1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 11 de Outubro de 2012:
Caríssimos Luís, Vinhal e M. Ribeiro.O que sai logo à ideia é enviar-vos um grande abraço, e este mail encontrar-vos em plena boa saúde.
Aqui vai mais uma página “ arrancada” do meu caderno de memórias “ Páginas negras com Salpicos cor-de-rosa”.
Passem bem
Rui Silva
Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos
os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de
algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.
Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”
- 22 de Junho de 1965 (quase 1 mês de Guiné) -
IRACUNDA
(ainda hoje, ao falar, há ainda uma residual sensação)
Foi o batismo de fogo da 816: mais de 20 minutos de fogachada em Iracunda. Julgo que toda a espécie de arma que o inimigo usava na altura em toda a Guiné, estava toda ali.
Não foi a minha primeira vez no mato mas lá que foi a primeira vez que chamei a Nossa Senhora lá isso foi!
Iracunda ao tempo era o verdadeiro braço armado da base de Morés, no OIO.
Localização de Iracunda, estrada Bissorã-Mansabá, a sul do Olossato e a NW do Morés, bastião do PAIGC no Oio.
Vd. carta da Província da Guiné.
Legenda de CV
Certo dia então chegou a ordem para os 2.º e 3.º Grupos de combate prepararem-se para saírem para o Olossato. Não sabíamos, mesmo nós os Sargentos, qual seria o objetivo. Se bem que não estranhássemos (?) a falta de dados, uma vez que sabíamos que na guerra o sigilo tem toda a importância, ficamos na desusada expectativa quanto ao que nos estava reservado com a
Operação Olossato. A ordem veio lacónica embora concisa, à boa maneira militar. Sem fazermos qualquer objeção (pudera!) ou simples pergunta (pr’a quê?), embora a nossa curiosidade nos incitasse a tal, vestimos uma vez mais o camuflado, armamo-nos como de costume e abalamos rumo às viaturas que se encontravam já alinhadas, à saída do aquartelamento de Bissorã, na direção da estrada para o Olossato, ali bem perto do edifício civil da Administração de Bissorã e da rotunda com um pequeno monumento no meio. O centro de Bissorã, afinal.
Encarávamos o trajeto com certo pessimismo, (periquitices) pois a estrada que liga Bissorã a Olossato tinha fama de aparecerem muitas emboscadas, principalmente na zona da “carreira-de-tiro”, nome que a tropa deu e que ficava sensivelmente a meio caminho até Maqué e que atravessava um local de capim muito denso, mesmo propício a uma cilada. Também nesta estrada era frequente aparecerem minas e fornilhos, dizia-se. Sabíamos também que era uma zona batida pelos terroristas da fortíssima base de Morés e que a estrada passava por Maqué, a meio caminho, onde algures também existia uma casa-de-mato.
No entanto, uma vez que esta nossa saída foi rodeada do maior segredo (o que até em Bissorã parecia não funcionar muito bem), havia toda a possibilidade de os não termos à perna, o que não queria dizer que, pelo menos, não tivéssemos de depararmo-nos com minas e outras quaisquer armadilhas. Assim, e como era de contar com isto, a estrada foi picada por uma secção e à vez. Porque a coluna levava à frente homens apeados - os picadores -, obrigava a uma progressão lenta, embora segura, quanto a minas.
Os cerca de 15 quilómetros que separavam Bissorã do Olossato, ou melhor até Maqué (~8-9 Kms.) , percorridos de tal forma, pareciam não ter fim. As secções alternavam-se à frente na picagem da estrada, e quando essa mudança acontecia, havia uma longa paragem da coluna, o que fazia ainda mais enervar.
O trajeto, o primeiro que fazíamos naquela estrada, que tão badalada era - já em Bissau, quando passamos por Brá, ouvíamos falar dela, pelos seus perigos -, foi feita no clima da maior “suspense” e expetativa. Os “longos” quilómetros foram-se então calcorreando até que chegamos a Maqué sem qualquer novidade.
Logo divisei do lado oposto e do outro lado do pontão (ponto de encontro) uma auto-metralhadora e alguns soldados de camuflado já muito coçado, muito queimados (era a velhice). Rostos queimados do impiedoso sol, grandes barbas e/ou bigodes, tudo aquilo denunciador de velhos amigos daquelas paragens. Eram elementos da Companhia de Artilharia n.º 566, a Companhia que estava sediada no Olossato. Tinham picado a estrada do lado deles e portanto dali para a frente já ninguém foi apeado, pelo que a marcha foi imposta pela velocidade das viaturas.
Alguns quilómetros volvidos, deparam-se então as primeiras moranças, outras mais, mais ainda e eis que nos aparece o aquartelamento de Olossato. Troncos de palmeiras já muito gastos a fazerem de paliçada em toda a volta do aquartelamento; abrigos de sentinela cilíndricos e em cone no teto nos 4 cantos do quadrado da fortificação. Tudo no entanto bem arrumadinho e cuidado. Troncos de palmeiras, chapa dos bidões da gasolina e barro da Guiné para encher, eram os materiais utilizados. Na ponta de um mastro, já bem dentro do quartel, bem alto, ondulava a bandeira portuguesa, orgulho nosso e a chama do nosso valor e coragem. Numa alisada chapa de bidão logo sobre a “Porta d’armas”, podia-se ler em letras e números bem grandes, pintados à mão e com relativa habilidade: “C. ART. 566”.
Esta chapa estava bem ao alto e logo à entrada do quartel. Eram ali que moravam os “velhinhos” da 566, Companhia que tinha muita fama pelo valor evidenciado através de êxitos e mais êxitos por aquela temerosa zona do Oio.
Tive mais tarde ocasião de o assim constatar, ao trabalhar com eles no mato.
Poucos meses atrás, pouco antes de virmos para a Guiné, tinham eles tido um formidável êxito na base de Morés. Aprisionaram entre 2 a 3 toneladas de material de guerra entre ele diversas e valiosas metralhadoras pesadas.
Aquele cenário no Olossato fez-me lembrar logo os filmes de
cow-boys do
western americano: muros construídos com trocos de palmeiras, cavalo-de-frisa e arame farpado a embrulhar tudo, e homens armados de carabina (diga-se G3) e em tronco nu e bem queimados; barbas, barbichas e exóticos bigodes e muita descontração; chão vermelho e poeirento também.
Olhei em redor a ver se encontrava por ali algum conhecido, mas não encontrei ninguém. Ouvi então risos e palmadas nas costas, mesmo atrás de mim. Virei-me e era o Zé Baião que tinha encontrado um seu conterrâneo eborense e amigo. Este era o Furriel Martins. Conversaram, riram, mas não era preciso haver conhecimentos, pois ficávamos logo em família sempre que se davam estes encontros. O Martins usava um chapéu à
cow-boy, mais um dado característico dentro daquela encenação.
Receberam-nos muito bem e logo se aprontaram a arranjarem-nos comer na messe deles. Embora fosse da praxe, os visitantes serem bem recebidos pelos seus anfitriões, o certo é que os camaradas da 566 foram inexcedíveis em gentilezas, pelo que, viríamos a manifestar o nosso reconhecimento com grande ênfase. Ficamos desde o primeiro minuto a gostar daquela maralha e, diga-se de passagem, que também conquistamos a simpatia deles. Almoçamos então em clima de grande confraternização e depois de contarmos, e principalmente ouvirmos as aventuras da malta ali na Guiné, fizemos uma partida de futebol na parte da tarde.
O pequeno campo de futebol dentro do aquartelamento do Olossato que ficava junto às messes quer dos Oficiais quer dos Sargentos onde, antes umas horas de irmos à base de Iracunda, jogamos à bola com a malta da 566. A casa atrás da baliza seria mais tarde a secretaria da 816 onde estava o saudoso 1.º Rodrigues (falecido cá e já com alguma idade - paz à sua alma) e o desenfiado do “Boavista”, sempre com o Primeiro a perguntar-nos onde andava este, …na bola quase sempre.
A casa do lado direito, já civil, e fora do aquartelamento, julgo ser a casa do Sr. Fodé, nativo,vendedor de panos e outras miudezas e apetências nativas.
Ao fim desta, fomos então, nós os da 816, chamados ao nosso Capitão (não foi preciso lembrar-nos que não fomos ali para jogar futebol) e por ele fomos postos ao corrente da nossa missão, agora com a informação em detalhe. O objetivo era para nós desconhecido, mas que lá ia ficar bem no nosso conhecimento lá isso ficou. Os velhinhos da 566 já o conheciam, e bem o notei logo no olhar apreensivo dos que iam alinhar com a gente, que tal refúgio não era nenhuma pera doce. Diante de um mapa estendido sobre uma mesa, fomos então elucidados pelo Alferes Victor da 566 coadjuvado pelo nosso Capitão, quanto ao efetivo
do inimigo, seu armamento, quantidade e posição dos sentinelas, dispositivo que nós íamos adotar, etc., etc. A hora de saída do aquartelamento foi fixada para a 1 hora da madrugada. Objetivo: IRACUNDA!
Nada nos dizia (a nós os da 816), mas, só até lá chegar…
Depois da operação ficamos com a certeza que na verdade Iracunda era uma grande base terrorista, talvez até mais bem operacional do que a de Morés, isto dito também pelos da 566 e pelo chinfrim que houve também.
As lavadeiras do Olossato evidenciavam bem como a Guiné era muito fértil em boa fruta
Por gentileza de um colega Furriel da 566, dormitei um pouco na cama dele, acumulando energias, até à hora da partida. O jogo da bola tinha sido um grande desgaste, mas como havia o maior segredo, esse desgaste não foi poupado. Nesta altura, calmamente e com tempo, foi-me preparando. Peguei na minha G3, verifiquei o funcionamento da culatra, apalpei os carregadores nas cartucheiras, fixei bem a fivela do cinto do camuflado e fui beber um pouco de café. Um pouco de bagaço também para aquecer e a malta foi aparecendo. A noite estava com um intenso luar. A coluna foi-se formando no maior dos silêncios e, como autómatos, depois de tudo verificado, guarnições de “bazooka” e de morteiro, pessoal indígena carregador de granadas, nativos voluntários (de Mauser”!!) etc., fomos deixando Olossato no sentido oposto aquele pelo qual tínhamos vindo de manhã de Bissorã. A operação Iracunda tinha-se iniciado.
Olossato ia ficando para trás e a sua iluminação ia-se assim reduzindo para dar lugar às trevas. Como sempre, calculávamos o tempo de maneira que chegássemos às imediações do objetivo (refúgio) algumas dezenas de minutos antes da hora previamente combinada para o assalto. Servia tal interregno para nos refazermos um pouco da caminhada e ultimarmos também pormenores (se necessário), sobre o assalto. O facto de na maior parte das vezes chegarmos muito cedo às proximidades do objetivo devia-se também à progressão ter sido feita sem sobressaltos, nomeadamente do guia não nos ter feito andar às voltas, como não raras vezes acontecia, e que o tempo previsto também contemplava estes tipos de atraso mais ou menos previsíveis. Com o dito descanso, recuperávamos da caminhada e as nossas condições quer físicas quer psicológicas (sem nos vermos livres do nervoso miudinho, contudo), eram bem melhores. Até que chegamos junto de uma zona mais ou menos descoberta mas com folhagem suficiente para nos encobrir e camuflar uma vez sentados ou deitados. Estávamos ao longo de uma sebe e a escuridão da noite fazia o resto. Teríamos os cantares dos variadíssimos pássaros em breve a denunciar o nascer do dia.
(A descrição seguinte, em itálico, que faz parte integrante da narração desta operação “tirei-a” para introito do livro das minhas memórias - “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”- e nessa qualidade já saiu no Blogue (post 1809). Para aqueles que não gostam de ver coisas repetidas, as minhas desculpas)
"Eram 4 horas e meia da madrugada quando paramos. Fazia noite, noite escura. Já tínhamos andado um bom par de quilómetros.
Olhares que se interrogam e… era a espera.
Era aquele terrível espaço de tempo que se repetia sempre em todas as operações de “Golpes de mão”. Era aquela inquietante altura do tempo que nos punha na maior tensão e ansiedade. Era o aguardar da hora H, a hora do assalto ao refúgio inimigo e era ao mesmo tempo o retempero das energias gastas ao longo da caminhada.
Algumas dezenas de metros mais adiante estava o inimigo, oculto, algures acoitado naquela densa e emaranhada mata. A obscuridade dava às árvores e à sua folhagem feições de figuras fantasmagóricas e assustadoras. Estávamos todos reunidos, uns sentados, outros deitados, outros ainda nas posições que mais lhes apeteciam. Havia o maior silêncio, apenas cortado por um ou outro pigarrear inevitável ou pelo estalar de folhas secas provocadas pela mudança de posição deste ou daquele.
De olhos extasiados, circunspectos e de músculos contraídos, entreolhávamo-nos e parecia interrogarmo-nos: Como vai ser?..., Haverá surpresa?..., Conseguiremos o objetivo?, ou estarão eles já alertados e à nossa espera com uma emboscada montada?
Eram estas as pertinentes interrogações que nos martelavam o cérebro numa expectativa profundamente emocional. Que pesadelo!!... Não, naquela altura não éramos seres humanos, sentíamos e pensávamos como irracionais, quais animais selvagens prontos a atacar a presa.
Estávamos ali para matar, sim, matar, matar o semelhante, só que este tratava-se do inimigo, que, também… nos queria matar.
…E chegou a hora!!
O dia começou a nascer. Era na semi-obscuridade a altura ideal para atacar. Em pé e como autómatos tomamos as posições iniciais de fila indiana e a coluna retomou a marcha. Os cuidados agora redobravam-se. Era a etapa final, a curta etapa que precedia o ataque. As armas foram tomando nas mãos a posição adequada e os cuidados de progressão cingiram-se ao máximo.
De repente, inesperadamente, soa um tiro!... e foi o começo! Foi como que uma gigantesca trovoada então entoasse no silêncio da madrugada. As rajadas ouviam-se incessantemente; o matraquear da metralhadora pesada inimiga fazia-se destacar com as suas fortes detonações; os rebentamentos de granadas de “bazooka” e lança-“rockets” faziam-se aqui e acolá; o fogo era pleno… de parte a parte. A nossa reação, como que impelida por uma mola, foi imediata. Vi os soldados de dentes cerrados e feições crispadas apertarem com raiva os gatilhos, e trocarem os carregadores em movimentos nervosos mas calculados.
Foram 25 minutos de fogo cerrado e ininterrupto, e… embora lentamente, o inimigo foi cedendo… cedendo….
A peito descoberto e ainda debaixo de fogo, avançamos em “leque” em passos firmes e decididos na direção do refúgio inimigo que, entretanto, se põe em debandada, mas sem, no entanto deixar de atirar na nossa direção, com rajadas cada vez mais esporádicas e cada vez também mais distantes.
E o refúgio de Iracunda deu então lugar a gigantescas chamas que reduziram a cinzas aquela importante e estratégica base inimiga algures no Oio, zona de grande poderio e concentração inimiga.
O inimigo reagiu, e, de que maneira! Reagiu forte e decididamente!
Aliás foi o primeiro a atacar, pois tinha-se gorado o fator surpresa que contávamos, o que aliás acontecia em grande parte das vezes, e então emboscou-se aguardando a nossa aproximação.
O tal tiro era o sinal para abrir fogo.
Deram bem a noção da sua força, quer humana quer bélica. Tinham-nos também escapado, mas o seu tributo não tinha deixado de ali ser pago e de forma implacável: no chão, jaziam os corpos de três inimigos; três corpos despedaçados, por, presumivelmente, granadas das nossas “bazookas” ou dos nossos morteiros".
Foi uma terrível emboscada junto àquela base, e a atestar essa força, viu-se no que alguém da 566 nos disse já no regresso: “Eu já sabia que isto era assim, mas não convinha vos dizer”. Compreensivelmente aquiesci.
Depois do inimigo desbaratado e destruído completamente o seu refúgio, começamos a reagrupar as respetivas Secções. O intenso e demorado tiroteio tinha-nos tirado parte da lucidez e por momentos a malta viu-se desorganizada. O Capitão Riquito e o Alferes Castro tiveram mesmo que gritar para que a malta começasse a andar e ao mesmo tempo a reorganizar-se.
As casas-de-mato mais importantes na Guiné (julgo) tinham também uma escola. A de Iracunda tinha a sua. Deu bem para ver. Os
djubinhos das tabancas adjacentes não andavam ao Deus dará, não. Escola limpa, bem arrumada e asseada que indiciava muita disciplina e ordenação e que me ficou na retina.
Uma escola do PAIGC algures nas matas da Guiné. A que presenciei em Iracunda não fazia muita diferença no ordenamento, mas era mais simples e artesanal. Ao legítimo proprietário da foto a minha vénia pela reprodução aqui feita por mim.
Folhas de papel impressas, soltas (algumas podem ser vistas em reprodução de seguida) que recolhi para recordação (!!) que serviam para ensinar as crianças a escrever e a ler. As folhas que ensinavam o A E I O U e nas “entrelinhas” o incentivo ao combate aos colonialistas e à independência do povo nativo. Muito pedagógicas em todo o sentido.
Entretanto aqueles minutos de hesitação e desorganização permitiram ao inimigo o seu reagrupamento e o ensejo de fazerem ainda algum fogo bem dirigido àquilo que fora o seu refúgio e onde nos encontrávamos agora nós. Imediatamente ripostamos, embora que com poucas armas, pois estávamos desorganizados e até de algum modo desprevenidos.
Ficamos a saber que era assim, quando o inimigo era desalojado reagrupava-se adiante umas dezenas de metros e agora disparava sobre os novos locatários do refúgio. Isto deveu-se mais à falta de experiência do que a outra coisa, pois se para o meu Grupo de combate era ainda o segundo contacto com o inimigo, para o 2.º Grupo era mesmo o primeiro. O inimigo “calou-se” então, se bem que tornasse a fazer-se ouvir através de tiros isolados e de muito longe, mais a querer dizer “até logo”. Começamos então a andar rumo à origem: Olossato.
Dada a resistência inimiga e às possibilidades de reagrupamento do mesmo, e uma vez que o nosso abandono do refúgio foi demorado, contávamos com emboscadas por o caminho.
No entanto, e ao contrário do que era de supor, o inimigo não se emboscou, razão a que não foi alheia, concerteza, a impressão que lhe causamos com o destemido assalto ao refúgio ainda debaixo de fogo. E por vezes também haviam erros de cálculo. Talvez isto. Terá acontecido isso.
No regresso fomos queimando, sistematicamente, as tabancas e moranças que nos iam aparecendo, aliás como era habitual em análogas circunstâncias. Ao chegarmos a elas e como também invariavelmente acontecia, encontrávamo-las com um aspeto de recentemente abandonadas, portanto numa ação denunciadora de que ali habitavam terroristas ou pró-terroristas.
Completamente extenuados física e psicologicamente, chegamos junto do cruzamento, local, que como tinha ficado combinado, nos encontrávamos com as viaturas. Pousei o capacete no chão e deixei-me cair, deitando-me um pouco. Naquelas alturas que se lixe a guerra. O desgaste físico e psicológico fazia-nos olhar para o céu de forma absorta e descontraidamente. A segurança, se bem que em caso algum era de descuidar, não seria muito pertinente, pois estávamos muito perto do Olossato. E às vezes que se lixe a segurança também; queríamos era o chão para as costas e a lembrança: “Oh(!) Rui olha a nossa cervejinha à espera”, como me dizia muitas vezes no mato o meu amigo, Furriel também, o açoriano Vieira, falecido recentemente - paz à sua alma.
Iracunda tinha então ficado bem conhecida da 816.
Chegados ao Olossato logo tratamos de regressar a Bissorã. Uma vez chegados aqui fomos logo “assaltados” por os colegas que ali tinham ficado, que nos “metralharam” com perguntas e mais perguntas, satisfazendo assim a sua curiosidade e o conhecimento de causa. Afinal a 816 tinha andado aos tiros pela primeira vez.
Compreensivelmente, fomos respondendo com maior ou menor humor, se bem que o que mais me apetecia era sentir o mais depressa possível a água a jorrar pelo corpo abaixo e de seguida abocanhar o gargalo de uma garrafa de cerveja bem fresquinha. Estas duas coisas (banho logo seguido de uma cerveja fresca ou, ao contrário, a maior parte das vezes - haja paciência!- era o nosso prazer e a nossa alegria quando chegávamos do mato.
A operação “Outra vez”, que curiosamente até era a primeira para a 816, a Iracunda, marcou-me indelevelmente para sempre e porquê:
Saraivada de fogo durante longos e longos minutos a abrir a nossa operacionalidade. Só em ficção e em filme tinha visto daquilo. Armamento atualizado e estratégia poderosa do lado do inimigo.
E carago(!), aquilo não era para brincar, vi que andava por ali muito quem me queria tirar o sarampo e sem me conhecer de lado nenhum e sem eu ter feito mal a alguém.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 7 de Setembro de 2012 >
Guiné 63/74 – P10348: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (20): Um sapo com asas no Olossato