1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 11 de Janeiro de 2012:
Olá Carlos,
Aqui vai mais um pedacinho de história da CCaç 2679. Nada de relevante. Aconteceu, porém, uma inopinada visita do ComChefe a uma tabanca em auto-defesa, onde nunca descortinei o paradeiro das G3 novinhas que ali foram distribuídas - Seria interessante saber se o General teria alguma agenda com anotações dessas visitas.
Para ti e para o Tabancal vai um abraço fraterno
JD
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (46)
"SEXA COMCHEFE visitou Tabassi"
A História da Unidade revela sobre a situação geral durante o mês de Janeiro de 1971:
Durante o mês de Janeiro-71, a actividade de iniciativa IN manteve-se em relação ao período anterior: duas flagelações ao Aquartelamento de Bajocunda e uma ao Destacamento de Copá. É de assinalar a forte intensidade do fogo IN empregue no dia 01JAN71, contra Bajocunda e em 07 contra Copá. Muito embora não causassem quaisquer baixas às NT e à população, os estragos materiais foram um tanto avultados, principalmente no ataque a Bajocunda.
A Companhia mantém o ritmo operacional em relação ao período anterior:
Os dois grupos de combate da CCav 2747 que se encontravam nesta em reforço temporário, regressaram a Piche em 19JAN71, sendo substituídos entretanto por um grupo de combate da CCaç 5 que segue em 21JAN71 para Copá a fim de render o Pel Caç Nat 65, que regressa a esta Companhia em Bajocunda.
A Companhia continua ainda reforçada temporariamente por 01 GrCombate da CArt 2762.
O Pel Caç Nat 65 segue em 22 para Tabassi rendendo 01 GrCombate da Companhia na protecção àquela tabanca.
Em 26JAN71 apresentou-se na Companhia o Pel Mil 298 recém formado em Contuboel que é atribuído de reforço à CCaç.
O Pel Mil 269 continua fixado em Amedalai a fazer a protecção àquela tabanca e diariamente 01 GrCombate reforça Tabassi à noite. Mercê de uma acção psicológica bem orientada a Companhia consegue que se apresentem neste período em Copá, mais 04 elementos da população refugiados na Rep Senegal a fim de ali residir. Em Amedalai também se apresentaram 10 elementos pop que ali fixam residência.
SEXA COMCHEFE visitou Tabassi.
Durante o mês de Dezembro aconteceram os seguintes aumentos ao efectivo:
Alferes Mil de Infantaria Eduardo José Luís Machado Pinto, proveniente da C Caç 2789, para o 4º. Pelotão, e os soldados, Manuel Morais, em rendição individual, e Armando Manuel Lanzana Lapa, proveniente da 26ª. CComandos, ambos para o segundo Pelotão, o Foxtrot. Foram dois elementos de boa valia.
Localização de Tabassi na Carta de Pirada
Minha nota:
Como acabam de ler, o IN mostrou-se bastante colaborante com a NT, pois, sabendo que os elementos da 2679 eram preponderantemente madeirenses, não quiseram deixar-nos passar o ano sem o condigno "reveillon". E no dia 1, pelas 21H45, voltaram a flagelar Bajocunda com um bom potencial de fogo, tendo deslocado morteiros, lança-granadas foguete, canhões s/recuo, e armas ligeiras.
Entretanto, um dia que não assinalei, provavelmente em 27DEZ70, regressei de uma coluna a Nova Lamego e senti-me censado, mas sem qualquer suspeita de doença ou sintoma de mau-estar. Comi, e fui para o meu quarto, onde três ou quatro jogavam cartas. Adormeci naturalmente. Até que a certa altura, já para o tardote, comecei com manifestações estranhas de inquietação e convulsões, acordei, e queixei-me de fortes cólicas, que não me permitiam sossegar. Foram chamar o Vítor que, perante as minhas manifestações, mas sem um diagnóstico (as Companhias em geral não tinham meios de diagnóstico."Guerra, é guerra!"), perguntou-me se eu aceitava uma injecção para acalmar. "Traz lá essa merda, depressa", deve ter sido a minha mais que natural resposta. O Vítor aplicou-me a injecção, que garantia, havia de produzir efeito. Qual quê! Não fez efeito nenhum. Então, o Vítor ministrou-me uma segunda injecção, na falta de medicação alternativa, admitindo que esta segunda dose teria que causar efeito, neutralizando a dor e restituindo-me tranquilidade.
Mais um hiato, talvez de uma ou duas horas, e... nicles. A minha imagem devia ser de desespero, e a malta em meu redor inquietava-se. À terceira dose, o Vítor esgotou os recursos razoáveis, pois não queria matar-me pela cura. Por essa altura, já o Marino, por indicação do Vítor, tinha pedido a minha evacuação.
Amanheceu como todos os dias, mas eu, desesperado, e acagaçado pelo obrigatório ingresso no hospital, não tinha esperança.
Talvez uma horita depois da alvorada, chegou um DO para me transportar ao hospital. Alguns Foxtrot acompanharam-me na despedida com graçolas a que eu nem era capaz de reagir.
Não sei se por efeito do cagaço, se por efeito da altitude, se por "ineficiência" da doença, quando cheguei a Bissalanca sentia-me bem.
Puseram-me numa ambulância e transportaram-me até a um médico que, no hospital, fazia despistagem. Quando me interrogou, disse-lhe da estranha manifestação da doença, e referi as injecções que me tinham dado, o que deveria constar de um qualquer relatório. Depois, despi-me de roupas e preconceitos, e encaminharam-me para a SO - Sala de Observações, um salão com ambiente fresco, onde ocupei a última cama do lado da entrada. Existiam no local oito camas, que passaram a estar preenchidas. Fiz análises e os exames prescritos, e voltei para a cama, onde tapei as vergonhas com um lençol. Era assim, também, para os restantes.
Era um ambiente terrível, e eu não encontrava qualquer razão para estar ali. Todos os meus companheiros de camarata tinham sido vítimas dos acasos da guerra, com excepção do que estava à minha frente, onde permanecia por alguns dias, com o diagnóstico de paraplegia, em virtude de um acidente. Os restantes, feridos em combate, mutilados ou portadores de estilhaços, aguardavam evacuações para Lisboa, e permaneciam em estado de adormecimento, só dando sinal quando as drogas abrandavam o efeito, ou tentavam mudar de posição na cama, e desatavam em choro, quando se encontravam com a nova realidade e as dores emanantes.
Passadas as duas noites a respirar daquele ar condicionado, chegaram os resultados, que revelaram uma amibíase, uma doença provocada por amibas ingeridas com a água que, entretanto, tinham devassado os glóbulos vermelhos. Transitei então para o primeiro andar, onde tomei lugar no primeiro quarto do lado direito, cuja varanda se situava sobre a entrada principal. Quando ali cheguei, apresentei-me ao ocupante da outra cama, o médico de Piche que se "batia" a uma hepatite. Tornei-me um cliente de luxo, pois a par dos mata-bichinhos prescritos, também tinha direito a frutas sul-africanas, e a sumos italianos, sempre em quantidade excedentária, que ainda permitia a alguns camaradas abastecerem-se.
Enquanto ali permaneci, o acontecimento mais relevante foi a operação cirúrgica ao CMDT da Região Militar de Bissau, o célebre "onze". Tinha permanentemente duas sentinelas à porta do quarto, uma atitude lógica, pois qualquer um dos internados poderia tentar-se a fazer justiça perante a oportunidade. E ao fim da tarde, esteve sempre garantido o espectáculo dos oficiais superiores, todos engalanados, a bater com os tacões das botas polidas, nos mosaicos do corredor, numa precipitação para prestarem vassalagem subserviente ao grande senhor enfermo, o grande déspota solitário. Apresentavam-se aos soldados sentinelas, e um deles ia confirmar a autorização para que o interessado tivesse oportunidade para entrar. Foram cenas dignas do magnífico romance de Gabriel Garcia Márquez, "O Outono do Patriarca", que neste caso tentava revitalizar.
Lembro-me ainda de duas situações aberrantes naquele hospital, um furriel miliciano e um soldado, ambos "clientes" da psiquiatria: o primeiro seria refratário por questões políticas, e o segundo teria cometido crimes sobre dois familiares (era o que constava). Ambos tinham o receituário diário, mas uma vez por semana, levavam uma dose extraordinária, uma injecção de vários centímetros cúbicos, que os deixava sem falar e quase sem comer durante dois dias. Aliás, nos períodos intercalares, e tive confirmação disso pelo contacto directo, nenhum deles conseguia manter um diálogo, com nítida falta de capacidade de expressão, e olhares vagos, de ausência. Não sei que futuro tiveram, nem se o psiquiatra contribuiu para a saúde deles.
Estive ausente da Companhia quase por um mês.
No meu regresso fiquei a saber que o Foxtrot, por falta de comando, foi deslocado para Tabassi, onde ficou a defender a tabanca. Durante algumas noites ficaram entregues a si próprios, comandados pelo Cabo mais antigo, ou solidariamente organizados. Também me fizeram queixa de que o pelotão abandonara a aldeia.
Apurei que os almoços eram confecionados em Bajocunda e transportados para Tabassi. Todavia, sem qualquer critério, a chegada das refeições fazia-se tardiamente, a uma hora qualquer, e o pessoal reclamava através da escolta. Coisa que não devia impressionar o capitão e os "sorjas". Até que um dia não se fizeram rogados, e apresentaram-se em Bajocunda para comer no refeitório. Estalou uma bronca, mas o pessoal levou a água ao moinho, e a refeição passou a chegar àquela aldeia pelo meio-dia. Reconheci-lhes razão.
No primeiro dia do ano, o Comandante-Chefe deslocou-se a Tabassi, inopinadamente, pelo que terá confirmado a espécie de ostracismo e displicência a que o Foxtrot estava votado. Não havia nenhuma razão especial para que o General ali se deslocasse propositadamente, salvo quaisquer eventuais informações que lhe chegassem por outras vias, talvez o COT-1; talvez a PIDE, ou o Mário Soares. Também não posso afirmar que se tenha ali dirigido para saudar o Foxtrot. Podia querer cimentar a relação com o chefe de tabanca, um individuo pouco (nada!) atento à condição da auto-defesa, ou saudar a população e a tropa.
Sobre a visita, a História da Unidade regista a seguinte frase no contexto situação em Janeiro/71: "SEXA COMCHEFE visitou TABASSI".
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 4 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9311: (Ex)citações (171): A propósito de citações e comentário do Mais Velho (José Manuel Matos Dinis)
Vd. último poste da série de 29 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9285: História da CCAÇ 2679 (45): Um aniversário em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)