Caros amigos, Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães.
Como me tinha comprometido, no P6320**, trago mais uma vez ao Blogue o tema do Fanado em Canjude, Guiné.
Deixo ao vosso critério a publicação, ou não, assim como a inclusão das fotos onde acharem apropriado.
Um Abraço
José Corceiro
José Corceiro na CCAÇ 5 (13)
RITUAL DO FANADO NO AQUARTELAMENTO DE CANJADUDE
RITUAL DO FANADO NO AQUARTELAMENTO DE CANJADUDE
Desde criança, com seis ou sete anos, tanto quanto me lembro, que nutro particular interesse por matérias relacionadas com os seres Vivos (a Vida) e a sua interacção com o meio circundante. A curiosidade, o gosto, a vontade de mais saber, foi evoluindo para temas mais específicos, na área da Biologia (Citologia, Histologia, Fisiologia, Anatomia, Genética, Bioquímica, etc. etc.).
Sempre admirei e fico estupefacto, ao confrontar-me com o alto nível de organização social das formigas, e outros insectos, ou seja, a Eusocialidade. Lembro-me dos tempos de criança, as traquinices que eu fazia ao descontinuar os corredouros da passagem das formigas, limpando nos trilhos os seus vestígios de marcação, suspendendo assim a sua azáfama laboriosa, ver as suas resistências até se organizarem novamente e partirem à luta do quotidiano, não sabendo eu, na altura, nada sobre ácido fórmico (metanoico) ou sobre o poder das feromonas. Verificava, inicialmente, a reacção de indecisão e pânico gerado no grupo dos insectos, por lhe faltarem os rastos guias, marcados com feromonas, no seu carreirinho que os orientava rumo ao alvo alimentício, até que se ordenavam e disciplinavam, para logo de seguida prosseguirem, com a sua estafa, em piso adjacente ao descaracterizado, com destino ao objectivo, nos dois sentidos, sem desfalecimento, cansaço, ou desmotivação, mas, antes sim, com expediente, determinação e afoiteza, pugnando pela sobrevivência do formigueiro.
Recordo também a minha perplexidade e admiração, devido à majestosa estrutura social e energia dinâmica das abelhas, na sua labuta infatigável para governar e perpetuar a vida. Intrigava-me a rapidez com que chegavam à descoberta do mel, por mais camuflado que estivesse, elas apareciam num ápice e iam direitinhas ao mel, que eu colocava em caixinhas da pomada dos sapatos, já vazias, em sítios escondidos e de difícil acesso, a dois ou três quilómetros de distância do local onde estavam as colmeias, o apiário, que era do meu avô, um pequeno industrial de mel e seus afins (aguardente, a cera…), que tinha umas centenas de cortiços com enxames de abelhas.
Mais deslumbrado ficava eu quando o meu avô crestava as colmeias, geralmente duas vezes por ano, cujo mel era em cada época de diferente densidade, viscosidade e cor, consoante a captação do néctar, pelas abelhas, era mais ou menos plurifloral. Também era em função do peso que a colmeia tinha e conforme a variação das Estações do Ano, assim como a mudança do local dos cortiços para regiões de mais ou menos floração, que se aferia se devia haver segunda cresta, estes factores tinham muita influência no armazenamento do mel na colmeia.
Logo que o meu avô despregava e levantava o tampo superior do cortiço, ao tirar as “sovinas” (“viros”, pregos de madeira feitos dos caules das “xaras” estevas) e me deixava ver o interior da colmeia, com capelo enfiado na cabeça e depois de utilizar a mecha para afugentar as obreiras, podia observar os seus labirintos de acessos e movimentações, habilmente arquitectados pelos laboriosos animaizinhos, que os dimensionavam com um alinhamento e aprumo constantes, cujos edifícios nada mais eram do que os favos de mel, devidamente organizados e distribuídos pelas trancas cruzadas do cortiço que os suportavam. Ficava intrigado e maravilhado, como é que um insecto tão pequenino a laborar no escuro, conseguia ordenar com tamanha perícia, precisão e beleza, tão preciosas obras de arte, concluídas com todo o rigor matemático, quer na uniformidade de enfileiramento dos acessos, quer na perfeição da arrumação dos favos. Nos favos, os seus alvéolos todos geométricos e homólogos, obedecendo ao rigor das leis trigonométricas, cheios de mel e tamponados com tamanha mestria, tornavam-se tentação para os saborear, despertado no homem o desejo de saquear as colmeias constantemente.
Nos dias de cresta, eu não faltava a esse acontecimento, aguardado com ansiedade e euforia e, logo pela manhã, todo prazenteiro, deslocava-me para o local da faina, onde com curiosidade ficava atento ao desenrolar de todas as tarefas dos crestadores com a crestadeira em punho, para fazer a cresta. Eu, logo que presumisse ser oportuno, seleccionava um favo que me parecia ser o mais perfeitinho, ainda que todos iguais, para me deliciar e besuntar.
Foto 1 - Livro que o meu avô me deu quando eu tinha 9 ou 10 anos.
Ainda hoje guardo um livro que o meu avô me deu, sobre Apicultura, escrito em Espanhol, porque na época não havia nada escrito em Português sobre o tema, andava eu na escola primária.
Tem sido esta curiosidade intrínseca na minha génese, que me tem acompanhado pela vida fora e, foi talvez, por condão a ela, que me ia metendo em palpos de aranha, quando da minha falta de prudência ultrapassei o limite do razoável e quis tirar fotos na mata ao Altar de Rituais do Fanado, onde as meninas de Canjadude iam a ser mutiladas, (Fanado) como relatei no Poste 6320.
Foto 2 - No terreiro sagrado da Tabanca, com o Povo reunido, creio que vedado ao sexo feminino, dá-se inicio aos rituais festivos. Vê-se à frente o Sr. Capitão Costeira, no centro da foto.
Foto 3 - Animal sacrificado, cabrita, que faz parte do ritual e cujas vísceras, e outras partes do corpo, são colocadas numa taloca de árvore sagrada, como oferenda ao Deus Alá.
No comentário que fiz no Poste 6320, prometi que traria o tema do Fanado novamente ao Blogue, isto porque no espaço de um ano houve uma mudança muito acentuada na mente e no procedimento, dos Homens Grandes da Tabanca de Canjadude, para encarar as tradições e dar outra permissividade a toda a problemática que envolve o cerimonial do Fanado. Deu-se uma abertura, salto de gigante, impensável, porque pela primeira vez em Canjadude foi facultado (convidados) aos militares metropolitanos, que se envolvessem um pouco, nos rituais festivos da Tabanca, quer assistindo fisicamente, quer nas tarefas de organização dos meios de suporte, de forma a poder criar condições e disponibilizar estruturas com mais potencialidades de salubridade, para que a execução do Fanado fosse operado em local menos inclemente, com utensílios e meios mais higienistas (anti-sepsia), de forma a minimizar os efeitos funestos das infecções e seus colaterais.
Foto 4- Reunião dos Homens Grandes das etnias representadas, Anciães, a planear o desenrolar do ritual, vendo-se no meio, o Sr. Capitão Costeira.
Foto 5 - Momento solene de passagem de penhor.
Esta abertura de comportamento da parte dos civis de Canjadude, deve-se em parte ao empenho e envolvimento do Sr. Coronel Arnaldo Silveira Costeira, que na época como Capitão, foi um dos quatro Comandantes na CCAÇ 5, que eu conheci. Foi a diligência e a visão para por em prática, toda uma política de reconciliação e entrosamento à comunidade civil, levada a cabo pelo Sr. Capitão Costeira, homem com sensibilidade, sensatez, sentido de responsabilidade e dever, que estimulou toda uma conduta de avizinhamento, favorável para os militares e civis. Soube interpretar e aproveitar, no bom sentido, as deliberações das linhas orientadoras da política que aspirava implementar na Guiné, o Comandante-Chefe, Sr. General António Spínola, (vulgarmente chamada “psico”) tão propalada na altura em que o lema era “por uma Guiné Melhor”. A partir daqui, creio eu, que as portas do Aquartelamento Militar de Canjadude, ficaram mais permeáveis e acolhedoras às celebrações das solenidades civis, dando assim um contributo e prova de compromisso para uma aproximação sadia entre civis e militares, assim como ficou implícito uma confluência de sinergias propícias à melhoria da qualidade de vida da população civil, contribuindo de alguma maneira para um ajuste de vontades. Houve uma mudança perceptível para melhor, com mais confiança, acolhimento e doação, na coabitação dos civis com os militares, desde que eu cheguei a Canjadude, até sair de lá, algo melhorou.
Foto 6 - Deões juntos com a criançada e com os animadores de festividades, cujo trio se vê em último plano, de pé, tendo um polo verde.
Foto 7 - Início da preparação das meninas de Canjadude que iam ser Fanadas, com os familiares.
Em rituais de Fanado, as crianças ficaram um pouco mais protegidas, ao ser feito no Aquartelamento, onde se criaram algumas condições de salubridade e assepsia, não tantas quantas o acto exigia, mas já foi positivo. É digno de destaque o precioso contributo do envolvimento do pessoal de enfermagem que estava a postos para socorrer alguma urgência, ou se algo descambasse para além do propósito. Neste âmbito, pode dizer-se que já foi uma pequena vitória.
Para mim, é muito complicado compreender a circuncisão nos dois sexos como imposição religiosa, ou a base que sustenta a sua execução. É lógico, que no homem, quando necessária, por uma questão de sanidade, ou disfuncionalidade, (fimose, com anel prepucial muito apertado, podendo provocar estrangulamento) deve ser praticada em condições higiénicas.
A abominação, pela circuncisão masculina, dobrou ao ver dois miudinhos na “enfermaria” de Canjadude, a fazer curativo ao pénis, com a glande e área do sulco coronal, tudo infeccionado devido a uma má prática da circuncisão e, à dilação de tempo que mediou até os familiares decidirem, com tibieza, que as crianças precisavam de ser observadas e tratadas. Uma das crianças aparentava já não ter glande peniana, confundia-se glande com coroa peniana. Por aquilo que vi, fiquei sem saber se foi no acto da circuncisão, em que um auxiliar distende o prepúcio com uma das mãos, num sentido, retraindo a glande com a outra mão, no sentido oposto, com o pénis apoiado num cepo (base de encosto) para decepar o prepúcio com objecto cortante. Não sei se terá sido ao executar a acção de eliminar o prepúcio, que terá falhado a orientação do cutelo rumo à direcção do objectivo e, mutilaram acidentalmente parte da glande, ou se foi devido à evolução da infecção, que já estava em estado avançado, pois mais parecia que ia tudo gangrenar, porque os familiares só recorreram à enfermaria em último caso e com desconfiança. O que esta criança padecia/ceu, pois até urinar se tornava suplício …
Foto 8 - Preparação dum bebé para ser Fanado.
Foto 9 - Meninas de Canjadude a serem preparadas (perliminares) para o Fanado.
Ora, se eu era um inconformado e execrava a circuncisão masculina da maneira e razão pela qual era feita, muito mais me repugnava o acto da excisão do clitóris e dos pequenos lábios vaginais, nas meninas, ou seja a Mutilação Genital Feminina. Acção horrenda, impossibilitando e negando à mulher o direito ao prazer sexual, além de todos os inconvenientes para a saúde mental e física, assim como ficam sequelas, durante a vida, geradoras de graves problemas nefastos para a função da maternidade. Ainda que na mulher, a região púbica seja pouco ramificada por terminações nervosas, mutilar sem anestesia e anti-sépcia, e sabe-se lá com que tipo de objecto cortante, deve ser horripilante para a criança o feito que a fanateca executa ao fanar os órgãos do corpo da infeliz fanada. (nos partos quando a dilatação não é suficiente e há perigo de rasgar a abertura vaginal, o mais provável é que o médico, para controlar e orientar o rasgo, se antecipe e dê um corte a frio, (episiotomia) na zona do períneo e, é depois provável, que a sutura do corte até seja feita sem anestesia, atendendo à particularidade de insensibilidade da região púbica da mulher).
A MGF é uma prática execrável, e é lamentável que os Portugueses, nos séculos que estiveram à frente dos destinos da Guiné, nunca tivessem tido a preocupação, para ir minimizando a barbárie, que é, a prática da execução da Mutilação Genital Feminina.
Foto 10 - Rapazes de Canjadude calçados a caminhar na Tabanca rumo ao Aquartelamento para serem Fanados.
Foto 11 - O Sr. Capitão Costeira, como anfitrião, a receber e a cumprimentar à entrada da porta do Aquartelamento, os rapazes que se dirigiam para o local onde iam ser Fanados, a quem desejava felicidades.
Pelos relatos e descrição que me foram feitos por nativos de Canjadude, a forma como era efectuada a MGF, era dum barbarismo primário, consumando-se o fanado da pobre criança, na presença das outras meninas do grupo, insurgindo-se estas, negativamente e repudiando a que estava a ser fanada, caso esta chorasse ou tivesse lamentações. No cerimonial as meninas caminhavam descalças.
Nos preparativos que antecediam o acto da circuncisão dos rapazes, posicionavam-se em alinhamento, sendo incentivados por um adulto, a entoar cânticos guerreiros para exorcizar os espíritos malévolos e maus-olhados, assim como serviam, o extasiar dos cânticos, para expulsar o medo e incutir coragem e orgulho aos efebos.
Foto 12 - Rapazes no local onde estavam a ser Fanados, dentro do Aquartelamento, lado direito quando se saía para Nova Lamego, entre as rochas e o abrigo das praças, a entoar hinos guerreiros dirigidos por um adulto. Podem ver-se os biombos e estruturas, instalados pelos Militares. Aqui, os rapazes já estão descalços, em sinal de pureza e humildade para terem contacto com a terra.
Pelo que sei do fanado dos rapazes, estes não assistiam visualmente à circuncisão do companheiro, cada um avançava por sua vez para o local onde era executado o acto, ouvindo-se de seguida gritos lancinantes deste, quando lhe eliminavam o prepúcio. Logo de seguida, ele já fanado, saía do local aos saltos, a rir e a dizer que já era homem. No cerimonial os rapazes caminhavam calçados.
Em Canjadude estavam representadas quase todas as etnias do povo da Guiné, pelos militares da CCAÇ 5, e suas famílias. Cada etnia realizava o fanado nos seus membros em idades distintas. Havia etnias que o executavam logo em bebés e outras só o faziam já em adultos.
Foi insensibilidade dos nossos governantes, ao longo de anos e anos, ignorarem esta prática aberrante, sobre tudo no sexo feminino, sem que nada tenha sido feito para a debelar, quer em termos de educação, sensibilização, ou sanidade, faltou coragem e arrojo, para enfrentar o problema, embora o fármaco fosse difícil de administrar, mas era preciso curar esta tradição anormal e desviante no ser humano, mas nada foi feito, mesmo agora, parecem andar adormecidos os defensores da libertação da mulher! Foi pena…
Um abraço para todos e boa saúde.
José Corceiro
P.S.
Lanço um repto a algum camarada que tenha sido efectivamente Fanado e que com conhecimento de causa, nos possa tecer algum comentário, esclarecedor, sobre o significado das diversas etapas do ritual porque passam, até ser Fanado, referenciando as próprias fotos.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 24 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6641: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (22): José Corceiro, um bom filho, um melhor pai, um avô babado
(**) Vd. poste de 5 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6320: José Corceiro na CCAÇ 5 (10): Dia de Fanado em Canjadude
Vd. último poste da série de 3 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6527: José Corceiro na CCAÇ 5 (12): Canjadude visitada por dois ilustres Generais