terça-feira, 27 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10730: Facebook...ando (19): Adul Baldé, filho de Braima Baldé, natural de Cansamange... e que foi o condutor que transportou os feridos da emboscada do Quirafo...



Guiné-Bissau > Bissau > Escola Salvadro Allende > 2009 (?) >  De pé, na a segunda fila, da esquerda para a direita: o segundo é o Adul Balde, seguido da Paula Bijagó, do Alfa Baldé, Vanessa Batista e Telma Marta...Não há mais elementos identificados na foto, com exceção da Paula Vieira (a primeira da 1ª fila, a contar da direita) (e que legendoua foto)... Foto do álbum do Adul Baldé, constante da sua página no Facebook.  (Reproduzida aqui com a devida vénia...).


(...) Paulo Santiago - Esta foto foi tirada em Cansamange,em 2005. Conheces estas pessoas?

Adul Balde - Sim,  Sr. Paulo, o homem que está á esquerda é o irmão do meu pai,  ele chama-se Mamadu Baldé (Molo), actual chefe de tabanca de Cansamange, ao meio André, Budi Seide e Ansu Embaló. Sim,  todos são os meus avós, conheço-lo, agora vou te enviar uma foto do meu pai, amostra,  para te possa reconhecer-lo bem. (...)

Foto: Paulo Santiago (2005), já anteriormente publicada no nosso blogue (e de novo reproduzida na página do Facebook do Adul Baldé,

1. Amigos e camaradas: Na realidade, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!... Há 2 dias atrás dei comigo a falar com um jovem guineense, de seu nome Adul Baldé, através da nossa página no Facebook, Tabanca Grande... Não é muito frequente lá ir por falta de tempo, mas quando lá vou tenho sempre surpresas agradáveis. Como, por exemplo, a deste jovem que está à vontade a "facebook...ar", e que acaba de se tornar amigo do Paulo Santiago... Reproduzo aqui uma síntese da conversa que tivemos, eu e ele, Adul Baldé, ontem e onteontem, no Facebook (*):

(...) - Olá, Tabanca Grande, muito boa noite!... Sou o Adul Baldé, filho de Braima Baldé, ajudante mecânico,  filho de chefe de tabanca de Cansamange, esteve em 1969/73 em Saltinho com o capitão André... O furriel que estava com ele na Cansamange,  era chamado Tempera na companhia de capitão André.


- Sê bem vindo, Adul, os filhos dos nossos camaradas nossos filhos são!... E tu o que fazes, vives em Bissau? Tens vídeo para a gente se conhecer ?

- Não, está a ligar através do computador dum colega meu. Sim, vivo em Bissau. Estou a estudar neste momento o curso de contabilidade numa escola privada,  aqui em Bissau.

- E como estão as coisas em Bissau ? Está tudo calmo ?

-  Ok , obrigado, Luís, aqui tudo está calmo,  sem problema,  sem pânico,  a vida está estável nada mas há de passar, tudo está bem.

- Temos grande amigo aí, em Bissau, [...]  podes contactá-lo se for preciso...

- Sei quem é. Bissau, tá bom,  vou ver se posso contactá-lo. [...] O meu pai conhece muitas pessoas,  muito mais de que eu,  ele fez vida depois de época colonial em muitas tabancas.

- Então fala-me mais do teu pai, nosso camarada...

- [...] Olá, Luis, já falei com o meu pai e ele me disse que esteve no Xitole e depois no Saltinho;  entre 1968/69 no Xitole, e ele era ajudante mecânico na companhia de artilharia, o número ele esqueceu, o chefe de mecânico era o Acácio Samicio [?], o Capitão na altura era chamado Madina Ramos e o condutor era Mugueira.

- Mugueira ?... Talvez Murgueira ou Musgueira...

- Ok,  Luís,  ele  [, o meu pai.] está muito ansioso de ver a sua actividade convosco nesta altura em Saltinho.

- Em março de 2008 estive no Saltinho, Iemberém, Guileje... e em Bissau.. Passei pela tua aldeia, ou perto, na estrada Xitole-Saltinho...

- Sei, Luís, e vi todos isto e as fotografias quando vocês vieram na Guine, sempre costumo entrar no Google assim: Ponte de Fulas,  Xitole, Saltinho, encontro sempre muitas fotos, até as fotos de Paulo Santiago em 2006 quando ele foi visitar a tabanca de Quirafo e a de Cansamange juntamenete com o seu filho [. João].

 - Olha, o que faz o teu pai hoje ? Qual é a sua profissão ? Tens foto dele ? Vocês são fulas, é isso ?!

- Não, não tenho uma foto dele nesta altura [, no tempo da guerra colonial], mas já enviei uma foto dele em 2011 na minha tabanca de Cansamange, e se puder contactar com o capitão André que estava no Saltinho em 1969/72 juntamente com o Paulo Santiago,  eles podem te ajudar procurar as fotos que falam dos soldados deles no Saltinho e na Cansamange. E  o meu pai foi aquele  que trabalhou muito no carro do seu pai  [?] para a construção da tabanca do outro lado de ponte,  chamada Sintchã Sambel. Ele foi o condutor que transportou os feridos no ataque do PAIGC no Quirafo.

- Ok, Adul... Ou Abdul ? Já tomei nota, amanhã ou depois, quando tiver um pouco mais de tempo, vou escrever uma nota no nosso blogue... Conheces ? Manda-me uma foto digitalizada do teu pai, atual... Essa companhia de 1968/70, do Saltinho (**),  é do meu tempo, vou confirmar os nomes...

- Sim, o meu pai esteve na tropa desde 1968 que ele entrou até a independência, mas primeiro ele começou logo no Xitole e depois passou no Saltinho nos tempos de capitão Clemente, André e Paulo Santiago.

- Tens aqui a página, no Facebook,do Paulo Santiago [...].

- Sim vi, obrigado.  Luis e vou tentar... Vi ele como um muçulmano, ehehehe!!!

- É do tempo do capitão Clemente!... O cap Clemente comandava a CCAÇ 2701... podes ver aqui fotos, no nosso blogue [...].. Alferes Julião, alferes Mota... Depois falamos mais!... tenho que trabalhar.

- Um abraço, Luís, mantenha para todos vocês e amigos aí em Portugal e espero que encontramos muitas das vezes para falar do historial da minha zona.

- Então, bom estudo, e um bom resto de dia. Mantenhas... Luís.

- Sim, obrigado, até amanhã e vou explicar tudo o meu pai sobre você e já vi também este novo blog. (...)





2. Por mail, o Adul mandou-me ontem foto com o seu pai, em Cansamange, a nordeste do Saltinho [, vd. mapa de Contabane]. Vendo melhor no mapa, confesso que nunca lá passei, embora tenha a ideia a CCAÇ 12 ter um dia feito uma coluna logística por Galomaro até ao Saltinho... Dei conhecimento ao Paulo, que me respondeu deste modo:

Luís: Já recebi, via Facebook, mensagem do Adul. Pedi-lhe,se possível, uma foto do pai quando militar. Tive um Braima no [pel Caç Nat] 53 mas não era condutor. Estive em Cansamange em 2005, onde encontrei os antigos milícias que tinham sido meus instruendos e me ofereceram 2 galinhas e 3 ovos.Vou esclarecer a situação com o Adul. Abraço.

3. Mensagem que acabei de mandar ao Adul Baldé:

Adul:

Quero que entres para o nosso blogue, para fazeres a "ponte" com o teu pai e outros camaradas nossos da região do Xitole/Saltinho... Aceitas ?... O Paulo Santiago pode ser o teu padrinho... Tenho as tuas fotos do Facebook... Não queres fazer uma pequena apresentação da tua pessoa ? Quem tu és, quem é a tua gente, o sítio onde nasceste, o que esperas da vida, o que pensas do futuro do teu país... Pensa nisso.
Um abraço. E obrigado pela foto que eu te fui "roubar"... Tens umas amigas giras...E amigos, claro... Onde é a escola Salvador Allende ? Tu vives em Bissau Novo, onde fica ?... Um abraço, Luis.

Luís Graça & Camaradas da Guiné
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt
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Notas do editor:


15 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9355: Facebook... ando (15): Um "regalo" para a Maria Ivone Reis, que anteontem fez anos (Hugo Moura Ferreira)

30 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9291: Facebook...ando (14): João José Alves Martins, ex-Alf Mil PCT (BAC1, Bissau, Bissum-Naga, Piche, Bedanda, Gadamael, Guileje, Bigene, Ingoré, 1967/70)

(**) Vd. poste de 15 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9610: O Nosso Livro de Visitas (130): Ex-Cap Inf Diamantino Ribeiro André, comandante da CCAÇ 2406 (Olossato e Saltinho, 1968/70), e ex-presidente da CM de Proença-a-Nova, ouviu-nos na rádio e quer ir ao nosso VII Encontro Nacional, em 21 de Abril próximo

(...) Recorde-se alguns dados sobre  esta subunidade orgânica do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70):

(i) A CCAÇ 2406 foi mobilizado no Regimento de Infantaria nº 2 – Abrantes; 

(ii) embarcou em 24jul68; desembarcou em 30jul68; regressou em 28mai70;

(iii) Divisa: “Sacrifícios não Contamos”;

(iv) Em 30jun68 seguiu para o Olossato para treino operacional e intervenção, destacando forças para Banjará e Maqué;

(v) Em 20fev69 seguiu para o Saltinho assumindo a responsabilidade do subsetor (que pertencia então ao Setor L1);

(vi) Destacou forças para, temporariamente, guarnecerem Xime, Quirafo, Cansamange e Sinchã Maunde Bucó;

(vii) Em 07nov69 passou para o setor L5 (Galomaro), mantendo as suas forças no Saltinho com forças em Cansamange e Cansongo;

(viii)  A 10mai70 seguiu para Bissau para efectuar o regresso;

(ix) Comandante: Cap Inf Diamantino Rodrigues André;

(x) Ao mesmo BCaç 2852 (Setor 1, Bambadinca, 1968/70) pertenciam a CCAÇ 2404 (Teixeira Pinto, Binar e Mansambo) e a CCAÇ 2405 (Mansoa, Galomaro, Dulombi).

Guiné 63/74 - P10729: Do Ninho D'Águia até África (30): As lavadeiras (Tony Borié)

1. Mais um episódio, enviado em mensagem do dia 20 de Novembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (30)

As Lavadeiras

Há mil histórias das ditas “Lavadeiras”!
Quase todo o militar dizia:
- A minha lavadeira, é melhor do que a tua!


 O Cifra depois da fraca experiência, com a sua lavadeira, que afinal era guerrilheira, andou um tempo sem lavadeira, andava sujo, e por vezes usava a roupa do Setúbal, ou mesmo do Curvas, alto e refilão.
Não podia continuar assim, pois não se sentia confortável, e em conversa com o Setúbal, este diz-lhe:
- Porque não usas a minha lavadeira? Creio que ela já desconfiou, que lhe entrego roupa a mais, todas as semanas.

E isso era verdade, pois por vezes, o Setúbal levava alguns calções e camisas do Cifra, para ela lavar, e ela era esperta, pois entre elas falavam, e sabiam quantas peças de roupa, era normal um militar usar por semana. Diziam por lá, que ela era de etnia “Papel”, e como tal muito desconfiada, nasceu na Ilha de Bissau, e tinha vindo para Mansoa, há catorze “chuvas”, que deviam de ser anos.

O que o Criador lhe deu a mais fisicamente, roubou-lhe um pouco na inteligência, e se se lembrasse de dizer que o Vinte e Oito da companhia velha, era o Trinta e Seis do pelotão de morteiros, tinha que ser mesmo, e lá havia um conflito, pois estes dois militares eram completamente diferentes na fisionomia do seu corpo.

Mas continuando com a história, passou a ser também a sua lavadeira, foto ao lado, e como tal, ficou sujeito a todas as anomalias da troca de roupa, e quando ao sábado a vinha entregar, e quando havia alguma confusão, ela logo respondia:
- Mi, lavá roupa para manga de pessoais!

O que era verdade, mas não motivo para entregar ao Cifra, três meias soltas, uns calções, onde cabiam dois Cifras, já sem forro nos bolsos, e sem botões na frente, e umas calças de camuflado, que o Cifra nunca usou, pois o Cifra não usava camuflado, toda a sua farda de camuflado, foi usada pelo Setúbal e pelo Curvas, alto e refilão, e que ela dizia a pés juntos que eram dele. Ao pôr uma mão no bolso dessas calças, encontrar o isqueiro do Curvas, alto e refilão, que já procurava há uma semana, pois “pedia lume”, a toda a gente e dizia:
- Se encontro o filho da p... que me roubou o meu isqueiro, eu máto-o. Cabrão!


Mas havia um dia, em que ela, quase nunca se enganava, e até colocava a tal flor de cheiro sobre a roupa, esse dia era ao final do mês, e antes de entregar a roupa, estendia a mão e dizia:
- Dá patacão, é fim de mês.

Às vezes, pagavam com notas do Banco Nacional Ultramarino, e ela nunca dava o referido troco, e dizia:
- Mi, “patacão ká tem”, está bem assim.

O Curvas, alto e refilão, dizia:
- Filha da p..., para ela, o mês só tem três semanas!. Qualquer dia mato-a!

(Ilustrações: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10716: Do Ninho D'Águia até África (29): Maldita matacanha (Tony Borié)

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10728: O nosso livro de visitas (153): Mário Oliveira, bravo marinheiro da Armada, cabo CM reformado, que esteve na Guiné, em 1961/63, ainda antes do início oficial da guerra, a bordo do NRP Sal, navio patrulha da classe Príncipe


NRP Santa Luzia, navio patrulha da classe Maio,construído no Arsenal do Alfeite. Foto de Eduardo Carlos Messias Camilo, alojada no sítio Núcleo Marinheiros da Armada do Concelho da Lousã. Reproduzido aqui com a devida vénia... (E Parabéns aos camaradas da Lousã pela sua página na Net!).


1. Mensagem do nosso leitor (e camarada) Mário Oliveira,com data de ontem:

Data: 25 de Novembro de 2012 14:35

Assunto: o mundo é pequeno,  a nossa tabanca é grande

Olá Luis Graça

Ontem ao pesquisar no Google para saber mais sobre o "infeliz" cap  G3 , deparei-me com o nosso blogue, nosso, da malta que em épocas diferentes bateu com os "cornos" na nossa querida Guiné.

E digo querida, porque tive a felicidade de conhecer a Guiné na época imediatamente anterior ao inicio oficial da guerra, a minha comissão foi de 61 a 63.

Vou dizer algo sobre mim, e mais adiante falarei sobre o maravilhoso povo guineense. Sou marujo, cabo CM reformado, assentei praça na Armada em novembro  de 56, tenho 76 anos de idade, mas ainda consigo arrastar as patas e,  quando calha ainda como uns petiscos e bebo umas "cravanadas".

O meu primeiro contacto com a Guiné aconteceu em 1960, iamos a caminho de Angola no NRP Sal, um navio patrulha da classe "Patrulhas Americanos" [ou Classe Príncipe]. Havia outros,  os "Franceses" [, ou Classe Maio]. 

Chegá mos ao porto de  Bissau já noite cerrada, foi o meu primeiro contacto com a Africa Misteriosa, recordo-me como se fosse hoje, o meu posto de faina era na casa da máquina, o que quer dizer que nunca assistia visualmente á entrada nos portos, mas sempre dava para subir uns degraus da escada de ré e dar uma olhada. Com os olhos ofuscados com a iluminação da casa da máquinas,  subo clandestinamente dois ou três degraus. Meto as "trombas" fora da escotilha e que vejo eu? Três ou quatro fatos de marujo, calção e corpete a flutuar no ar. Explicação para o fenómeno: a noite estava tão escura, os marujos auxiliares da ponte cais eram tão pretos, que eu com os olhos saiídos de repente da luz da casa da máquina, a primeira sensação que tive foi a dos fatos brancos a flutuarem no ar.

Não foi este o meu primeiro contacto com a África, porque já tínhamos estado uns dias no porto de S. Vicente em Cabo Verde e no porto de Dakar no Senegal.

Fiz três comissões, uma em Angola, outra em Moçambique mas aquela que mais me marcou e que terei muito gosto em contar algumas incriíveis histórias, como aquela em que matei um crocodilo no Rio Cacheu, com um escopro e um martelo,  foi realmente a comissão na Guiné.

Irei cumprir as "formalidades",  fotos etc.,  para aderir formalmente á Tabanca Grande .

Um abraço

Mário Oliveira

2. Comentário de L.G.:

Mário:  É verdade,  o Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca... é Grande! Graças à Net e a gente determinada como tu... E dizes bem, a "nossa" tabanca,  mesmo que um marinheiro goste mais de água do que de terra, de tempos a tempos tem que pôr o navio no estaleiro (ou acostar)...e vir a terra para sentir o chão firme!

Pois, para os teus 76 anos, estás muito mais "puto" do que muitos dos "periquitos" que foram fechar a "guerra" em setembro de 74!... Gosto desse espírito jovial, que tem muito a ver com a gente que lida com (e respira) o mar...

 Li, com evidente orgulho e satisfação, a tua apresentação. É de "tugas" como este que a gente precisa - pensei logo.  Quero eu dizer com isto, que é uma subida honra ter um bravo marinheiro como tu no meio desta maralha toda que representa uma orgulhosa e valente geração que deu o melhor de si, nas bolanhas, lalas, rios, braços de ar, savanas, florestas-galeria, tabancas e céus da Guiné...

Estamos a caminhos dos 600 amigos e camaradas da Guiné, "atabancados". Manda-me as duas fotos da praxe que é para eu (ou o Carlos Vinhal) te apresentar aos demais "grã-tabanqueiros".

Um Alfa Bravo. Luís Graça

PS - Já agora... donde és ? onde vives ? E descodifica lá o que é que dizer, na Armada, cabo CM (classe condutor de máquinas ?)... E já agora que história é essa do "infeliz cap G3"...
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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de novembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10659: O nosso livro de visitas (152): João Meneses, 2º ten FZE RA, DFE 21, gravemente ferido na península do Cubisseco, em 27/9/1972

Guiné 63/74 - P10727: Notas de leitura (432): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
As teses apresentadas pelo Doutor Manuel Godinho Rebocho têm suscitado alguma controvérsia e bastantes reparos metodológicos. Segundo ele, os capitães milicianos, genericamente, desempenharam a sua função de modo cabal e a sua qualidade de desempenho residiu nas capacidades pessoais e dentro das inteligências específicas sobressaiu a inteligência emocional e em contrapartida as elites militares constituídas por membros do quadro permanente não esteve ao nível no desempenho das suas responsabilidades.
Estes e outros objetos de análise são contundentes e deviam ser alvo de mais estudos, até na perspetiva de melhorar os processos de seleção, recrutamento de informação das Forças Armadas, como diz o autor.

Um abraço do
Mário


A “milicianização” da guerra

Beja Santos

“A investigação científica que realizei provou que, no decurso da guerra de África, os oficiais do quadro permanente foram-se progressivamente afastando do comando operacional. Desta situação, inusitada, resultaria terem sido os milicianos quem, de facto, comandou as unidades de combates, nos últimos e mais gravosos anos da guerra”. É com esta declaração que Manuel Godinho Rebocho nos apresenta o seu trabalho com base na sua tese de doutoramento ("Elites militares e a guerra de África”, por Manuel Godinho Rebocho, Roma Editora, 2009. Nesta sua investigação procurou igualmente sondar os termo em que se formaram as elites militares e o impacto dessa formação na qualidade do desempenho, na guerra e na forma como se comportaram no “pós-Marcelismo”.

É um trabalho vasto onde o seu autor esclarece aspetos metodológicos e a componente científica da investigação, procede ao enquadramento histórico da guerra para concluir que as autoridades portuguesas não desconheciam, quando se chegou a 1961, as condições naturais e ambientais em que a guerra se iria travar, e a tal propósito estudou a formação dos milicianos; descreve com exaustão a organização militar na guerra, escrutinando um conjunto de unidades de combate; analisa a forma como os oficiais conflituaram entre si, designadamente no período do PREC e apresenta por fim as conclusões. Pelo que é dado verificar em textos que circulam na Net, as teses do sargento-mor Godinho Rebocho estão longe de ser consensuais, tanto pela amostra das unidades estudadas como pela caracterização a que procede sobre os oficiais do quadro permanente ao longo da guerra.

O autor começa por entrevistar um conjunto de comandantes de unidades de combate e pede-lhes apreciação sobre três componentes: formação científica/cultural, vocação e experiência. O critério a que obedecem estas três componentes tem em vista ajuizar qual na prática a componente ou componentes que pesaram no bom desempenho. E discorre sobre a natureza do conflito militar a natureza das elites, as características da liderança, como se processa a cadeia de comando, etc. Na sequência do enquadramento do seu trabalho, repertoria o quadro histórico da descolonização, à escala mundial e as reformas militares ao longo do século XX até ao período que antecede o início da guerra. Do que investigou, concluiu que as cúpulas da Forças Armadas detinham o diagnóstico perfeito da situação quanto à necessidade de orientar o recrutamento e a formação dos quadros, num horizonte de guerra. E perde-se em consideração sobre a origem social do corpo de oficiais, contesta a tese exposta por diferentes investigadores de que os oficiais revoltosos provinham, pela origem social, de extratos humildes, dá por demonstrado que os militares não se comportaram nem se motivaram em função das suas origens sociais. E expende um juízo: “O maior, senão o único, problema das Forças Armadas Portuguesas durante todo o tempo da guerra de África, foi a falta de doutrinadores e reformadores quanto à sua organização e formação. Tudo o resto se resume a pequenas questões, de solução fácil e pontual. Mas a organização e formação tiveram de ser mantidas para satisfazer a classe média, razão pela qual se manteve uma hierarquia baseada nas habilitações literárias, de todo inconsequente. Destaca-se a classe média porque a classe alta nunca teve problemas: os seus filhos estiveram sempre em lugares seguros”. E mais adiante: “A organização e formação militares, durante a guerra de África, estiveram estruturadas e diferenciadas segundo as classes sociais, mas só na componente do serviço militar obrigatório. Na componente do quadro essa diferenciação não existia. A grande clivagem verificava-se entre oficiais de carreira e oficiais milicianos, sobretudo nas patentes de capitão. Tão evidentes e profundas eram essas diferenciações, que foi ali que se iniciaram, ou foi dali que partiram, as movimentações dos capitães: Puros e Espúrios, de carreira e milicianos, respetivamente”. E nada adianta se estas reivindicações e conflitos eram exclusivamente corporativas, de modo a que os capitães chegassem rapidamente aos tais lugares de gestão militar, afastando-se das missões espinhosas das operações.

É uma investigação onde se anda à lupa a saber quem e como frequenta cursos de formação, saber a origem social dos oficiais do quadro permanente no topo ou a caminho do topo. Com uma paragem demorada na Academia Militar em 1959, mas também na Escola Central de Sargentos, nas Escolas Práticas, averiguando qual a natureza da formação complementar por onde os oficiais eram habilitados, e procedendo de idêntica forma para a formação de sargentos e conhecimentos relacionados com formação em ação psicológica, e então detém-se nas tropas paraquedistas, de onde provém, assim as caraterizando: “Estes homens eram submetidos a rigorosas inspeções médicas, físicas e psicotécnicas. Eram provas muito seletivas: só os melhores as conseguiam superar. A formação das tropas paraquedistas, enquanto tropa de elite, acompanhou de muito perto a que foi seguida no Centro de Instrução de Operações Especiais para preparar as companhias de caçadores especiais. Se a formação era em tudo semelhante, o Exército não deu sequência àquela preparação, perdendo assim boas unidades, enquanto os paraquedistas não só a continuaram como a melhoraram progressivamente”. E detalha a formação dos paraquedistas.

E assim se chega à guerra de África e ao desempenho das elites militares. Socorre-se de um trabalho de John Cann, a cuja recensão já se procedeu aqui (“Contrainsurreição em África, O Modo Português de Fazer a Guerra, 1961/1974”*, por John P. Cann, Edições Atena). Aqui havia uma questão central que era a de, numa guerra subversiva, conquistar a população ou tê-la maioritariamente do seu lado, isto a par de manter baixos custos em guerra, o que, reconhece John Cann se ficou a dever à baixa tecnologia da guerra, à baixa intensidade da guerra, aos baixos custos com pessoal. E assim conclui: “A partir do que fica analisado e desenvolvido, forçoso é concluir que os altos comandos militares orientarem estrategicamente a guerra, segundo as melhores perspetivas, face aos recursos financeiros e humanos de que Portugal dispunha e o enquadramento internacional, que nos era totalmente desfavorável. Os erros e a falta de estratégia que influenciaram os resultados da guerra de África são fundamentalmente da responsabilidade dos políticos”.

E daqui parte para uma ponderação do sistema de forças, socorrendo-se de um exemplo extraído da Guiné. Recorde-se que uma das críticas mais apresentadas à investigação de Manuel Godinho Rebocho foi a limitação de fontes, nunca usando qualquer exemplo extraído de Angola, não invocando nada sobre o comportamento da Armada, etc.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 DE SETEMBRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P8741: Notas de leitura (271): Contra-Inssureição em África, 1961-1974, O modo português de fazer a guerra, de John P. Cann (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 23 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10710: Notas de leitura (431): "Crónica dos (Des)Feitos da Guiné", por Francisco Henriques da Silva (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10726: A minha CCAÇ 12 (27): Novembro de 1970: a 22, a Op Mar Verde (Conacri), a 26, a Op Abencerragem Cadente (Xime)...(Luís Graça)









Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Subsetor do Xime > 1970 > CCAÇ 12 > A sequência dramática de uma helievacuação, no decurso da Op Boga Destemida (8 de fevereiro de 1970). Pelos vestígios de queimadas, nota-se que estávamos na época seca, logo a foto será dos primeiros meses de 1970... O riquíssimo Álbum Fotográfico do meu querido amigo e camarada Arlindo Teixeira Roda (natural de Pousos, Leiria, a viver em Setúbal há décadas) não tem  legendas... Da trágica Op Abencerragem Candente (25-26 de novembro de 1970, já no final da época das chuvas), não tenho infelizmente qualquer imagem.

Fotos: © Arlindo Teixeira (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

A. Continuação da séria A Minha CCAÇ 12, por Luís Graça (*)... Estávamos com 18 meses de Guiné, e de intensa atividade operacional, desde que na segunda metade do mês de julho de 1969 fomos colocados em Bambadinca, como subunidade de intervenção ao serviço do comando do BCAÇ 2852 (até maio de 1970) e depois do BART 2917 (a partir de junho de 1970)...

Sobre a Op Abencerragem Candente já se escreveu muito e ainda não se contou aqui toda a verdade (nem se contará tão cedo...) . Traz-nos, a todos aqueles que participaram nesta tragédia, terríveis recordações... Há gente viva, que ainda sofre sempre que se fala aqui da Op Abencerragem Candente...

Hoje optarei pelo laconismo. Limito-me a reproduzir a o que vem escrito na história da CCAÇ 12. Um dia, não sei quando, hei-de escrever um poema em memória de todos aqueles que morreram no dia 26 de novembro de 1970, na antiga estrada do Xime-Ponta do Inglês, um dos sítios mais sangrentos da guerra no TO da Guiné... Paz às suas almas. Evoquei-os, discretamente, em poste recente, num texto poético sobre a antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, de má memória.  Fiz questão que este poste saísse hoje, 42 anos depois da Op Abencerragem Candente.










Excertos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1969/71.
Cap. II. pp-41-43.





Guiné > Mapa geral da província (1961) > Escala 1 /500 mil > Pormenor de parte do Setor L1 (Bambadinca), compreendido grosso modo pelo triângulo Bambadinca- margem direita do Rio Corubal - Xitole. com a posição relativa da sede de batalhão, Bambadinca (BART 2917, 1970/72) e das respetivas subunidades de quadrícula, localizadas em Xime (CART 2715), Mansambo (CART 2714) e Xitole (CART 2716).

 A vermelho as duas estradas que existiam em 1961: Bambadinca-Xime-Ponta do Inglês (interdita desde finais de 1968); e Bambadinca-Mansambo (aquartelameento construído de raíz em 1968, pela CART 2339)-Xitole (, estrada que seguia  depois para o Saltinho, e a partir aí estava interdita). 

Para se ter uma noção da distância, os obuses 10.5 do Xime não conseguiam bater a zona da Ponta do Inglês/Foz do Corubal [mapa de Fulacunda), que tinha a norte a rica bolanha do Poindom e um núcleo populacional (balanta e beafada) controlado pelo PAIGC,desde a destruição, pelas NT, de Samba Silate e de Poindom, em 1963. A guerrilha mostrava-se sempre muito aguerrida na defesa da sua população, face a ações de contrapenetração das NT (com exceção da grande Op Lança Afiada, 8-19 de março de 1969, que mobilizou cerca de 1300 efetivos, entre militares e carregadores civis).______________

Nota do editor:

Guiné 63/74 - P10725: Parabéns a você (501): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil da CART 2412 (Guiné, 1968/70)

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Nota de CV:

Vd. último popste da série de 24 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10714: Parabéns a você (500): António (Tony) Levezinho, ex-Fur Mil da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

domingo, 25 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10724: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (14): 15.º episódio: Hora de voltar ao palco da guerra

1. Em mensagem do dia 22 de Novembro de 2012, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), enviou-nos mais um episódio da sua campanha no K3, dias que fazem parte dos melhores 40 meses da sua vida.


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

15.º episódio - Hora de voltar ao palco da guerra

E quando já me estava a adaptar àquela indolência pacífica civil, tive que partir e fi-lo cheio de "caguincha", pois que um homem "adormecer" numa luta, vá que não vá, é sadia a forma de o fazer, se honrosa, mas "ficar-se" sem mais nem ontem, só porque a jigajoga, resolve cair... é chato.

Parti pois num Caravelle que apesar de tudo era bem mais confortável que o Skymaster, cujas poltronas eram uma lona estendida ao comprido. Essa coisa do terror que me invadia quando andava nestas invenções que andam lá pelos ares, permanece e sem ser nos helicópteros lá da tropa, nunca mais me apeteceu voar. Aliás mesmo em qualquer veículo, seja ele o já citado passarão, seja até num veículo de tracção às duas rodas e puxado quer seja por um mular, asinino ou cavalar, seja enfim em qualquer outro, salvo se for eu a pilotar, não me sinto descansado.

Recordo até que quando ia com o meu sogro, taberneiro lá nos Fóros do Mocho-Montargil, quando íamos repito, buscar uns barris de 50 litros, na carroça e a Cabeção, terra onde continua a haver o melhor tinto do Mundo, tinha que ser eu a conduzir senão não ía. O trajecto era porreiro, por ali pelos meios do mato sem estradas, caminhos esburacados, mas a questão é que não havia outra forma. Curiosamente no regresso não se dava por nada e sempre pensei se não seria a mula que bebera o que não devia.

Mais tarde e com o primeiro bólide que comprei em 1970, um Mini-Morris, a coisa melhorou qu'até alcatrão já se via aqui e ali e trazíamos dois barris em cada viagem. Uma vez, conseguimos meter um lá atrás, mas para o tirar foi uma carga dos trabalhos e só foi possível desaparafusando o banco da frente pois que o teimoso, entrar entrou, sair não queria. Para encher um, demoravam-se cinco horas. O néctar saía por uma palhinha colocada no fundo da talha de barro, escorripichava lentamente após ser purificado ao passar pela "mãe" depositada no fundo e era tão lindo... tão puro... tão divinal... que mais apetecia a gente afogar-se mesmo ali.

O processo era realmente moroso, só que como já o sabíamos, levávamos umas farinheiras para assar, umas cacholeiras idem aspas, uns pastelitos de bacalhau, uns coelhitos, um ou dois ouriços e azeitonas... enfim todas as velhacas habilidades para uma consentânea noite bem passada, observada que era a obrigação de ir provando aquela maravilha tinta, feita, por quem sabe, com carinho. E dava cá uma pedalada !!!  Os bons apreciadores sabem do que estou a falar.

Ora bem... pus-me pr'áqui a divagar e até me olvidei ao que vinha. Recapitulo: Portanto, horas de voltar... voltei. O avião cheio de gentes ansiosas quanto eu. Umas para visitar os familiares militares, outros como eu, regressávamos ao paraíso, após as merecidas férias, decerto.

Chegado a Bissau, tive a sorte de ter uma vaga para daí a duas horas, destino Farim. Tratava-se duma avioneta que fazia carreira e que levava seis a oito pessoas, mais as cabras e galinhas que houvesse, bem como qualquer e toda a carga que se quisesse.

Pelo aspecto não via motivo para recear viajar naquilo, pois bem se via que era bem tratado e oleado. Uma das asas tinha sido recentemente consertada que bem se notava estar atada com arames, por baixo do motor pingava o Castrol e o interior estava impecávelmente sujo e com restos dos galináceos e de caprinos e dejectos de porcos, ao que me pareceu.

Também... por trezentos e cinquentas querias o quê ?

Ala que se faz tarde, alevantou...

(continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10705: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (13): 14.º episódio: A estranha ausência da guerra e dos camaradas do K3

Guiné 63/74 - P10723: Como estive tão próximo de ter ido para a 38.ª CComandos (Henrique Cerqueira)

1. Mensagem do nosso camarada Henrique Cerqueira* (ex-Fur Mil da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, 1972/74), com data de 21 de Novembro de 2012:

Olá Camarada Carlos Vinhal
Hoje resolvi contar uma estória relacionada com a minha recruta nas Caldas da Rainha.
Esta estória poderá não dizer muito à nossa tertúlia, no entanto e como sempre fica ao teu critério publicar ou não.
Por agora é tudo.

Um abraço e saudações meus e da NI.
Henrique Cerqueira


Como estive tão próximo de ter ido para a 38ª de Companhia de Comandos 

Caros camaradas da Guiné e em especial todos os Comandos da 38ª, este texto pretende apenas e só ser mais um relato da minha passagem pela vida militar. Serve ainda para prestar aqui a minha homenagem a todas as tropas especiais e muito particularmente aos Comandos da 38ª que estiveram na Guiné entre 1972/74.

Pois é, eu estive quase, quase a fazer parte dessa valorosa Companhia de Comandos. Quer dizer, primeiro teria que provar durante a formação que seria merecedor da "Famosa Boina e Crachá", mas o que é certo é que essa situação não estava nos meus planos e eu explico o porquê.

Durante a recruta nas Caldas da Rainha, RI5, era frequente se comentar em "jornal da caserna" que a malta iria ser selecionada para os Comandos e quem fosse escolhido iria para Lamego e após a recruta seria incorporado numa companhia (que mais tarde se veio a saber ser a 38ª) que iria primeiro fazer o IAO numa província Ultramarina e só depois seria enviada para a Guiné. É então que num belo dia lá apareceu uma equipa de Comandos vestidos a rigor, nas suas fardas de camuflado, e com aquele aspeto altivo que todos nós conhecemos das tropas especiais. Confesso que me senti atraído por tal postura militar.

Foi dado inicio às provas de seleção e lá fomos executando aqueles percursos que toda a malta conhece que é a famosa pista de obstáculos. Conforme iam decorrendo as provas eu ia magicando como era que havia de me safar de ser selecionado, pois que os meus planos para o futuro eram bem diferentes daqueles que se estavam a "desenhar " naquela manhã de 1971. Foi então que quando nos aproximamos do famoso Pórtico eu arrisquei falar com o oficial (penso que era um Tenente). Perfilei-me todo e pedi licença para falar com ele. O oficial disse logo:
- Se pensas que te safas do pórtico tira lá o cavalinho da chuva que tens mesmo que ir lá para cima.

Eu respondi :
- Não meu Tenente, eu não quero é ir para os Comandos. Ele então mirou-me de cima a baixo e questionou porquê e se tinha medo de ser Comando ou de subir ao pórtico e que me deixasse de "mariquices".

Então arrisquei mais uma vez e disse :
- Meu Tenente eu não tenho medo de nada, só que já sou casado e o meu filho nasceu há três semanas e como tal eu pretendo fazer a recruta e depois a especialidade que me tocar e de imediato ir para o Ultramar, pois é esse o destino quase certo de todos nós e assim abrevio no tempo que me está de certeza destinado.

O que é certo é que o Tenente olhou para mim e disse :
- Tens cinco minutos para subir a corda, percorrer o pórtico a correr e saltar para a areia e depois se vê se serás Comando ou não.

Seu dito, meu feito, até parecia que já tinha feito aquilo milhares de vezes e logo que terminei o Tenente vaticinou :
- Boa, serás um excelente Comando e virou-me as costas.

Caí de "cu", mas que fazer?
Lá fui fazendo o resto dos obstáculos, mentalizando-me que iria mesmo para os Comandos.
No final do dia, o meu comandante de pelotão, que era um Alferes já em segunda comissão (era readmitido, segundo ele para continuar a estudar), disse-me que não sabia o que tinha acontecido mas que a minha estratégia tinha resultado, o Tenente dos Comandos não me tinha selecionado, de acordo com a minha vontade. Claro que fiquei satisfeito e lá segui o percurso que me foi destinado, ou seja Caldas da Rainha, Tavira, Elvas, Évora e depois Guiné. Felizmente cá estou hoje a contar esta estória que possivelmente só é importante para mim.

Abro um parenteses para homenagear aquele meu comandante de pelotão, porque nunca encontrei um superior tão cheio de humanidade e compreensão como ele. Lamentavelmente não me lembro do seu nome mas guardo o momento feliz de, no final da recruta, o pelotão se juntar e comprar um volante de competição para o seu carro que era um MINI.

Quanto  Famosa 38ª, tive dois encontros com eles no mato e uma outra vez com alguns em Bolama aquando da minha formação para as companhias Africanas numa das quais vim a ingressar, a CCAÇ 13, em Bissorã.

Quero dizer que eu sempre tive a perceção que nunca iria ser um grande militar e muito menos um militar de tropas especiais. No entanto sempre senti orgulho em ser amigo de antigos Camaradas de tropas especiais. Senti ainda grande orgulho quando o meu filho Miguel (que até nasceu aquando do episódio contado) foi para a tropa e ingressou na Policia Militar, sendo colocado em Oeiras na sede da Nato. No entanto, tal como eu, e mesmo com convite para continuar, ele não se sentiu atraído pela vida militar.

Só me resta dedicar aqui um abraço a todos os Comandos, e em especial aos Comandos da 38ª.

Henrique Cerqueira
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10292: Blogoterapia (214): A minha Praia (Henrique Cerqueira)

Guiné 63/74 - P10722: Memórias de Manuel Joaquim (9): Na guerra, nunca dei um tiro!... (só dei um)

1. Mensagem de Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 20 de Novembro de 2012:

Meus caros camaradas editores:
Junto envio mais uma historieta da minha vida de militar na Guiné.
É muito pessoal mas é capaz de ter algum interesse. Talvez!
Como sempre, entrego-o totalmente ao vosso critério de publicação.

Votos de muita saúde e boa disposição.
 Manuel Joaquim


Na guerra, nunca dei um tiro! … (só dei um)

Não, não venho dar “uma de bonzinho” apesar de ser contra guerras, principalmente ter sido contra a Guerra do Ultramar em que participei. Nunca dei um tiro porque não me foi preciso, porque decidi só o fazer no limite das circunstâncias. Na prática, até “dei” tiros, e muitos, já que havia gente que o fazia a meu comando. Mas sempre fica cá dentro a frase salvífica que por vezes ouço (leio), “estive na guerra mas nunca dei um tiro!” muitas vezes como vanglória de uma atitude tomada mas que afinal era fruto das circunstâncias, as de nunca terem enfrentado o inimigo, até de não terem vivido em área de combates. Não foi o meu caso, com 67 acções com trocas de fogo com o IN (contava-as e arquivei), muitas delas não passando de uma espécie de perigosas saudações.

Vejamos esta fotografia da qual não sei quem foi o autor, tirada em 1964 durante a minha recruta no CISMI:

CISMI, Tavira, Maio/1964

Olho a foto e tento recordar-me do momento. Não consigo perceber o porquê de me ver em “traje” militar de passeio e o outro pessoal (da minha secção) em “traje” de combate! Tudo leva a crer que me despachei mais cedo deixando-os a brincar à guerra e à fotografia enquanto o que eu mais queria era sair do quartel o mais rápido possível. Ao voltar à ”parada” encontrei o grupo nesta pose, fiz-me intruso e fiquei a destoar naquela “agressividade” brincalhona, deitado, cabeça apoiada num dossier com apontamentos e escritos pessoais, como que a dizer que aquilo não era nada comigo. Lembro-me da reação tida quando vi a foto pela primeira vez e vi alguém a apontar-me a arma em vez de posar como os outros. Assustei-me com a visão, temendo nela um prenúncio do meu futuro como personagem a eliminar, tão desalinhada ela estava da política oficial.

Com quase quatro meses de recruta, a personagem deitada sugere um aceitar passivo da situação, uma rendição, uma entrega à imolação. Nada de pensar em fugir, tinha entregado os pontos, tudo estava consumado. A sua verdade pode estar na aceitação da vida militar mas não desistindo de si mesma, lutando pelas suas ideias, usando tiros de palavras e não de armas.

Nunca dei um tiro em combate, não matei nem feri ninguém mas não me vanglorio. Era adversário ferrenho da Guerra do Ultramar, com muitos momentos de militância (mesmo da clandestina), mas como combatente não devo nada a ninguém, principalmente àqueles que apoiando o regime político de então deram “às de vila Diogo” e/ou se encaixaram nas áreas de comando e serviço militares ou em actividades de carácter civil. Preciso de dizer isto porque de vez em quando ainda continuo a ser vítima de ataques do tipo de “falta de patriotismo”, de também ser “culpado” das desgraças de muita gente, devido às posições político-ideológicas que tomei antes, durante e depois de ter participado na guerra, digo agora, Guerra Colonial.

A minha utopia como combatente era poder haver combates mas não morrer ninguém, quer dum lado quer do outro, como que uma guerra encenada para tapar os olhos aos apoiantes de ambos os lados da contenda, enquanto se desenvolveriam negociações para a independência das respectivas colónias. Será para rir, eu próprio o faço, mas olhem que há muitas utopias irrealizáveis que movimentam centenas de milhões de seres humanos!

Sujeitei-me ao sacrifício, à imolação numa guerra em que não me revia politicamente mas sinto que cumpri as ordens a que também decidi, disciplinadamente, sujeitar-me.

“Louvo o Furriel Mil.º de Infª. MANUEL JOAQUIM, da Companhia de Caçadores nº 1419. Por ter demonstrado ao longo da comissão muito zelo e desejo de bem servir, tendo desempenhado com muita competência todos os serviços de que o encarregaram. Como Comandante de Secção revelou excelentes qualidades de combatente, dando ordens certas e precisas, mesmo nas situações mais difíceis, em que revela muita calma e perfeita noção da situação, conduzindo os seus homens com perícia e conscienciosamente para lugares mais convenientes. Por acumulação de serviço vem desempenhando há vários meses, DESINTERESSADA E VOLUNTARIAMENTE, as funções de professor das Escolas Regimentais tendo ministrado aulas quer a soldados quer às crianças nativas, nunca revelando cansaço ou quebra de vontade. Pela maneira como trata com todos tem-se imposto à consideração geral, sendo o seu esforço digno de menção. (O.S. nº78 do Bat. Caç. 1857 de 1/4/67)".

A minha reacção a este louvor lê-se numa carta enviada na altura à namorada: “Já com certeza reparaste na folhinha que vai junta. Saiu no dia 1 de Abril mas não foi “gorro”. Louvaram-me mesmo. Fiquei deveras surpreendido. Nunca esperei que isto acontecesse. Aconteceu e talvez para surpresa tua aqui vai. Durante todo este tempo fiz todos os possíveis para passar despercebido perante os chefes. As razões sabe-las tu. No fim surge-me isto. Surpresa!”

Especializaram-me em Armas Pesadas de Infantaria. Sou mobilizado para a Guiné dentro de tal especialidade mas… quais canhões sem recuo, morteiros e metralhadoras pesadas, quais quê!, “pega lá nesta canhota e desenrasca-te!”, fiquei com uma G3 na mão e uma secção de “atiradores”. E tive de me desenrascar mesmo na minha “arte” de guerra, afinal o que também aconteceu à generalidade das forças combatentes, aquilo era uma guerra de desenrascanço, de vitória em vitória até à previsível derrota final. Que só não aconteceu porque se viu que a tal capacidade de desenrascanço estava a “pifar” e … acabou-se com a guerra.

Dizia eu acima que nunca tinha dado um tiro em combate. Não é bem verdade mas, se calhar, é. Segue a história: 

A ligação por estrada Bissorã-Olossato tinha uma ponte a dois terços do percurso, num local isolado perto de Maqué e a alguns quilómetros do Olossato, ponte que entretanto tinha sido destruída pelo IN, dificultando enormemente os abastecimentos ao Olossato, principalmente na época das chuvas. Para a reconstrução da ponte e sequente segurança construiu-se junto dela uma espécie de abrigo fortificado. Na altura foi a tropa de Bissorã que ficou a ocupar o tal abrigo e calhou ao meu pelotão tal tarefa durante o mês de Julho de 1966.

O abrigo era formado por um edifício constituído como que por duas caixas concêntricas com uma diferença entre elas de 1,5m de lado. Entre elas ficava, assim, um espaço-corredor fechado, um abrigo onde ficavam os beliches para dormir e , abertas nas paredes exteriores, as seteiras para vigilância e acções de fogo da G3. Ao centro da construção ficava um pátio ao ar livre.

Ora numa certa noite o IN resolveu atacar. Devia ser numeroso mas não percebi o que ali tinham vindo fazer pois só utilizavam armas ligeiras que só nos incomodavam com o barulho. Do nosso lado a resposta era do mesmo nível, tiros e tiros para o vazio da escuridão da noite. Aquilo foi um descarregar de balas, de parte a parte, que a certa altura me começou a irritar, não tanto os tiros do inimigo mas os nossos que faziam um barulho ensurdecedor dentro do abrigo.

Como de costume, eu não fazia fogo e conservei-me deitado na cama superior do beliche, dando uma ou outra ordem, principalmente para terem calma e não se ferirem uns aos outros. Mas, naquela noite, não sei o que me deu. Rodo na cama, volto-me para uma seteira perto, ajoelho e enfio nela o cano da arma, “estes gajos nunca mais se calam!” e disparo!...

Um estardalhaço e um “ataque” de bocadinhos de qualquer coisa que pôs os próximos em pânico ao serem atingidos. “Meu furriel, conseguiram acertar no buraco! Devo ter levado com um bocado de cimento na cara!” Eu também apanhei!, diz outra voz. “E eu também, seus filhos da puta! Que sorte, olhem se a bala tinha entrado!” e outras mais frases do género. Ainda houve vozes que se aproximaram da verdade perguntando se alguém tinha disparado contra a parede. Do seu furriel é que não desconfiavam de certeza porque a ele nunca o tinham visto fazer fogo. Ninguém se acusou e ficou a história de uma bala do IN ter acertado num buraco do abrigo e, por sorte, não ter atingido ninguém.

Eu, calado que nem um rato, sabia bem o que tinha feito. Teria apontado mal na escuridão e disparado contra um lado da seteira?! Pode ter sido mas vou mais pela falta de limpeza da arma já que tinha acabado de levar dela um belo coice quando lhe puxei o gatilho.

No meio da conversa começaram a ouvir-se fortes rebentamentos à nossa volta, os obuses do Olossato vieram calar de vez as armas do inimigo. E lá voltámos para a cama.

Nenhum dos meus camaradas de pelotão soube deste meu feito! Que me desculpem os meus soldados pela minha falta de coragem para lhes contar o que tinha acontecido. Mas reparem, eu era de Armas Pesadas e nunca me senti atraído por aquele “canhangulo”, chamado G3 ( eh eh eh!). G3, uma arma com muitos amantes, a quem também peço desculpa por ter tratado tão mal a sua amada.

Manuel Joaquim
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10587: Memórias de Manuel Joaquim (8): Bissau, 1965: Pourri avant d’être mûri

Guiné 63/74 - P10721: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (8): Você agrediu-me?

1. Mensagem do nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), com data de 23 de Novembro de 2012:



Olá Camaradas

Aqui vai a minha colaboração para o blog, no âmbito da série "A Minha Guerra a Petróleo".

O texto já foi submetido a exame prévio pelo Orlando Pauleta e vem na sequência do texto "Ai que Me Dói Tanto!" (*)

Creio que a leitura deste primeiro, facilita a compreensão do que enviei primeiro.

António José Pereira da Costa

A Minha Guerra a Petróleo (8)

Você agrediu-me?

A minha aventura com as minas não terminou com o ferimento do Paiva. Antes pelo contrário, ainda havia muito terreno a palmilhar. Agora, éramos apenas dois – o Ramos e eu – a conhecer o campo. Na única decisão lúcida possível, por determinação do Batalhão, tínhamos começado a levantá-lo e, até o CAOP “descobrir” o que se passava, tínhamos aberto uma brecha, com início no buraco do par de minas que vitimara o Paiva. Uma brecha não sinalizada é uma situação muito perigosa, em qualquer campo de minas e muito mais num implantado em terreno onde a natureza muda constantemente e com grande rapidez.

As referências, todas naturais, poderiam perder-se facilmente, com as consequências que se imaginam. Se o processo de revisão ou de levantamento não se apressasse, corríamos o risco de não conseguir identificar o local onde a “segunda secção” do campo tinha início. Preocupava-me o que pudesse acontecer ao Ramos. Embora um acidente fosse sempre uma hipótese a considerar, nunca me tinha passado pela cabeça que um, nos moldes do que vitimara o Paiva, pudesse acontecer. Admitia mais a possibilidade de um erro de manipulação, uma explosão no momento da colocação da cavilha, ou até a possibilidade de o IN mudar a posição de uma mina que tivesse detectado. Mas aquela, não… Como já disse, o Ramos era casado, vivendo na tabanca com a mulher e o filho de tenra idade e eu começava agora a imaginar a cena que teria lugar se ele viesse a ficar igualmente ferido.

Hoje, à distância no tempo, estou em crer que ninguém, nos comandos superiores, sabia, com clareza, o que fazer perante a situação que se gerara. As minas eram uma coisa “chata”, que existia e com que era necessário contar, mas não era uma coisa intensamente estudada e aplicada com rigor e atenção. Eu estava em final de comissão e, por muito que retardassem a minha partida, não havia a menor garantia de que a situação se resolveria. O Batalhão, mais lucidamente ou procurando alijar a sua parte da responsabilidade, procurara resolver o problema. Mas o CAOP 2 não estava pelos ajustes, talvez por não querer que as suas decisões fossem postas em causa.

Por isso, depois de ter simulado não “ver” o que se passava, deu ordem ao Batalhão para parar com o levantamento das minas. Foi finalmente tido em conta que o número de especialistas era insuficiente para a tarefa a desempenhar. Daí, que eu tenha sido informado de que a verificação do campo ia continuar com o apoio de dois especialistas – um cabo, Fernando Oliveira Neves, “o Oliveira”, e o furriel Orlando Pauleta – do Pel Sapadores do Batalhão. Quase em simultâneo, recebi notícia de que o meu substituto estava para chegar.

O encontro com o meu substituto foi verdadeiramente surrealista. Veio na “coluna grande” – a coluna Bissau-Farim – e eu procurei-o com a ansiedade de quem está farto e não sabe quando se verá livre daquela situação, que se aproximava do absurdo, tanto num nível a que podemos chamar local, como, muito provavelmente, a nível mais geral. Tinha os 24 meses completos e, embora o oficial de operações do Batalhão me tivesse informado que o meu substituto não seria capitão, não estranhei a situação.

Já há algum tempo que era minha convicção de que o potencial humano, pelo menos no que aos quadros dizia respeito, começava a ser insuficiente para as necessidades da “Guerra”, tanto em quantidade como na preparação ministrada ou recebida. Não o encontrei e a coluna acabou por partir em direcção ao Norte. Pensei: “Ainda não foi desta”. Só então vi, a meio da “avenida central” de Mansabá, um militar de camuflado, amparado a uma G3 e com duas malas ao lado. Estava longe, por isso mandei uma viatura buscá-lo. Recebi-o com o calor possível e, depois de instalado, fomos almoçar. Apresentei-o aos graduados da companhia e notei o seu ar não distante, mas fechado. Pouco conversador, talvez por estar desmoralizado, parecia remoer uma certa dose de revolta. No fundo acontecia a todos os que chegavam, pensei. O contacto com a terra era desmoralizante (“Afinal a Guiné é isto? É por isto que me venho arriscar?”) e o não conhecer a “Guerra” e ouvir falar dela, com certa “fluência”, por quem já lá estava, era traumatizante. Pensei que tudo iria passar e que, em breve, estaria adaptado.

 Avenida principal de Mansabá

Foto do Alf Mil Alfredo Montezuma do BCAÇ 2885

Tinha que lhe passar todas as minhas funções e, sabendo que era miliciano, achei que a parte administrativa seria determinante. O primeiro-sargento Canelas e a sua equipa de “administrativos” dariam boa conta do recado. Pensei, por isso, que por aí não surgiriam problemas, mesmo que tenente Tenreiro não fosse muito conhecedor das coisas da “guerra a petróleo”. O mesmo sucederia com a parte operacional, onde os quadros da CAr. mostravam já uma experiência considerável e um bom conhecimento das particularidades da zona de acção.

Neste âmbito, o problema mais importante era o campo de minas. O Tenreiro não sabia uma letra do assunto, o que complicava a tarefa. Contudo, entendi que, como comandante da companhia, deveria saber, ao menos, onde é que elas estavam, com alguma precisão. Como já disse, na parte administrativa da companhia, o Canelas acabou por vir, delicadamente como era seu timbre, informar-me de que ele não entendia as explicações que lhe eram dadas. Ficava apático, não fazia perguntas, nem sequer das que confirmassem a sua ignorância na matéria, mas o pior era que não parecia ter entendido nada dos ensinamentos que lhe eram dados.

Por outro lado, dos oito quartos-duplos de que o alojamento para oficiais dispunha, ele escolhera ficar no quarto com o alferes Antunes, talvez por ambos terem passado por Coimbra: o Antunes em matemática e ele em geografia, com o curso concluído, suponho eu. Ao fim de poucos dias, o Antunes revelou-me que começava a sentir-se pouco tranquilo e até intimidado com a presença do novo habitante do quarto. Não o tomei a sério, mas quando ele mostrou a cama onde o tenente dormia fiquei estupefacto. Os lençóis, enrolados em trouxa, amontoavam-se sobre o colchão e o travesseiro estava apoiado à cabeceira na “posição de tiro anti-aéreo”. Quanto à roupa pessoal, estava arrumada com certa, digamos… displicência.

Além disso, relatou-me um episódio que me preocupou e que não consegui explicar. O Tenreiro tinha-lhe mostrado os pés com umas pequenas feridas que lhe disse serem causadas pela falta de “umas anfetaminas” que tomava “lá na Metrópole”, mas que agora tinha deixado de tomar. Pensei que, com jeito, poderíamos convencê-lo a mudar de quarto, onde pudesse instalar-se mais à sua vontade, mas, por mais voltas que desse, eu não conseguia determinar a origem das tais feridinhas.

Uma manhã, ao pequeno-almoço, contou-me que tinha tido uma noite de insónias e de muita sede, mas que tinha resolvido este último problema “na mercearia”, onde conseguira obter água. Admiti que tivesse ido ao bar, à sala de praças ou, pior do que isso, que tivesse saído do quartel e ido ao restaurante do senhor Zé e da D. Olinda, cuja sorte comecei a lamentar por terem sido acordados de madrugada para a prática da virtude bíblica de “dar de beber a quem tem sede”. Perguntei-lhe onde tinha ido exactamente e apontou-me para o depósito de géneros da companhia. Do mal, o menos… já que os fiéis do depósito dormiam dentro dele.

Este pequeno detalhe fez-me crer que o meu substituto estava bastante desenraizado. De outra vez, o Serras – outro alferes – contou-me que o tinha encontrado, olhando muito fixamente para uma das janelas da messe. Ao ser surpreendido, virou-se para ele com um ar sério e disse-lhe:
 – Jesus não está aqui!

Como é do conhecimento geral, não estava, de facto. Ou estaria? É uma coisa que nunca saberemos, ao certo. Por mim, creio que, tendo tanto sítio para estar, às vezes até passava por ali, mas em permanências curtas… O Serras é que não achou graça e revelou-me as suas apreensões quanto ao grau de sanidade psíquica do Tenreiro. Por mim, comecei a concluir que algo de grave se passava. Admiti que simulasse ter vindo “já apanhado de casa” ou, pior, que fosse mesmo um doente que o recrutamento se recusara a filtrar. Esta última hipótese preocupava-me seriamente por poder contender com a minha rendição, mas era, cada vez mais, notório que era necessário fazer algo.

Aproveitei uma ida a Mansoa para pôr o comando ao corrente da situação, embora eu não soubesse bem identificar que contornos ela tinha. Foi então que fiquei a saber que estagiara, como alferes, em Angola e que não tinha sido promovido a capitão, à data de reembarque, como era de lei, por falta de condições estatutárias. Quais seriam, não me explicaram. Exclui os motivos políticos, pois não me pareceu que fizessem o seu estilo, e pensei que a situação tivesse a ver com uma certa falta de robustez física. O Tenreiro não era propriamente um atleta, mas nunca supus que a parte psíquica tivesse tanta preponderância na situação que se criara.

Tendo recebido ordem para continuar a verificação do campo de minas, resolvi aproveitar para lho ir “passando”. Éramos, agora, quatro a operar aquela máquina de morte e o meu substituto ficaria com uma ideia da localização. Poderia ser importante durante a realização de um patrulhamento, onde o Ramos, por acaso, não fosse, uma vez que os dois sapadores do Batalhão não estavam, em permanência, em Mansabá.

No dia 9 de Julho de 1973, lá fomos até Mamboncó. Descemos ao local do campo e começámos a pesquisar a partir da primeira mina existente, em direcção a Sul. O Tenreiro, com o mapa nas mãos, ia ficando “familiarizado” com a localização das minas. Segundo as indicações que nos ia dando, nós, os quatro, íamo-las destapando, verificando o estado de conservação e voltávamos a tapá-las. Admitíamos a possibilidade de ter de substituir uma ou outra que nos levantasse suspeitas de mau funcionamento e, por isso, tínhamos levado dois canudos com minas. As minas M-35 eram fornecidas em tubos de cartão que continham umas cinco ou seis, cada um. A certa altura veio a frase que nos fez gelar:
 – Em que mina é que estamos agora?

Tinha-se perdido. E nós a jardinar no meio daquele “lago de nenúfares”. Orientámos cuidadosamente o croqui e, pelos azimutes e medidas para as referências, localizámos a mina a partir da qual iríamos continuar. A partir daí, o cabo “Oliveira” passou a ser o portador do croqui e o Tenreiro apenas espectador hipoteticamente interessado. E fomos progredindo até que resolvi dar os trabalhos como terminados. Por experiência, tinha concluído que o cansaço – acrescido, naquelas condições de trabalho – era inimigo da concenttação e a distracção é algo que, quem trabalha com minas, deve evitar, a qualquer preço. Sei hoje que a perda constante de água e sal criava condições para que o nosso nível de concentração diminuísse.

O Ramos e eu saímos do campo e começámos a equiparmo-nos. Os dois sapadores do Batalhão estavam a verificar a “última” mina daquele dia. De repente, uma explosão. Olhei para o sítio onde ambos estavam. O Pauleta de pé, mas dobrado para frente e com as mãos abertas para trás, ao lado do corpo não se mexia. Mas o cabo caíra no chão e contorcia-se num esgar de dor, gritando:
– Eu nunca mais vejo o Sol!

Foi o que, na altura, me mereceu mais atenção, mas, de acordo com as informações de que disponho, sei que, felizmente, não ficou com a vista afectada. Uma lesão num dos ouvidos determinou a sua baixa ao HMP, no dia seguinte, para ser assistido no serviço de otorrinolaringologia, com posterior regresso à Guiné, logo que foi considerado como “curado”. O ferimento mais sério tinha-o o Pauleta que perdeu um dos olhos.

Num primeiro relance pareceu-me ver um cabo eléctrico, semi-enrolado, no chão. Deu-me até a ideia de que estava um bocado descamisado, como dizem os electricistas. Por momentos ocorreu-me a ideia de uma armadilha do IN ou de uma explosão electricamente comandada. O PAIGC não tinha este hábito, mas, sendo apoiado por estrangeiros, poderia ter sido aplicada esta técnica, que começava a surgir em diversos TO mundiais.

Aproximei-me e vi a “pica”, de verguinha de ferro, que se encaracolara com a potência da explosão. O punho, feito de num emaranhado de adesivo encarniçado, foi o que me tinha sugerido o cabo eléctrico que, afinal, não existia. Há horas de azar e aquela fora uma delas. A ponta da “pica” acertara, em cheio no perno da espoleta de uma das minas do par ali enterrado. Da explosão de ambas resultara a invulgar deformação da “pica”. O Ramos e eu ajudámos os dois feridos a sair da área perigosa e eu pedi ao tenente Tenreiro que recolhesse as armas, os equipamentos que lhes pertenciam e os “canudos” das minas não utilizadas. Ficou parado. Estático, mesmo. Gritei-lhe e ele balbuciou:
–  E as minas?

Larguei o Pauleta. Fui-me a ele, estiquei-lhe os braços e pus-lhe os materiais ao colo. Depois, enfiei-lhe um pontapé no sítio onde as costas mudam de nome para o pôr a andar para as camionetas que estavam na estrada. Só então começou a reagir e, voltando-se para mim, perguntou:
– Você agrediu-me?”
– Agredi, sim! Vá pôr isso às viaturas e depressa.

Ele foi e não voltou. Depois, foi a corrida para Mansoa, à velocidade que a estrada permitia. À chegada, o oficial de operações perguntou-me o que sucedera.
– Toma lá mais dois para a corda do sino. – foi tudo o que me ocorreu responder.

Depois contei o sucedido e queixei-me da inacção do meu putativo substituto. Desta vez não houve comentários desajustados do meu superior hierárquico (que nem se aproximou de nós) e não me lembro de ter visto ninguém do CAOP a perguntar o que quer que fosse. A partir daqui era o Batalhão quem tratava dos feridos. O Tenreiro, perturbadíssimo, ficou em Mansoa, quando regressámos a Mansabá. Eu nem sabia o que pensar da situação que se criara. O campo acabara de fazer mais duas vítimas, nas nossas tropas, e eu não sabia o que fazer. Tinha a sensação de que tudo voltara à estaca zero, mas o que mais me danava era eu ter sido contrário àquela manobra, que se estava a revelar completamente contraproducente, e alguém ter insistido para que eu prosseguisse com ela. O que fazer?

Como já disse noutro local, o Ramos e eu, devidamente autorizados – assinale-se – desmontámos aquela inutilidade, sem mais percalços. Deus (às vezes) estava ali, afinal.

Contaram-me que o tenente Tenreiro, depois de eu ter saído de Mansoa, foi ao médico do Batalhão. Este era um minhoto bonacheirão e gordo que suava desalmada e permanentemente. Quando lhe perguntou de que se queixava, o Tenreiro disse que suava muito e que não se dava bem com o clima. Aí foi interrompido pelo médico que lhe mostrou a camisa encharcada e disse:
– E eu ? Você acha que eu me dou bem com o clima?
– Ora tenha calma e verá que se habitua!

O Tenreiro não se deu por vencido e pediu para ser evacuado. O médico, perante este pedido absurdo, explicou-lhe que, se quisesse, poderia ir a Bissau e, nas urgências do hospital, atirava-se para o chão, gritava que estava doente e podia ser que fosse evacuado.

O doente mudou de maleita e pediu uma consulta de ginecologia. O médico, ainda com alguma paciência, procurou confirmar o nome da consulta. Perante a exacta confirmação, relembrou-lhe que estavam numa consulta médica, que estava a trabalhar e terminou dizendo-lhe:
– Eu até admito que goze comigo, mas com os dois pés, é que não!

O médico era realmente uma pessoa bem-humorada, que fazia bom ambiente e de quem toda a gente era amiga. Vendo que o doente apontava para os “genitais”, mandou-o baixar as calças e verificou que, efectivamente, fora operado naquela área, mas um varicócelo, cuja cicatriz não tinha qualquer indício de poder dar queixas. O doente não conseguiu explicar as razões do seu mal, que justificassem a frequência de consultas daquela especialidade que, naquele tempo, era impossível serem frequentadas por quem nascera homem. Por isso, o médico entendeu despedi-lo. Já à saída, o tenente voltou atrás e, debruçando-se sobre a mesa do médico, exclamou:
– Ah! E também não vejo bem da vista!

Não teve tempo de prosseguir. O médico saiu de trás da secretária e, aos gritos, expulsou-o do gabinete. Não sei exactamente porquê. Talvez a oftalmologia não fosse a sua especialidade…

Uns dias depois, fui chamado ao Batalhão, onde me foi entregue uma nota, em envelope fechado, para levar, em mão, ao QG. Nunca li a nota e o oficial que me atendeu, reconhecendo-me e, conhecendo a minha história, ironizou:
– Olá ilustre guinéu!
– Só se for por naturalização  –respondi.

Olhando para o envelope, entendeu melhor levar-me ao chefe da repartição. Este devia ser alérgico ao mato e seus derivados. Ao ver um capitão de camuflado e com um envelope na mão, nem sequer me cumprimentou. Eu bem tentei, mas não consegui. Creio que o “bacalhau”, já nessa altura, não era barato, mas também admito que terá tido receio de sujar as mãos. Consultou o envelope, onde rezava CEM/QG/1ª REP, e palpitou-lhe que o assunto era complicado. Por isso, optou por me levar ao gabinete do tenente-coronel Salazar Braga, que era o CEM do Quartel-general. O envelope foi finalmente aberto e, no seu estilo frontal, perguntou-me:
– O que é vocês – tu e o teu Comandante de Batalhão – querem?
– Precisava que fosse nomeado outro substituto para mim. Este não serve. – Tentei esclarecer.
– Não serve? Não serve, pune-se! De que é que estás à espera para lhe dares uma porrada? O tipo está a fazer-se de maluco, não há que ver.

Argumentei que, por acaso, ele era mais moderno e menos graduado que eu. E se não fosse assim? Seria a primeira vez que um substituído punia o substituto. Trocámos mais alguns pontos de vista e ele acabou por convocar o Chefe do Serviço de Justiça, o tenente-coronel Lobão da Cruz que, ao que se dizia, era, no Exército, mais antigo que o próprio general Spínola. Era um homem conhecedor em matéria de justiça e disciplina, mas confessou, de imediato, a impossibilidade de resolver o problema na sua área e alegou:
– Não há nada a fazer. Eles agora põem a boina com as fitas para frente e dizem que estão malucos. Os médicos não sabem o que fazer e dão cobertura. Que é que se há-se fazer?

Ainda contei algumas aventuras do meu substituto, insistindo na sua inabilidade para compreender a administração e a logística da companhia e o seu comportamento em mais um acidente no campo de minas, mas ficámos por ali. Saí desmoralizado de uma reunião tão inconclusiva. O problema da minha rendição adensava-se, mas, para além disso, eu não via como seria resolvido o problema do comando da CArt n.º 3567 que, certamente, não merecia ser assumido por um homem cuja sanidade mental tinha de ser seriamente posta em causa.

Sei que não fui efectivamente substituído por ele. Julgo que voltou a Mansabá e aí manteve os seus comportamentos insólitos até que lhe terão dado a comissão por terminada. O alferes Serras ficou a comandar a CArt  até à chegada de um capitão miliciano que a conduziu até ao regresso, já depois do 25 de Abril.

Eu embarquei para Lisboa, a 4 de Agosto, com 26 meses concluídos, depois de ter elaborado uma declaração sobre o estado dos campos de minas e engenhos explosivos implantados no meu sector. O processo da minha substituição por um homem que a estrutura se recusara a tratar como legalmente era devido, por razões que não conheço mas suspeito, levou-me a concluir que o potencial humano da “Metrópole” estava esgotado, indício técnico de algo estava a correr mal, numa área que até aí se tinha como inesgotável. Hoje penso que, se houve tarefa inútil que cumpri na “Guerra”, uma delas foi o lançamento daquele campo de minas.
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Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

4 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8505: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (5): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - I Parte
e
5 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8507: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (6): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - II Parte

Vd. último poste da série de 29 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10206: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (7): Um casal estranho