas compras na Loja da Amizade. Creio ser um dos grandes armazéns de Pequim, destina-se a estrangeiros e tem montanhas de coisas bonitas e baratas.
Ao jantar, neste hotel que tal como a loja também se chama “da Amizade”e é uma Babilónia de línguas e gentes de todo o mundo, conversa com um velho casal brasileiro e outro colombiano, todos refugiados políticos.
Cansaço, um dia pleno.
Pequim, 9 de Setembro de 1977
Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras ou melhor Waiwen Shudian, (chama-se assim em chinês, perguntei esta manhã), um dos meus locais de trabalho. Edifício pesado, um caixote com seis andares, espartano, tipo convento marxista-leninista-maoísta. Mas funcional. Os companheiros de trabalho que vão fazer as traduções que depois corrigirei e a quem vou ensinar mais português, todos risonhos, simpáticos falando razoavelmente a língua de Camões. A camarada Bai e o camarada Fu estudaram português em Macau.
Na cave das Edições, cerimónia fúnebre muito simples em honra de Mao Zedong. Tudo a preto e branco, as cores do luto, mas com aparência de missa comunista. O retrato do revolucionário, as pessoas a curvarem-se diante da figura, muitas coroas de flores de papel, dois discursos longos de que não entendi uma palavra.
De tarde, visita ao Palácio de Verão. Um estupendo conjunto de construções no estilo tradicional chinês, não muito antigo - parece que é tudo dos séculos XVIII e sobretudo XIX - junto a um belo lago, com pavilhões, torreões, pagodes e, ao fundo, as montanhas a oeste da cidade.
Hei-de voltar muitas vezes ao Palácio de Verão, não fica longe do Hotel da Amizade, talvez uns cinco quilómetros, e hoje vi apenas de relance, com os olhos.
Eu quero conhecer, quero começar a meter a China dentro de mim. Viajei muito pela China, da Mongólia Interior a Yunnan, de Sichuan a Macau, diluí-me pelo país, como gosto de fazer. Também aprendi alguns chinês.
Pequim, 14 de Setembro de 1977
O presidente Mao Zedong repousa no mausoléu que acabou de ser inaugurado, a sul da praça Tian’anmen. Fui ver o corpo do homem que mais contribuiu para mudar a face da China. Grupos compactos de pessoas, organizadas por entidades de trabalho, filas silenciosas de soldados, os rostos parados, compungidos, aguardavam a vez de entrar na construção de mármore, rectangular, nem bonita, nem feia onde jaz Mao.
Juntei-me à fila ininterrupta que avançava num lento ritmo fúnebre. Lá dentro, na vasta antecâmara, uma grande estátua também de mármore de Mao Zedong, sentado, branco, irradiando a altivez e segurança do melhor período da sua vida. Logo depois o salão com o sarcófago de cristal.
À minha frente, o peruano Guillermo Delly, que pertence àquele grupo maoísta do Sendero Luminoso chegado também agora à China e que trabalha comigo nas Edições de Pequim - ele no semanário Beijing Zhoubao, o que dá Pekin Informe na língua de Cervantes -, pois o Guillermo levantou o braço e, de punho fechado, saudou Mao Zedong.
Em 1970, já no ocaso dos dias mas ainda todo-poderoso, o grande timoneiro confessou numa entrevista a Edgar Snow que entre as multidões imensas que gritavam Mao Zhuqi Wansui!, ou seja “Viva o Presidente Mao”, um terço das pessoas eram sinceras, outro terço fazia o que via os outros fazer e o último terço era hipócrita. Em qual destes grupos entrará Guillermo Delly? E eu, que não ergui punho nenhum nem nunca gritei Mao Zhuqi Wansui? (...)
Fonte: Ponto Final, jornal de Macau (19/1/2010)
Dedicatória manuscrita do António, no livro Poemas de Li Bai: tradução, prefácio e notas de António Graça de Abreu, 2ª edição (Macau, Instituto Cultural de Macau, 1996), que lhe valeu o Grande Prémio de Tradução da Associação Portuguesa de Tradutores e do Pen Club, 1991).
3. Alferes miliciano dos serviços gerais, afecto ao CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, Junho de 1972 / Abril de 1974), António Graça de Abreu escrevia no seu diário há 37 anos:
Mansoa, 30 de Março de 1973
Faço hoje vinte e seis anos, de certeza também complementarei os vinte e sete nesta santa Guiné. Tantos dias ainda a percorrer, tanto vazio a preencher! Se tudo correr bem, daqui a um ano estarei em Bissau à espera do aviãon para regressar a casa e deixar de vez a guerra.
Ninguém sabe que eu faço anos e não foi para recordar a data que às seis da manhã os obuses começaram a bater a zona, a mandar granadas de canhão para os possíveis locais onde os os guerrilheiros se estariam a levantar da cama. Às oito, foram os combatentes do PAIGC a flagelar à distância a frente de atrabalho da estrada Jugudul-Porto Gole – Bambadinca, sem resultados. É a quarta vez nestes últimos três dias, o que só serve para criar insegurança e fazer barulho. Os nossos obuses começaram a ripostar e lá se vai o sossego, o nosso e o do IN.
O meu coronel [, pára, Rafael Durão,], o meu major P. e um tenente-coronel que está aqui emprestado ao CAOP, foram, esta manhã de jipe, com uma pequena escolta, a Bula e Binar, tratar de assuntos relacionados com ofensivas sobre o IN. Os guerrilheiros sabiam que gente importante ia chegar a Binar e estavam à espera, emboscados junto à pista de aviação. Falharam a recepção porque os ‘homens grandes’ brancos não chegaram de avião, viajaram por estrada.. Foram e regressaram em paz”.(pp. 91-92).
Na véspera, 29/3/1973, o António comentava a notícia da queda do Fiat G91 sob os céus de Guileje, pilotado por um tenente (hoje nosso camarada e amigo, o Miguel Pessoa), que “foi abençoado pelos céus” (p. 91). Como se sabe, isto ocorreu em 25 de Março…
E acrescentava:
“Ontem repetiu-se o incidente, foi abatido outro Fiat G 91. Desta vez, o piloto não teve sorte, o avião desintegrou-se e morreu o tenente-coronel Almeida Brito, o comandante das esquadrilha de aviões na Guiné” (…).
“Esta manhã esteve cá o furriel piloto Baltazar da Silva, (…) meu conhecido e amigo desde aquela primeira aterragem estranha, alvoraçada em Cachungo. Trouxe a sua DO, pareceu-me preocupado, assustado (…). (Será abatido, por um Strela, dias depois, “entre Bigene e Guidage”, conforme anotação no diário, em 8 de Abril de 1973)…”Trouxe-o até ao meu quarto, bebemos um whisky velho, animei-o tanto quanto fui capaz. Regressou a Bissau com a morte na alma”.
Um ano depois, não há nenhum registo no diário, com data de 30/3/1974. A 20 de Março, o António parte para Bissau, aproveitando a boleia de um Nordatlas que foi a Cufar buscar feridos. A sua comissão termina dali a três dias.
A sua obsessão agora é descobrir e reencaminhar para Cufar o seu periquito. A tarefa não se revela fácil. A 22, escreve, de Bissau, que “oficialmente para mim a guerra acabou”… A 25, houve um atentado á bomba no “Quartel-General, na Amura (…) e num café no centro da cidade”, provocando a morte de um civil e três militares (incluindo um da 38 CCmds) (p. 208).
Nesse dia descobre o seu periquito, não mais o larga…. A 31 regressa a Cufar, “depois de ter resolvido o problema do meu subsituto”: o Alf Lopes, com a especialdiade de secretariada, destinado originalmente à.â 1ª Rep, em Bissau…
“Ou porque têm gente a mais ou porque eu os chateei demasiado nestes últimos dez dias, desviaram-no para Cufar”. A 5 de Abril, é a explosão de alegria: “Já cá está. Já cá canta o alferes Lopes, o meu substituto. Agora são mais uns dias para fazera sobreposição (…) Depois, adeus Guiné, bye, bye Guiné (pp. 211).
A 20 de Abril, tomava o avião dos TAM, a caminho de Portugal. Teve tempo, em Cufar e depois em Bissau se despedir definitivamente da Guiné: “Caminhei pela paisagem das gentes negras de Bissau. Eles não sabem de mim mas eu estava ali para me despedir, para os levar comigo nas arcadas da alma, para sempre” (Bissau, 15 de Abril de 1974, p.214).
4. Algumas das 30 perguntas ao António (e as respectivas respostas) "a partir do questionário de Proust", inseridas na página do Pen Club Português, e que nos ajudar a conhecer e compreender um pouco melhor este camrada cuja presença muito nos honra na nossa Tabanca Grande:
1. O que é para si a felicidade absoluta?
R- Paz, serenidade, amor
2. Qual considera ser o seu maior feito?
R- A minha tradução dos Poemas de Li Bai (701-762), Prémio Nacional de Tradução1990.
3. Qual a sua maior extravagância?
R- Amar. (...)
5. Qual o traço principal do seu carácter?
R- Generosidade, ingenuidade.
6. O seu pior defeito?
R- Teimosia. (...)
10. Qual a sua máxima preferida?
R- Se conheces, actua como homem que conhece, se não conheces, reconhece que não conheces. Isso é conhecer. (Confúcio disse!)
11. Onde (e como) gostaria de viver?
R- Canedo, Vila da Feira, numa casa sobranceira a um regato, na floresta com a mulher daminha vida. (...)
15. Que compositores prefere?
R- Beethoven, Mozart, Débussy.
16. Pintores de eleição?
R- Greco, Leonardo, Miguel Ângelo, Goya, Ingres.
17. Quais são os seus escritores favoritos?
R- Eça, Camilo, Cao Xueqin,
18. Quais os poetas da sua eleição?
R- Camões, Li Bai, Du Fu, Wang Wei.
19. O que mais aprecia nos seus amigos?
R - Honestidade, alegria de viver.
20. Quais são os seus heróis?
R- Os soldados que morreram a meu lado na guerra da Guiné. (...)
22. Qual a sua personagem histórica favorita?
R- D.João II.
23. E qual é a sua personagem favorita na vida real?
R- Wang Hai Yuan. (...)
26.Que dom da natureza gostaria de possuir?
R- Uma enorme aptidão para ler e falar bem chinês.
27. Qual é para si a maior virtude?
R- A honestidade.
28. Como gostaria de morrer?
R- Em paz, de repente, concluídos todos os grandes trabalhos.
29. Se pudesse escolher como regressar, quem gostaria de ser?
R- Um grande mandarim chinês do século XVIII.
30. Qual é o seu lema de vida?
R- Amar, trabalhar, descansar.
5. Comentário de L.G.:
Meu caro António:
Afinal, quem és tu ?... Não tenho o direito de te fazer essa pergunta. Afinal, vamo-nos conhecendo. Temos a obrigação de conhecermo-nos. E o prazer de irmo-nos conhecendo... Damo-nos a conhecer uns aos outros, todos dias ou quase. Damos a cara. Não faz sentido fazer perguntas voyeuristas, do género "Pensa português com o coração e chinês com a razão... Ou vice-versa ?"... Alguns chamar-te-ão estrangeirado, o português que melhor conhece a China (a frase é dum jornalista de Macau, João Paulo Meneses, que te entrevistou recentemente, Ponto Final, 19/1/2010) ou, até em tom provocatório e quiçá xenófobo, o homem que já não sabe o que é, dividido entre dois grandes amores, a pátria lusa e a mátria chinesa (enquanto Macau será a fátria luso-chinesa)...Para mim, simplesmente, és um cidadão do mundo, um homem das Luzes do Séc. XXI, cosmopolita, global, culto, open-minded, prestável, perseverante, disciplinado, humilde, amigo, camarada...
Os adjectivos são sempre redutores... Para mim, é simplesmente um privilégio conhecer-te. E eu creio poder interpertar os sentimentos de muitos dos amigos e camaradas da Guiné, dizendo-te que todos te querem bem, e te estimam, e se sentem honrados por te sentares, connosco, à nossa beira, à sombra do nosso poilão da nossa Tabanca Grande...
Desejo-te, em meu nome e dos demais editores (o Carlos, o Eduardo e o Virgínio), um dia em grande, para ti, tua esposa Hai Yan e teus filhos. Não bebo ao luar, como o pobre Li Bai, ergo a minha taça, em pleno terreiro da Tabanca Grande, e peço aos demais que me acompanhem nos votos festivos à tua saúde, longevidade e talento. Luís Graça