terça-feira, 28 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7046: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (22): O Largo do liceu, em Bissau, onde moravam as enfermeiras pára-quedistas (Miguel Pessoa)


1. O nosso Camarada Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav da BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Ref), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 26 de Setembro de 2010:


Camaradas,

Estava eu aqui entretido a espreitar o blogue às tantas da matina e deparo-me com um texto do meu amigo e camarada António Martins de Matos.

Confesso que gostei pois o blogue tem sido para mim como uma boa pescada cozida - por vezes aparecem-me umas tantas espinhas, o que me tira um pouco a vontade de prosseguir...

Assim, na sequência daquele texto - de conteúdo mais ligeiro - lembrei-me de pôr à vossa disposição este escrito que já deve ter pr'aí mais de um ano, mas que não tinha ainda visto oportunidade de encaixar no blogue. Talvez agora...

Afinal talvez sirva para compensar a oportunidade perdida de ter participado naquela guerra do António...

O LARGO DO LICEU
Atendendo às circunstâncias, o largo do Liceu, em Bissau, era um local razoavelmente agradável para se viver. Não vou referir que era soalheiro pois seria um termo redundante para aquele território. Também não era muito fácil de confirmar isso, que os horários apertados da Base afastavam o pessoal daquela zona durante praticamente todo o dia.


Depois do serviço, infelizmente para as enfermeiras pára-quedistas, que ali moravam, uns tantos malandrins da BA12 demandavam o local para ali sacar um jantar ou garantir um bate-papo ao serão, que os fizesse esquecer o dia seguinte. Verdade seja que muitas vezes carregavam para ali as encomendas que recebiam, vindas da metrópole, que partilhavam com todos os presentes.


Habitava na vizinhança outro pessoal da unidade, algum vivendo com as respectivas famílias, por isso também era habitual que a miudagem do grupo circulasse pela casa com alguma frequência. Na prática, o refúgio das enfermeiras pára-quedistas não lhes garantia na maior parte dos dias o descanso de que precisariam.


À noite, depois do jantar, o pessoal na casa e alguns vizinhos vinham sentar-se no "muro das lamentações", que delimitava o prédio, onde se entretinham a beber um digestivo e a dizer mal da vida (tudo relativo, que sabíamos haver gente a viver um dia-a-dia bastante pior...).


No local existia um candeeiro que iluminava razoavelmente o local, embora com o inconveniente de chamar os mosquitos, os quais acabavam naturalmente por procurar a carne fresca ali abancada.


Por isso, normalmente tínhamos a iniciativa de ir à base do candeeiro desactivar o fusível, apagando a luz, o que reduzia os assaltos dos mosquitos. Depois de o piquete da electricidade se ter deslocado várias vezes ao local para reparar a avaria, decidiu aquele fazer uma ligação directa ao candeeiro, o que nos tirou a possibilidade de desligar a luz. Novas tentativas foram feitas pelos utilizadores do muro, com recurso a um deles, mais habilitado ao alpinismo. Assim, desatarrachou-se a lâmpada e, mais tarde, face à insistência do piquete em mostrar trabalho, até a lâmpada desapareceu. Mas logo foi reposta...


Uma noite, incomodado pelos mosquitos, um dos presentes resolveu pegar numa pedra e atirá-la à lâmpada, partindo-a. Empenhado, o piquete substituiu de imediato a lâmpada e o serão, na noite seguinte, voltou a ser bem iluminado - e também infestado de mosquitos. Igualmente empenhado em resolver este problema, alguém do grupo resolver tomar uma atitude ainda mais radical: pegou na sua pistola, dirigiu-se ao candeeiro e enfiou um tiro na lâmpada.


Sucedeu aqui uma coisa interessante, que foi o facto de a lâmpada, mesmo partida, continuar acesa - o que era fisicamente improvável, pois o vácuo já não existia na dita cuja. Até hoje ainda não compreendi bem a que se deveu tal facto; se à qualidade da lâmpada, que resistia a tudo e todos, se à qualidade do digestivo, que nos punha a ver coisas que afinal não existiam...


Um abraço,
Miguel Pessoa
Ten Pilav da BA 12 (1972/74)
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série de 2 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6920: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (21): Não posso levar a mal... por me/nos tratarem tão carinhosamente (Rosa Serra)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7045: Notas de leitura (151): Manual Político do PAIGC (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Setembro de 2010:

Queridos amigos,
Este manual é uma referência histórica incontornável, impressiona ver um partido que vivia na dependência exclusiva de um líder de craveira excepcional.
A sua leitura permite fazer o balanço entre o sonho realizável e a utopia, entre a grandeza e vulnerabilidade do PAIGC.

Um abraço do
Mário


Manual Político do PAIGC

Beja Santos

Foi publicado em 1972 e apresentava-se como “um instrumento capaz de aumentar a compreensão de cada militante pelos problemas da nossa vida e da nossa luta e de contribuir para a consolidação da sua consciência revolucionária”. Quem sentisse dificuldades na compreensão destas matérias devia pedir esclarecimento aos principais dirigentes do partido. O primeiro público do manual político era ferramenta de grande utilidade para os comissários políticos. No essencial as 24 perguntas e respostas do manual baseiam-se em intervenções de Amílcar Cabral. Lido à distância destas décadas, temos aqui registo do pensamento de Cabral, dos seus sonhos, mas também das tensões insaráveis que atravessaram a ideologia e a acção do PAIGC. Pela riqueza das suas considerações, tem a maior pertinência fazer o registo das propostas doutrinais e do pensamento visionário de Cabral.

Primeiro, a justificação da luta, o terreno em que ela se afirma, quem e como deve embarcar na viagem da libertação. A noção de partido sobrepõe-se à de movimento de libertação nacional, para triunfar era importante dispor-se de um partido coeso, da direcção às bases. Como se escreve: “É a direcção do Partido que comanda verdadeiramente as coisas e, a cada nível, há uma direcção estreitamente ligada ao nível superior. Evidentemente, até à base as ordens devem ser respeitadas, após a sua discussão na disciplina”. Temos pois o PAIGC como partido condutor, ciente da sua proposta revolucionária e conhecedor dos inimigos internos, aqueles que se prestaram a colaborar com os colonialistas portugueses. É uma parte da pequena burguesia quem deve conduzir a linha revolucionária, tendo em conta a realidade específica da Guiné. É a pequena burguesia quem se constitui na vanguarda do proletariado. Cabral alerta: “A pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de se suicidar como classe, para ressuscitar como trabalhador revolucionário, inteiramente identificada com as aspirações mais profundas do povo”. A luta de libertação passa por libertar as forças produtivas e pô-las em movimento ao serviço do povo. Marcará o fim do tribalismo e das chefias tradicionais. Esta luta de libertação poderá demorar vários anos mas o desfecho, diz Cabral, é inevitável: “No momento em que os portugueses forem levados a um ponto em que queiram regressar à política para respeitar os nossos direitos, estaremos no fim da guerra”.

Segundo, a questão da unidade entre a Guiné e Cabo Verde e a solidariedade com os outros povos africanos. Homem de cultura superior, Cabral sabia perfeitamente que não existia qualquer vínculo fatalista, inescapável, para poder declarar, em consciência, que havia uma realidade histórica indispensável entre a Guiné e Cabo Verde. Argumentou sempre que era a resposta indispensável para quebrar o imperialismo, que a independência de um território obrigava automaticamente a libertação do outro, que o PAIGC tinha sido criado por guineenses e cabo-verdianos e que à volta desse embrião a luta se consolidou, incessante, dando lógica à construção da unidade do povo em volta do partido. Chegou a argumentar com meias verdades e até argumentos sofismados. Dizer que as ilhas de Cabo Verde foram povoados por escravos levados até lá pelos portugueses, é dizer a verdade histórica e o seu oposto. E declarou, peremptório: “É imperioso evitar que os portugueses explorem a separação que há entre a Guiné e Cabo Verde, para nos lançar uns contra os outros. De facto, começamos a luta em conjunto, no seio de um mesmo partido”.

Por aqui se vê a fragilidade argumentativa de alguém, que a título excepcional, teve que encontrar motivos emocionais para substituir as razões históricas. Explica a política de formação de quadros do partido com base num princípio de assimilação crítica, usando do pragmatismo sem esquecer o que foi deixado pelo colonialismo. O PAIGC aceita a ajuda de todos mas não admite condições à ajuda que recebe. O PAIGC tem como tarefa fundamental libertar o país mas é igualmente sua tarefa prioritária estar ao lado de todos aqueles que combatem o racismo, o colonialismo e o apartheid, o tribalismo.

Terceiro, o manual do PAIGC, pela voz de Amílcar Cabral, procura dar resposta às razões da luta revolucionária e do porquê da fragilidade portuguesa. Professa que a violência é exclusivamente utilizada para responder à violência colonial. Com a independência pôr-se-á termo à luta armada. Se o Portugal economicamente atrasado mantém uma guerra em três frentes é porque está a ser auxiliado pelos interesses do colonialismo e do apartheid, quem fornece as armas a Portugal são os membros da NATO. Mas adverte que Portugal não tem condições para praticar o neo-colonialismo, está profundamente dependente das multinacionais, enumera exaustivamente as riquezas portuguesas nas mãos de capital estrangeiro, desde as indústrias extractivas, passando pelos transportes e comunicações, siderurgia, cimentos, derivado de petróleo, petroquímica, exportação de cortiça, refinação de açúcar, lacticínios e tabacos, entre outros. Defende a lógica anti-imperialista dos países socialistas e diz mesmo que a União Soviética pôs termos às colónias, a partir de 1917.

Quarto, Trata-se de um manual cheio de sonhos. Como num hino de esperança, Cabral faz balanço perspectivas do desenvolvimento e refere concretamente a mancarra, o óleo de palma, as madeiras, a borracha, a pecuária, o arroz, entre outras. Fará o mesmo com Cabo Verde, apela às economias inteligentemente orientadas com base para o progresso económico futuro da Guiné e de Cabo Verde. Ou foi um grande sonho, irrealizável, ou os seus sucessores não estiveram à altura da missão. Depois fala de táctica para a guerrilha do PAIGC e o modo como os combatentes dissuadiram as sucessivas estratégias do colonialismo português. Por último, alude à importância que é conferida às organizações nacionalistas das colónias portuguesas, deixando bem claro o papel desempenhado por ele próprio na ofensiva diplomática à escala mundial.

Há, pois, todas as razões, para ler o pensamento político de Cabral levado às células políticas do PAIGC. Estão ali as aspirações e os falhanços. A ideologia poderosa e a fragilidade dissimulada. Este manual é o espelho da vontade e da determinação de um líder ímpar que moveu o povo guineense para a sua libertação.

Onde foi bem sucedido e onde fracassou é ainda hoje motivo de reflexão na Guiné, em Cabo Verde e em Portugal, sobretudo.

As imagens que se juntam têm a ver com a edição do manual político em 1972 incluindo uma fotografia de Amílcar Cabral rodeado de combatentes e a edição portuguesa (Edições Maria da Fonte, Julho de 1974).
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7040: Notas de leitura (150): A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, de António Duarte Silva (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7044: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (4): Olhar fatal

1. Mensagem José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 23 de Setembro de 2010:

Caros Camaradas
Para inserir na série "Outras memórias da minha guerra", junto a história
"Olhar Fatal".

Com um abraço do
Silva da Cart 1689



Outras memórias da minha guerra (4)

Olhar fatal

Foi na tarde do dia 10 de Junho de 1967, a norte de Banjara, na região do OIO, uma das zonas da Guiné mais controladas pelo o PAIGC. Ainda mal recompostos do baptismo de fogo, do qual se extraiu a maior lição de todos os ensinamentos militares, estávamos em progressão lenta e muito cuidada mais para norte, rumo ao objectivo definido, com nome operacional “Inquietar”.

Mesmo serpenteando, não chegámos a andar 1 quilómetro sem novo combate. O IN já nos esperava em Cambaju e tentou travar-nos com forte tiroteio. Felizmente, a nossa Cart 1689 havia feito uma curva para a direita, o que nos proporcionou uma boa frente de fogo contra o IN, que nos atacou do lado esquerdo. Desta forma, grande parte da nossa Companhia podia fazer fogo.

De repente, avistaram-se, a uns 40 metros de distância, entrecortados pelos pequenos arbustos, vários indivíduos a correr da direita para a esquerda, fugindo do núcleo mais intenso de fogo. Foi nesse momento que surgiu a oportunidade para os 3.º e 4.º Pelotões (por ordem de posição na coluna) participarem melhor no combate.

O Furriel Simões, que era um militar bem preparado, não disparava de rajada. Tinha um controlo eficiente sobre os disparos, por forma a rentabilizar bem as munições. Deitado, com o cotovelo esquerdo bem apoiado, apontava a arma para onde desejava. Viu uma cabeça que subia e descia repentinamente e repetidas vezes. Prontamente disparou com precisão. Talvez, porque coincidia o disparo com o movimento de descer da cabeça, o Simões não acertou à primeira nem à segunda. Pensou que, segundo o que havia aprendido sobre a trajectória da bala, esta tem tendência a subir em relação ao alvo apontado. O tempo passava, o fogo continuava e a máxima da guerra “quem não mata, morre” era uma pressão permanente. Então, respirou fundo, fez de novo pontaria e calculou o disparo um pouco mais para baixo. Pareceu ter sido bem sucedido.

Acabado o tiroteio, avançámos para ver os possíveis “troféus” e o Simões foi directamente para o local onde estava o indivíduo que o obrigara a tanta pontaria. Ao ver que, afinal, era uma cara feminina de traços finos e já idosa, fitou o seu olhar fixo e acusador, que já o esperava. Ainda mexia os lábios, mas o buraco da bala, no pescoço e o sangue que dele saia não lhe permitiam transmitir aquilo que seria a sua última mensagem. No entanto, o Simões ficou convencido de ter ouvido dizer:

- A mim pude ser mãe di bo.

Chocado, entrou em choro convulso, acompanhado de repetidos lamentos, ao mesmo tempo que interrogava:

- É para isto, que aqui estamos? – Foi para isto que nos prepararam? - É isto defender a Pátria?

E concluía:

- Ai querida mãe, que sou um assassino... um assassino de inocentes!

O Capitão, que esteve sempre próximo e acompanhara a cena, foi o primeiro a agarrar e a confortar o Simões.

Hoje, o Simões, numa apreciação simples ao mundo que nos rodeia, está convicto de que a guerra é o maior absurdo dos humanos; porque não tem lógica, não tem lei nem tem justificação. O mundo dos homens deveria ser um exemplo permanente para todos os seres vivos da Terra, porque está cheio de gente boa, sábia e poderosa capaz de o fazer. Porém, desgraçadamente, anda à mercê de uns tantos Chico-espertos sem escrúpulos, cujo comportamento abusivo se manifesta pela prática das maiores crueldades. E é na guerra que se sente mais a ausência da justiça e a confirmação evidente de que também não há justiça divina.

Sempre que reunimos no encontro anual da nossa Companhia (e não só), falamos das memórias boas e rimo-nos de muitas delas, sobrevalorizamos essa alegria a todas as outras memórias (as que lutamos para esquecer). Então, ninguém fala destas coisas tristes. Todavia, volvidos a casa, regressam as malditas imagens que nos atormentam, desde o sofrimento físico e moral extremo até à morte injusta dos nossos amigos e de outros, que não eram inimigos.

E sempre que o Simões acorda ou desperta de algum período mais descontraído, lá vem aquela imagem da senhora de traços finos, olhos cor de avelã, de pele escura e macia, com o olhar fixo e acusador :

- A mim pude ser mãe di bo.

Neste momento, ele quer adormecer. Já percorreu os canais de TV a fugir das muitas más notícias, já se inteirou das poucas que são boas, mas continua a ver aquela mulher no mesmo local, na mesma posição e com o mesmo olhar fixo que o tem perseguido. Passaram 43 anos, 3 meses e 13 dias.

Silva da Cart 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7004: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (3): A grande lição do baptismo de fogo

Guine 63/74 - P7043: O Nosso Livro de Visitas (101): "O pobre camarada de Crestuma" (José Campos, presidente da Sociedade Filarmónica de Crestuma, Vila Nova de Gaia)

1, Mensagem da Banda de Crestuma, Crestuma, freguesia do concelho de Vila Nova de Gaia, banhada pelo Rio Douro [, foto à esquerda, cortesia de Wikipédia]

De: bandadecrestuma@sapo.pt
Data: 27 Sep 2010
Assunto: Camarada de Crestuma

Exmo Sr. Luís Graça,

O meu nome é José Campos e sou o Presidente da Sociedade Filarmónica de Crestuma, instituição sem fins lucrativos que se dedica ao ensino da música e a manter uma Banda Filarmónica em funcionamento.

Estou a recolher elementos sobre os "desconhecidos" de Crestuma para elaborar um trabalho com vista a apresentar no próximo ano.

Li o seu blog. Gostei. Fiquei no entanto curioso sobre o "pobre camarada de Crestuma" que refere [, no poste P6037] (*):

(...) Quem leva a carta a Garcia
a dizer que a poesia caiu na rua
ou foi apanhada à unha?
Ou que o pombo-correio
foi abatido por um Strela.
Inútil Álvaro de Campos,
inútil Ode Triunfal,
pobre Fernando Pessoa,
menino de sua mãe,
pobre camarada de Crestuma,
morto no tabuleiro da ponte de Caium,
entre Piche e Buruntuma.(...)


Poderá, por obséquio, fornecer maior informação acerca deste seu camarada e meu conterrâneo?

Com os melhores cumprimentos,
José Campos,
http://www.bandafcrestuma.com.sapo.pt


2. Resposta de L.G.:

Meu caro José Campos: Antes de mais, os meus parabéns pela obra que a vossa associação está a realizar em prol do desenvolvimento da cultura musical na sua freguesia... Parabéns pelo vosso sítio na Internet. Parabéns pela bela idade que a vossa banda já atingiu: 90 anos (a celebrar no próximo ano). Sou fâ das bandas filarmónicas das nossas terras (a minha, Lourinhã, tem três: Lourinhã, Atalaia e Moita dos Ferreiros). 

Obrigado pelos seus comentários sobre o nosso blogue. Obrigado pela sua visita (**). E agora seguem as minhas desculpas: lamento se o induzi em erro, a si ou qualquer outro leitor... Há, de facto, um camarada nosso que morreu na guerra do Ultramar, e que era natural dessa freguesia... Mas não foi na Ponte de Caium, na zona leste da Guiné.... Foi em Angola, em 1963...

De facto, não era esse "o pobre camarada de Crestuma" a que se refere o meu poema... Tome essa expressão como uma liberdade poética... Liberdade que têm os poetas mas não os historiógrafos, por exemplo. Se qusier, é uma metáfora, tal como a do pombo correio abatido por um míssil Strela (usado na Guiné a partir de Março de 1973). Enfim, é um poste publicado na série Blogpoesia... O topónimo Crestuma aparece aqui apenas para rimar com Buruntuma...  Não deixa naturalmente de ser também uma homenagem aos muitos camaradas desse concelho (cerca de um centena) que morreram na guerra do ultramar, incluindo na Guiné e na zona leste.

Espero que as gentes de Crestuma não entendem esta liberdade do poeta como uma manifestação, no mínimo,  de mau gosto... A terminar, desejo longa vida à sua banda filarmónica e, a si, os melhores votos de sucesso no desempenho do seu cargo. Disponha sempre. Luís Graça, autor do poste e editor do blogue.
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Notas de L.G.:


Guiné 63/74 - P7042: Recortes de imprensa (31): A guerra do José Martins, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70 (Correio da Manhã)


O nosso Camarada José Marcelino Martins, (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos mais uma mensagem, com data de 25 de Setembro de 2010, para a série “Minha Guerra”:

Comissão: GUINÉ 1968/1970
Unidade: Companhia de Caçadores nº 5 /CTIG
Ramo: Exército
Arma: Infantaria
Especialidade: Transmissões
Posto: Furriel Miliciano

Fez parte de que Batalhão?

Fui mobilizado em rendição individual., isto é, sem ir integrado em qualquer tipo de unidade, já que era destinado à Companhia de Caçadores nº 5, uma unidade da Guarnição Normal do CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné).

Era uma unidade, havia apenas três no exército na Guiné, que era constituída por Oficiais e Sargentos, do Quadro Permanente ou Milicianos, recrutados e mobilizados para o ultramar, em rendição individual.

Também tinha praças metropolitanas, (Cabos e Soldados) de diversas especialidades. Os restantes elementos da companhia eram recrutados na província, começando por serem só atiradores, mas com o correr do tempo foram sendo ministradas outras especialidades, assim como muitos foram recrutados para cursos de sargentos milicianos.

Quando é que chegaram?

Cheguei no dia 2 de Junho de 1968 (embarquei em Lisboa em 28 de Maio) a bordo do NM Alenquer que, alem de duas tripulações (4 marinheiros/cada) de LDP (Lancha de Desembarque Pequena) seguiam mais quatro furriéis do exército. O barco transportava material de guerra e outros materiais para as tropas em serviço na província.

Soube logo para onde ia?

Estava no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 2, em Torres Novas. Tinha sido promovido ao posto de 1º Cabo Miliciano, com a especialidade de Transmissões de Infantaria, no dia 18 de Abril de 1968. Fui informado da mobilização, teatro de operações e unidade de destino, perto do final desse mês, iniciando os 10 dias de licença NNAPU (Norma de Nomeação e Apoio às Províncias Ultramarinas).

A minha mobilização foi, como a de quase todos os combatentes, efectuados ao abrigo da alínea c) do art.º 3º de Decreto nº 42.937 de 22 de Abril de 1960.

O que sentiu quando chegou?

A par da preocupação da chegada a um teatro de guerra, havia a expectativa de tomar contacto com realidades, até aí desconhecidas.

A “ida para a guerra” já era como que uma certeza, já que se desenrolava desde 1961 e, contrariamente ao que o Regime pretendia deixar transparecer que era “um assunto já resolvido”, o que a realidade desmentia uma vez que se procedia à “formação de mais soldados” para aumentar a presença militar nos teatros de operações.

No ano de 1961, tinha eu 14/15 anos, foi um “ano beligerante”.

Em 22 de Janeiro é desencadeada a Operação Dulcineia, pelo Capitão Henrique Galvão, contra o paquete Santa Maria, onde perde a vida um oficial – João José do Nascimento Costa – quando se opôs aos assaltantes. Como tinha pertencido à Mocidade Portuguesa, como a maioria dos estudantes, o regime elevou-o às maiores honras, apresentando-o como herói nacional e modelo a seguir.

A 4 de Fevereiro desse mesmo ano, inicia-se o terrorismo em Angola, para outros Luta de Libertação, com o assalto às prisões que, nos anos seguintes, se estenderá a outras províncias ultramarinas.

No dia 18 de Dezembro, na Índia Portuguesa, consuma-se a invasão, por parte da União Indiana, dos territórios portugueses de Goa, Damão e Diu (em 1954 Portugal já tinha perdido os territórios de Dadrá e Nagar-Haveli). A força atacante composta por cerca de 45.000 elementos e tendo, para uma segunda vaga, um número ainda maior encontra, para fazer face à invasão, uma força portuguesa, mal armada e desmoralizada que, praticamente, se rendeu sem dar um tiro; entre 2.500 a 3.000 homens, que foram feitos prisioneiros. Foi nessa altura que se deu o último combate naval da nossa história, com a Lança Vega foi atacada e afundada em combate, com a morte da maioria da tripulação.

No final do ano, precisamente no último dia, é tentado um assalto ao Quartel de Infantaria nº 3, em Beja, dirigido pelo Capitão Varela Gomes, onde, na madrugada seguinte encontraria a morte o Subsecretario de Estado do Exercito, Tenente coronel Jaime Filipe da Fonseca, quando tentava entrar no quartel.

Quando cheguei à Guiné em 1968, com seis anos de guerra já decorridos, havia a expectativa de, no terreno, “viver” o que já me tinha sido relatado, apesar de muito pouco explícito, como eu próprio o faria ao regressar, como “defesa e tentativa de esquecer” esse passado recente e, “sempre presente”.

Como foram os primeiros tempos?

Para mim como para todos, mas todos, apesar de “muitos” quererem mostrar o contrário, estávamos numa terra que, apesar de a “sentir-mos como Portugal”, não era o nosso cantinho, na nossa cidade ou na nossa aldeia.

Numa unidade africana, como a minha, o número de metropolitanos era reduzido (seriamos no máximo 50 europeus). Também a rotação do pessoal era frequente, o que poderia ser, ou originar, um sentimento de “não integração”, dada a alteração ser cíclica, com a partida de camaradas e a chegada de novos, até que chega a nossa vez.

O clima era outra vicissitude, que provocava alterações “sensíveis” no nosso próprio comportamento, provocando alterações físicas e psicológicas.

O próprio ambiente de expectativa, em relação ao “minuto seguinte”, originava uma alteração comportamental que, ainda hoje, muitos de nós só lavem um ouvido ou um olho da cada vez, para que tenhamos os sentidos alertas e disponíveis.

A unidade, para a qual fui enviado, tinha a sede e o comando em Nova Lamego (actual Gabu) e os grupos de combate a guarnecer os destacamentos de Canjadude, Cabuca e Ché-che, todos na Zona Leste.

O meu primeiro contacto com as operações deu-se, ainda no mês de Junho de 1968, quando fui enviado para visitar os destacamentos da companhia instalados em Canjadude e Che-che, aproveitando a coluna que iria retirar as nossas tropas do destacamento de Béli e coloca-las em Madina do Boé (evacuada, posteriormente, em Fevereiro de 1969).

Ao longo do percurso viam-se viaturas destruídas por minas, seguidas de incêndio, as crateras abertas pelas mesmas minas, o ouvir o rebentamento das bombas lançadas pelos aviões tentando “limpar” os possíveis locais de esconderijo das forças adversas, o novo tipo de refeições (as celebres rações de combate) e a sede, fundamentalmente a sede.

Quando voltou?

Deixei o destacamento de Canjadude, para onde fora destacada a Companhia em Agosto de 1968, no dia 28 de Maio de 1970, exactamente dois anos após ter largado do Tejo. Passei por Nova Lamego, “arranjei” transporte numa avioneta militar para Bissau e, aqui, foi a corrida para encontrar transporte rápido para a metrópole. O “Rita Maria”, um barco de passageiros civil em que regressei, partiu de Bissau em 2 de Junho de 1970, tendo passado pelo arquipélago de Cabo Verde, aportado em Lisboa no dia 10 desse mesmo mês. Já lá vão 40 anos!

Qual foi o dia mais marcante? E porquê?

O dia 6 de Fevereiro de 1969. Nesse dia deu-se um dos maiores desastres da guerra do ultramar: o desastre do Che-che, em que morreram afogados 47 homens.

Acresce que, além do drama que envolveu este acidente, onde centenas de homens participaram, directamente e no terreno, na “Operação Mabecos Bravios” que retirou de Madina do Boé a Companhia de Caçadores nº 1790, que tinha assumido a responsabilidade daquele subsector em Janeiro de 1968, fui incumbido de recolher, junto dos comandantes das unidades envolvidas, o nome e a patente dos homens que tinham desaparecido, para sempre, nas águas do Rio Corubal. De posse da listagem, já transcrita para o impresso de mensagem, assinado pelo comandante da unidade e enviada para os escalões superiores, (Batalhão – Quartel General – Comando Chefe) foi altura de começar a receber, por parte de muitos militares, o pedido para que enviasse às suas famílias telegramas, através do sistema rádio militar, informando-os que se encontravam bem. Era assim. Mesmo em guerra, e talvez por isso, os militares nunca esqueciam a família.

O que lhe lembra a guerra?

Lembra algo que não devia existir, mas que, infelizmente existe desde o nascer dos tempos. Portugal sempre foi um “país em armas” desde a sua nacionalidade. No espaço de um século, Portugal enfrentou três guerras, de alguma dimensão, e outras que a história registou, mas a que não deu grande relevo. Muitas famílias estiveram presentes nessas guerras, incluindo a minha.

O meu avô materno esteve em Moçambique nas Campanhas de Ocupação, para onde embarcou em 5 de Julho de 1899, regressando em 24 de Junho de 1900. Em 1916 foi mobilizado, como 2º Sargento do Quadro Permanente, para o Batalhão do Regimento de Infantaria nº 7 (Leiria) afim de integrar o Corpo Expedicionário Português presente na I Grande Guerra, embarcando para França em 19 de Janeiro de 1917. Regressou, chegando a Lisboa em 23 de Julho de 1917, vítima do gás lançado sobre as trincheiras. Foi evacuado, após ter permanecido em hospital de campanha, tendo sido dado como incapaz para o serviço militar, pela junta médica militar a que foi submetido à chegada.

Nessa mesma unidade, Batalhão do RI 7, estava integrado um tio paterno que cumpriu todo o tempo que as tropas portuguesas estiveram em França, tendo participado no desfile da Vitória. Foi repatriado, como se dizia na época, em 31 de Julho de 1919. Em 1961, residindo em Angola, pegou em armas para defender os seus haveres e, um ano depois, era o primeiro comandante das Milícias de São Salvador do Congo (A Voz de Domingo, Leiria, de 30 de Maio de 1971, pagina 7).

Em 1968 foi a minha vez! Fui a terceira geração em armas.

Fazem-se irmãos?

Na guerra não se fazem irmãos, fazem-se camaradas: “Camarada não é bem irmão, amigo, companheiro, cúmplice… é uma mistura disto tudo com raiva, esperança, desespero, medo, alegria, revolta, coragem, indignação e espanto, é uma mistura disto tudo com lágrimas escondidas” (António Lobo Antunes, 2007).

Eu entrego nas tuas mãos a minha vida, enquanto recebo, nas minhas mãos, a tua vida. E “vida” é tudo. È a vida, é a amizade, é a camaradagem, é, se necessário, o morrer para que tu vivas. É um laço tão forte que, dezenas de anos depois, ainda somos os mesmos “miúdos” que fizeram a guerra. Parece que a vida parou e, entre a nossa despedida e o nosso reencontro, nada passou. E é curioso! O sentimento que liga os combatentes é tão forte, que consideramos que os “Filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são”.

Esteve debaixo de fogo?

Por duas vezes, durante a operação “Lacoste” em 27 e 28 de Junho de 1969, por coincidência um ano após a minha partida de Lisboa, em que houve contacto com o inimigo, nos dois dias. Felizmente não houve baixas (feridos e/ou mortos), mas houve “autênticos” milagres:

Uma granada de RPG embateu num monte de baga-baga, monte com muita resistência formado pelas formigas, resvalando para junto das nossas tropas e acabando, por não explodir.

Um Alferes, o Gomes, quando regressou dessa operação retirou um estilhaço de granada de dentro de um dos carregadores de reserva da G3. Se não fosse o equipamento que trazia à cintura. Sem esta “protecção improvisada por Alguém”, as coisas teriam sido diferentes. Não lhe pôs fim à vida, por milagre.

A guerra marca para sempre?

A guerra, e tudo o que representa e tudo o que passamos, fica colada à nossa pele, e para sempre. É algo que nunca conseguiremos esquecer, e que se transmite, pelo nosso comportamento muitas vezes incontrolado, a quem connosco priva, quer familiar quer profissionalmente.

Marca quem esteve em teatro de operações e quem não esteve, mantendo-se na “retaguarda”, ansiando por noticias e tremendo quando “alguém batia à porta” a horas inesperadas.

Marca pela ausência e marca pela presença. Pela ausência em muitos momentos únicos, quer de alegria quer de dor, junto da família o dos amigos; pela presença junto de situações indesejadas mas normais numa guerra, assistindo àquilo que julgávamos impossível de existir.

Marca pela partida e marca pelo regresso.

E marca, mas marca muito fundo, quando se sente a incompreensão de tudo aquilo que “fomos obrigados a fazer e a viver”. Quando se ouve, os que estiveram ausentes daquelas situações, falar da guerra e da paz, sabemos que:

“Nenhuma voz é mais qualificada para defender a paz do que a dos homens que combateram na guerra”

Lema da FMAC – Federação Mundial dos Antigos Combatentes,

Organização internacional, não governamental, que reúne mais de 150 associações de antigos combatentes e vítimas de guerra de 88 países.

Nota Biográfica:

Nascido em Leiria a 5 de Setembro de 1946, frequentei o Jardim-escola João de Deus e a escola Primária de Santo Estêvão, em Leiria e, depois, na Marinha Grande e Vila Nova de Gaia.

Iniciei a minha actividade profissional aos 16 anos, como empregado de escritório, enquanto continuava a frequentar o Curso Geral do Comercio, que conclui já no serviço militar.

Recrutado, fui integrado no Contingente Geral, fazendo a Instrução Básica e a Especialidade de Teleimpressor. Por ter terminado o curso comercial, fui mandado apresentar no CISMI (Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria) em Tavira, sendo colocado no GACA 2 (Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 2) em Torres Novas, onde fui mobilizado.

Regressado do Ultramar, retomei a minha actividade profissional, passando durante sete anos por uma instituição bancária.

Adquirida a habilitação para a inscrição na Direcção Geral das Contribuições e Impostos, passei a exercer a função de Técnico Oficial de Contas, profissão que ainda desempenho.

Sou casado, há 39 anos, com a Maria Manuela, três filhos – Susana (38 anos), Tiago (34 anos) e Diogo (31 anos) – e netos David (14 anos), Duarte (num futuro próximo) e Gonçalo (15 anos, por laços de amizade recíproca).

Como hobby tenho o estudo/pesquisa e divulgação da História de Portugal, mormente desde 1890 até 1974, com especial incidência na área militar e africana.

José Marcelino Martins
Fur Mil Trms da CCAÇ 5

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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

25 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7037: Recortes de imprensa (30): A guerra do José Corceiro, CCAÇ 5, Canjadude, 1969/71 (Correio da Manhã)

Guiné 63/74 - P7041: Parabéns a você (155): Luís Filipe de Magalhães Borrega, ex-Fur Mil da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche, 1970/72 (Tertúlia e Editores)

1. Conforme os nossos usos e costumes, estamos aqui hoje, dia 27 de Setembro de 2010, a festejar o aniversário do nosso camarada Luís Borrega que foi Fur Mil Cav e MA da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche, 1970/72.

Caro Luís, são nossos votos que mantenhas uma vida com qualidade, sentindo-te tão útil quanto possível à família e à sociedade em que te inseres.

Que passes um dia cheio de alegria junto dos que te são mais queridos. Na hora dos festejos lembra-te destes camaradas e amigos que se associam à tua alegria.



Pela Tertúlia e pelos Editores
CV

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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5017: Parabéns a você (28): Luís Borrega, ex-Fur Mil da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche, 1970/72 (Os Editores)

Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2010 Guiné 63/74 - P7017: Parabéns a você (154): O veterano Coutinho e Lima, Cor Art Ref, Gadamael (1963/65), Bissau (1968/70), COP 5 (1972/73)

domingo, 26 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7040: Notas de leitura (150): A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, de António Duarte Silva (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Setembro de 2010:

Queridos amigos,
Junto o que faltava quanto à recensão do importante livro de António E. Duarte Silva.
Escrito por investigadores portugueses, não conheço nada de mais profundo nem mais rigoroso instrumento de análise.

Um abraço do
Mário


A independência da Guiné-Bissau e a descolonização portuguesa (2)

Beja Santos

A Guiné depois do 25 de Abril: o processo jurídico-político da descolonização

O processo de independência da Guiné-Bissau definiu os termos e os limites da descolonização portuguesa, foi o seu factor decisivo e o paradigma da formação dos novos Estados do PALOP. Esta tese aparece claramente desenvolvida no livro “A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa”, um incontornável estudo que adopta uma perspectiva multidisciplinar e de que é autor António E. Duarte Silva (Edições Afrontamento, 1997).

Este investigador não se compraz com a vertente política e jurídica, fá-la cruzar com as perspectivas históricas e sociais, entrosando-as com o desenvolvimento do nacionalismo guineense. Daí resulta um conjunto de olhares de grande angular, permitindo ler os porquês da formação da Guiné-Bissau, o seu modo e consequências. Vejamos abreviadamente o que nos permite a leitura do trabalho de António Duarte Silva.

Logo em 1961, quando Amílcar Cabral previu que o Governo de Salazar iria recusar conversações para a independência, escreveu: “Estamos seguros de que a liquidação do colonialismo português arrastará a destruição do fascismo em Portugal”. Nesse ano de 1961 a oposição ainda privilegiava a democratização, não punha frontalmente em causa o império colonial. A mudança virá sobretudo em 1964 quando o PCP passou a defender “o exercício pelos povos das colónias portuguesas do direito à auto-determinação”. Nessa época coincidiram os EUA e a URSS: descolonizar era fundamental. Não cabe aqui recapitular tudo quanto aconteceu entre 1961 e 1974, no campo da guerra colonial. “O problema do Ultramar” entrara, a partir de 1973, numa irreversível quadratura do círculo, com o triunfo do MFA, com a própria postura das Forças Armadas nos três teatros de operações, com o conjunto de exigências manifestadas pelo PAIGC, era impossível embarcar numa qualquer tentativa federalista, perdera-se tempo de mais para conjecturar processos democráticos ocidentais para a auto-determinação e referendos. A atmosfera internacional era igualmente inequívoca: a ONU reclamava a Portugal a aplicação dos princípios e resoluções referentes à auto-determinação e independência dos povos coloniais. E assim aconteceu.

O autor descreve detalhadamente o que aconteceu depois do 25 de Abril em Bissau e um pouco por toda a Guiné, a adesão popular ao fim das hostilidades, os comícios de apoio ao PAIGC, as sucessivas reuniões entre as novas autoridades e o movimento de libertação: Dakar, Londres, Argel. As propostas de Spínola, uma a uma, caíam por terra, ele foi obrigado a proceder à declaração de que Portugal ia negociar com os movimentos de independência. O acordo de Argel marcou o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau e consequente transferência de administração. Em 19 de Outubro de 1974 a direcção do PAIGC entrou oficialmente em Bissau. Uma multidão compacta enchia a antiga Praça do Império e aclamava Nino, Luís Cabral e Aristides Pereira. Chega o momento de apreciar os meandros políticos e jurídicos do novo Estado. Sem querer repetir o que aparecerá desenvolvido no seu livro “Invenção e Construção da Guiné-Bissau” (Edições Almedina 2010), apercebe-se que a Constituição do Boé legitima um partido único que comanda a todos níveis um estado soberano. Importa relevar que a Guiné-Bissau é, quanto aos modos de formação do Estado, um Estado criado por descolonização graças a uma declaração unilateral de independência. Encontra legitimidade no direito à auto-determinação consagrado pela ONU e enquadra-se, a todos os níveis naquilo que foi a contestação colonial, a partir dos anos 50. Foi no uso desta argumentação e na demolição das teses do Governo de Salazar, mostrando aos observadores internacionais o controlo de largas parcelas do território que Cabral se impôs como nome sonante na arena internacional. Acresce que há um dado histórico que hoje se pode ver à lupa com absoluta nitidez: Cabral, além de impulsionador do PAIGC, foi um dos obreiros do MPLA e liderou claramente o movimento anti-colonial, de língua portuguesa.

Condicionou a independência da Guiné à das outras colónias. É, pois, legítimo dizer que o processo independentista da Guiné-Bissau se constituiu como uma locomotiva de toda a descolonização. Vale igualmente a pena acompanhar a vasta documentação brandida pelo autor relativa à formação do Estado, que permite uma leitura inequívoca sobre os termos do reconhecimento da Guiné-Bissau, um caso paradigmático de um país que começou por ter uma causa, consolidar um movimento político, encontrar um líder de craveira excepcional, dotar-se de um exército destemido e respeitado, assenhorear-se de largas parcelas do território, dotando-o de vida própria, fazer aprovar uma constituição, ver-se reconhecido na cena internacional e, na consonância deste procedimento, ter contribuído para a falência do regime colonizador.

É nestes termos que o autor desvela todo o processo de independência da Guiné-Bissau como o factor dominante que levou a escancarar as portas à descolonização, entre 1974 e 1975.

É um documento de trabalho imprescindível, pelo que se sugere que António E. Duarte Silva combine harmoniosamente o que escreveu em 1997 com o seu trabalho recentemente publicado este ano. Na actualidade, e numa perspectiva externa à Guiné-Bissau, nada há de mais profundo e objectivo, no campo das investigações sociais, políticas e jurídicas, em simultâneo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7031: Notas de leitura (149): A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, de António Duarte Silva (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7039: Álbum fotográfico de Jacinto Cristina, o padeiro da Ponte Caium, 3º Gr Comb da CCAÇ 3546, 1972/74 (3): De facto, Eduardo, nem só de pão vive o homem...

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1. Estive ontem com o Jacinto, a sua esposa Maria Goretti, a sua filha Cristina, o seu genro Rui Silva e a sua neta...numa tarde agradabilíssima, partilhando memórias e emoções... O dia acabou com um arroz de lebre que poria a salivar, senão um regimento, pelo menos o estado-maior...


Tenho cada vez mais admiração por este homem, o Cristina (como era conhecido na sua companhia, a CCAÇ 3546) que foi para a Guiné, casado, pai de uma filha de três anos, e que mal sabia ler e escrever... Que a vida foi-lhe madrasta e a sua meninice acabou cedo: aos onze anos já trabalhava no duro, para o "pai e patrão"  (ainda vivo, com 89 anos)...

Foi a Goretti que foi a sua professora, em casa e no monte, no meio do gado que ele guardava, ainda antes do tempo da recruta (que ele fez em Viseu, no RI 14, vd. foto ao lado, à direita), ensinando-lhe as letras suficientes para ele ler os aerogramas e as cartas, sofridas e apaixonadas, que ela lhe mandaria depois, de Figueira de Cavaleiros,  para o Ultramar (para onde quer que ele fosse, Angola, Guiné  ou Moçambique), e para de volta ele lhe contar,  a ela (e só a ela),  os seus segredos e sofrimentos, sem necessidade de partilhar a sua vida íntima com mais ninguém (e nomeadamente os camaradas que tinham andado da escola)... 

É uma grande lição de amor!!! E foi a mesma Goretti, a Maria Goretti, quem o incentivou, dez anos depois de regressar da Guiné, a meter-se no negócio do pão: afinal, ele tinha sido o melhor padeiro do leste... Por que é que não haveria de  montar a sua empresa, em vez de andar à jorna ?!

Continuação da  publicação do álbum  fotográfico de Jacinto Cristina (Sold At Inf, CCAÇ 3546, 1972/74) (*).











Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Ponte Caium > Dois monumentos de homeagem aos bravos de Caium, construídos presumivelmente em 1975: (i) Memorial aos mortos da CCAÇ 3546 (1972/74): "Honra e Glória: Fur Mil Cardoso, 1º Cabo Torrão, Sold Gonçalves, Fernandes, Santos, Sold AP Dani Silva. 3º Gr Comb,  Fantasmas e Lestos (?). Guiné- 72/74"; (ii) "Nem só de pão vive o home. Guiné, 1972-1974".


Recorde-se o trajecto do Jacinto Cristina e dos seus camaradas: 

(i) o Cristina fez a recruta no RI 14, em Viseu, e a especialidade no RI 2, Abrantes; 

(ii) foi mibilizado para a Guiné, como Sold At Inf, da CCAÇ 3546; 

(iii) esta subunidade  pertencia ao BCAÇ 3883, mobilizado pelo RI 2; 

(iv) a CSS estava sediada em Piche; 

(v) o comandante era o Ten Cor Inf Manuel António Dantas; 

(vi)  o comandante da CCAÇ 3546 era o Cap QEO José Carlos Duarte Ferreira; 

(vii) as outras companhias do BCAÇ 3883 era a CCAÇ 3544 (Buruntuma e Piche; teve dois comandantes: Cap Mil Inf Luís Manuel Teixeira Neves de Carvalho; Cap Mil Inf José Carlos Guerra Nunes) e a CCAÇ 3445 (Canquelifá e Piche; comandante, Cap Mil Inf Fernando Peixinho de Cristo);

 (viii) estas quatro subunidades partiram para a Guiné de avião, o comando e a CCS/BCAÇ 3883, em 19/3/1972; a CCAÇ 3544, a 20; a CCAÇ 3545, a 22; e a CCAÇ 3546 a 23; 

(ix) Regressaram a casa, de avião, em Junho de 1974.


Fotos: © Eduardo Campos (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.



O mais espantoso foi que, quando eu cheguei lá a casa, em Figueira de Cavaleiros, por volta das 16h de ontem, sábado, e lhe dei as duas fotos do Eduardo Campos, o Jacinto comentou, logo de rajada:
- Mas é o mê forno!...

Há dois monumentos que se conservam na ponte de Caium, mandados erigir por alguém da CCAÇ 3546 que terá sido empresário na Guiné-Bissau, depois da independência... O Jacinto diz que poderá ser um ex-furriel do 1º Gr Comb. Um desses monumentos é uma simples base de pedra, encimada pelo forno de Caium, que pura e simplesmente terá sido cirurgicamente "removido" e "trasladado" do sítio onde estava originalmente... E nessa pedra pode ler-se a melhor homenagem que alguém poderia  fazer aos heróis de Caium: "Nem só de pão vive o homem. 72-74"...

O Cristrina agradece, emocionado, ao Eduardo  Campos as fotos que ele lhe mandou, bem como ao "mais velho" Luís Borrega, pelos comentários que deixou no blogue...






Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 25 de Setembro de 2010 > Jantar em casa do Jacinto Cristina (aqui à esquerda, seguido da sua filha Cristrina, do seu genro, o médico Rui Silva, meu ex-aluno e grande amigo, e eu próprio, brindando aos nossos felizes encontros).



Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 25 de Setembro de 2010 > Jantar em casa do Jacinto (aqui ao lado da esposa, Maria Goretti; em segundo plano, a filha única do casal, Cristina, que tinha 3 anos quando o pai foi mobilizado para a Guiné, em 1972, e que rezava todos os dias por ele...




Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 25 de Setembro de 2010 > Jantar em casa do Jacinto  > O famoso arroz de lebre à moda da Maria Goretti... (Só falta o gosto e o cheiro, para completar a foto).




Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 25 de Setembro de 2010 > Jantar em casa do Jacinto   > Até à última gota de... uísque. Buchanan's, from Scotland, for the Portuguese Armed Forces... with love... Esta foi comprada em Bissau, em Junho de 1974, e aberta no nosso primeiro encontro, na festa de anos da Cristina, em Março passado.


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2010).  Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].





Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > Destacamento da  Ponte do Rio Caium > Da direita para a esquerda: Jacinto, Alexandre (Trms, natural de Peniche), Rocha (condutor, algarvio) e Santiago (1º cabo, atirador, estavana na cantina, onde havia uma arca a petróleo, pelo que, apesar de tudo, não faltava a cerveja, a coca-cola e a  fanta, estupidamente geladinhos)... Na ponte, estava o 3º Gr Combate (c. 30 elementos).




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > Destacamento da  Ponte do Rio Caium, 3º Gr Comb, 1973/74 > O "campo da bola",  no lado esquerdo da ponte, no sentido Piche/Buruntuma... Um bocado da lala que circundava as margens do Rio Caium...




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ3546 (Piche, Ponte Caium e Camajabá, 1972 / 1974) > Destacamento da  Ponte do Rio Caium, 3º Gr Comb, 1973/74 > Da esquerda para a direita, quatro bons amigos: JacintoCristina, Rocha, Sobral (amigalhaço do Jacinto, hoje residente no Cercal do Alentejo, Santiago do Cacém) e um quarto camarada que o Jacinto não conseguiu identificar (seria alguém de rendição inidvidual, proveniente de outra companhia)... 

Estão vestidos, dois, "para a fotografia"... Da ponte não se podia ir a lado nenhum, por razões de segurança: afinal, estava-se a escassos quilómetros da fronteira com a Guiné-Conacri onde o PAIGC gozava de total liberdade de movimentos; por outro lado, verdadeiramente não havia onde ir ... A sul da ponte do Rio Caium corria o Rio Coli, que servia de fronteira, e de que o Caium era um afluente... A nordeste da ponte, havia uma aldeia fula, a cerca de 3 quilómetros... Ele não se lembra do nome: pela carta de Piche, verifica-se haver (pelo menos antes da guerra) duas tabancas a nordeste da ponte: uma mais próxima, Temanco (Malã Dalassi): e outra mais acima, Sinchã Mádi Maudô.

O Jacinto nunca lá foi a Temanco (julgo que seja esta a tabanca em causa), sobretudo depois de um conflito, na ponte, com uma lavadeira e, por tabela, com o régulo, conflito esse que deu origem a um processo disciplinar, que foi "limpo" com a chegada do novo Governador Geral e Com-Chefe, em meados de 1973, o Bettencourt Rodrigues... (A solução salomónica a que se chegou foi: a lavadeira pagou 250 pesos por uns calções de banho que levaram sumiço (e que nem eram dele,era de um furriel); ele, Cristina, teve que pagar 200 pesos por um brinco da lavadeira, que ele partiu ou amolgou...).

O Jacinto e o Sobral tinham uma máquina fotográfica comprada a meias (...por 500 escudos, em 2ª mão, a um rapaz de Grândola, da companhia de Canquelifá)... O tenente (dos serviços gerais) de Piche, da CCS do batalhão, é que revelava as fotos... O Jacinto e o Sobral revendiam-nas, salvo erro,  a três escudos por foto ("metade era lucro", confessa)... Maduro e responsável, com mulher e filha na Metrópole à espera dele, o Cristina não era homem para gostar o pré, logo no primeiro dia, em bebedeiras de cerveja... "Andava sempre com um conto no bolso", mas sabia gastar com conta, peso e medida...



Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium > O Alexandre e o Jacinto...


fotos: © Jacinto Cristina (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


[Fotos digitalizadas, editadas e legendadas por L.G.]

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Nota de L.G.:

(*) Último poste da série > 25 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7036: Álbum fotográfico de Jacinto Cristina, o padeiro da Ponte Caium, 3º Gr Comb da CCAÇ 3546, 1972/74 (2): Os tempos livres de um caiumense...

Guiné 63/74 - P7038: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (6): Tivemos bons mestres, dizem angolanos, guineenses e brasileiros, quando falam de corrupção

1. Texto de António Rosinha [, foto à direita]:


Somos mesmo assim tão corruptos?

É que na Guiné, no Brasil ou em Angola, quando se fala em corruptos, e estiver um português por perto,  dizem logo "tivemos bons mestres".... Se na nossa cara falam assim, imaginemos nas nossas costas o que dizem.

A história do engenheiro Alves dos Reis que venceu todas as burocracias necessárias para mandar fazer notas de 500 na Inglaterra, nos anos vinte do século passado, era do conhecimento de todos os adultos que sabiam ler, na cidade de Luanda, quando eu lá cheguei.

Eu, e a maioria que íamos daqui com carta de chamada e passagem do próprio bolso, nunca tinhamos ouvido falar nessa história. Como esse vigarista tinha vivido em Angola, havia gente que o tinha conhecido, ou sabia pelo menos da sua actividade. Talvez soubessem disso os que iam em comissão de serviço por quatro anos, como os governadores gerais e seus secretários, ou comandantes militares.

De facto, esse Alves dos Reis demonstra a capacidade de alguém para corromper tanta gente, desde conseguir assinaturas, carimbos, ser recebido por ministros, e depois distribuir e pôr esse dinheiro a circular em bancos e comércio...E esse génio da vigarice e corrupção era português, com fama internacional.

Agora andam por aí banqueiros que talvez já ultrapassem aquela antiga glória dos anos vinte do outro século.

Claro que se a vida não tivesse uma qualidade melhor em Angola do que cá, seria deprimente para mim e todos os que íamos daqui, ouvindo bocas como de atrasados, íamos só para viver à custa deles, mas esta de corruptos era aquela que talvez se estranhava mais, para quem nunca tinha ligado a tal coisa. Claro que eram conversas de café e o tal jeito da adaptação, dificil de explicar, resolvia tudo, em Angola, no Brasil ou na Guiné.

No Brasil era pior, onde o português era o alvo das anedotas do "menos inteligente". Hoje, os brasileiros emigrantes em Portugal também ficam marcados por outros motivos.

Na França, as marcas do português emigrante também se fariam sentir mas penso que não por corrupção. Mas por sua vez o emigrante que retornava, voltava a ser novamente marcado na sua terra.

Mas essa marca do "mestre da corrupção", penso que é invocado mais nas ex-colónias. Pessoalmente, em Bissau vi sinais de corrupção e vigarices bem (mal) disfarçadas por gente portuguesa em conluio com guineenses, em que a vítima era o Estado Português e o Guineense. Claro que não posso dizer nomes porque não sou polícia e não sou tetemunha. Mas casos descaradissimos não faltavam.

Eu próprio, não sei se me considere corrupto ou não. O que escrever um dia aqui, se tiver oportunidade, quem leia, julgará. Se era corrupto ou "ficava à porta". Mas não sei se já disse outras vezes, em Bissau não são precisos jornais. E o povo em Bissau tudo sabe, e até um dia Nino Vieira teve que fazer um comício para demonstrar que não era corrupto, no fim eu conto.

Eu acredito que na chamada África a sul do Sahara, antes de Diogo Cão ir visitar aquela gente, não havia corrupção tal qual como a praticamos hoje, europeus e africanos.

Sempre se falou e fala muitas vezes nas riquezas "fabulosas" dos países africanos, principalmente em Angola, e Congo que eu conheci um pouco, mas tambem na Guiné e é sabido que os dirigentes dos movimentos independentistas e muita gente pensava isso, que as riquezas das colónias portuguesas não eram divulgadas, para evitar a cobiça das potências estrangeiras.

Essas ideias também provocavam e provocam corrupção e tudo o que de negativo venha atrás, como no caso extremo em certos países africanos com os afamados "diamantes de sangue". No caso de Angola, parece que os diamantes continuam a ser moeda de troca. Não me admira que,  igualmente ao tempo colonial, haja muita dinheiro a ser investido em quartzo e vidro triturado.

Mas na Guiné, como não há grandes riquezas naturais à vista, talvez não haja grandes escândalos, mas é constante falar-se em corrupção e se um tuga estiver por perto pode ouvir a insinuação de mestre da dita mania da corrupção.

Houve um Natal de 1980 em que a Tecnil por hábito fazia a distribuição pelos clientes de umas lembranças, e como habitualmente era obrigatório uma lembrança para o presidente da República e outra para o Ministro das Obras Públicas. Ora naquele ano, 'Nino' Vieira era presidente havia um mês e o ambiente estava muito tenso e até algo violento devido ao golpe recente, e da Tecnil ninguém se achava com à vontade para levar essa lembrança à residência do Presidente, porque não se sabia qual seria a reação. Mas alguém teve que ir, e esse alguém lá entregou umas caixas com garrafas e mais umas embalagens com um cartão aos seguranças, mas passados uns minutos estava tudo devolvido sem explicações.

Dentro de uma perspicácia especial dos guineenses, toda a gente é baptizada com uma alcunha, e sempre com muita originalidade. Quem não podia escapar era o Presidente 'Nino' Vieira. que embora já tivesse a alcunha habitual, adaptavam-lhe uma alcunha (não muito às claras, penso eu) de uma novela brasileira, Sinhôzinho Malta. Desde o poder absoluto, aos carrões, ao relógio de ouro que exibia no pulso, e toda a gente ter um respeito absoluto àquela figura, e até a corrupção que se imaginava, tudo se adaptava à alcunha.

E passados uns anos, 'Nino' Vieira teve que explicar que não era corrupto, como se andava a falar. Usou um comício, transmitido pelo rádio e televisão e entre outros assuntos falou do "boato que anda por aí a correr". E agora digo apenas do que me lembro de ouvir e o sentido que o Presidente queria transmitir, e o pessoal comentou durante uns dias:
- Dizem que sou corrupto, mas se por exemplo, este relógio de ouro que tenho no pulso (e levanta o pulso com um relógio vistoso) que me foi oferecido pela Soares da Costa (a maior empresa a trabalhar na Guiné), como uma lembrança, eu devia recusar? Se o fizesse até era má educação.
- Isso é ser corrupto? - perguntava 'Nino' à assistência.

Claro que o povo que assistia ao comício respondeu em côro: 
- Nããão!

E agora, podemos nós aqui perguntar se, apesar de dezenas de nacionalidades representadas com seus nacionais em Bissau, e ser exactamente uma empresa portuguesa, a  Soares da Costa,  a dar um relógio ao Presidente, isso faz-nos,  aos portugueses,  mais suspeitos de corrupção do que os outros?

Claro que alguns de nós diremos: 
- Siiiim!

Mas concerteza haverá lugar para outras definições desse acto desde nããão, talvez ou niiim.

Não estou a imaginar ver os Suecos que tanto ajudaram o PAIGC, a dar particularmente um relógio a 'Nino' Vieira e este a explicar publicamnte. Mas vi os Suecos darem a cada ministro um Volvo topo de gama e renová-lo periodicamente e grandes máquinas para madeireiros trabalharem.

Também não imaginamos Russos que tanto ajudaram o PAIGC, oferecer um relógio ao Presidente. Mas vimos oferecer carros de combate e aviões de guerra.

O acto dos russos e suecos são ajudas de um povo a outro povo , no caso português são apenas negócios com uma empresa portuguesa em que uma da mãos lava a outra.

É esta a imagem que fica das diferenças de uma cooperação e outra. O que a Soares da Costa fez, é aquilo que podemos imaginar que foi a aventura,  de séculos por esse mundo fora, da diáspora portuguesa. Podemos dizer que é o tal desenrascanço, e ficam sempre suspeitas (os guineenses chamam o soco por baixo da mesa, em crioulo).

Enquanto outros cidadãos e empresas só agem com colaboração de embaixadas e consulados, em Portugal parace que se evitam mutuamente esses contactos.

Chegava-se a ver em Angola, no tempo colonial, comerciantes totalmente isolados durante anos, sem chefes de posto, nem missionários nem postos médicos que se instalassem a menos de um dia de viagem a pé (estradas nem vê-las). Claro que tinham que se desenrascar através de uma integração desde a aprendizagem das línguas, até aos remédios do povo e certamente compra de favores (corrupção?). 

Eu aprendi com colegas angolanos, logo nos meus primórdios, a deslocar-me em lugares distantes de povoações, acompanhado com um saco de sal. Era ouro com que comprava desde alimentação, informações e até protecção. Seria corrupção?

Claro que muitas vezes referem-se casos de imenso sucesso de portugueses na França, Brasil, Angola e até na China e América, mas os insucessos são varridos para baixo do tapete. Mas que a imagem que fica,  podia ser melhor se não nos auto-marginalizássemos, disso não tenho dúvida.

 Cumprimentos,

Antº Rosinha (*)
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Nota de L.G.:

(*) Último poste da série > 19 de Setembro de 2010  > Guiné 63/74 - P7006: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (5): Portugal nem explorava nem desenvolvia, colonizava pouco e mal