Queridos amigos,
Annette é uma cronista exigente, não se cinge à documentação recebida, quer interpretação das imagens, decifrar o que vem nas entrelinhas e sobretudo pede respostas para assuntos jamais mencionados: a ocupação dos tempos livres, que leituras Paulo Guilherme fazia, que conversas tinha com aquele padre de Missirá, um tal Lânsana Soncó, com quem falava de gente do passado, da fauna e da flora, do nome das árvores, o que efetivamente fundamentava a curiosidade de Paulo Guilherme? Ela nunca esquecera uma descrição do seu amado de um amanhecer em Mato de Cão, vieram os flamingos, pernaltas róseos, que alheios a quem os observava pesquisavam nas águas do Geba o seu alimento; e havia aquela versatilidade de símios, ele fazia referência aos macacos cão e fidalgo, uns com pontas de bigode e umas franjas e outros de rabo pelado, de cor avermelhada; e não esquecia os répteis, a repentina surucucu e a sempre temida cobra verde, o horror de quem subia às palmeiras.
Paulo Guilherme chegara a Bambadinca e ela pede pormenores, e então conta-se uma história hilariante da praxe que o comandante lhe fez, nomeou-o como ajudante de campo da senhora professora, senhora muito carente que gostava de se passear sentada no quadro da bicicleta, a sentir o braço do seu servidor no dorso, coitada, sofria de vertigens... Já estamos em Bambadinca, vai começar um carrossel com montanha-russa de histórias que só são possíveis para quem faz uma intervenção errante, que tanto podem ser emboscadas noturnas, como alucinantes colunas de abastecimento ao Xitole ou operações na Ponta do Inglês, tudo numa vertiginosa sequência.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (48): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Très, très chère Annette, muito fatigado por um dia de trabalho que culminou com aulas ao fim de tarde no Monte da Caparica, venho procurar dar-te informações ao que me pedes. Estranhas muito as referências ao nome de Infali Soncó, o avô do régulo Malã Soncó, pois fica sabendo que Infali Soncó tornou-se um nome lendário pela sua rebelião em 1907, era régulo do Cuor, com a conivência dos régulos de Badora, Joladu e Xime procuraram fechar a navegação do Geba, o que se tornou intolerável para as autoridades de Bolama (era então a capital da Guiné). Foi decidido constituir-se uma força militar de envergadura, veio muita gente de Portugal e uma unidade militar de Macuas de Moçambique, em 1908 vão dar combate ao rebelde, que foi forçado a fugir, virá mais tarde, depois do afastamento de outro rebelde, de novo Abdul Indjai, o régulo do Oio e do Cuor, fora o mais precioso auxiliar do capitão Teixeira Pinto nas campanhas de pacificação que culminaram em 1915 com a rendição dos Papéis de Bissau. Vou enviar-te um documento muito curioso escrito por Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo Malã, vive em Portugal desde 1996, deram-lhe facilidades para vir frequentar uma ação de formação em Setúbal, ele era professor primário, passava mais de 7 ou 8 meses sem receber o ordenado, preferiu ficar a trabalhar na construção civil, visita-me regularmente, falei-lhe do assunto do bisavô, ele escreveu a memória da vida deste turbulento régulo. Ainda não tive oportunidade de te dizer que os Soncó eram Beafadas mandinguizados, quer isto dizer que aceitaram a fé muçulmana, abandonaram o animismo e incorporaram-se na família Mandinga, o mesmo aconteceu com outros régulos desta região, como o régulo Mamadu Sanhá, do Cossé, que conheci, vinha de motociclo a Bambadinca, impecavelmente fardado, exibindo orgulhosamente os seus galões de tenente de segunda linha.
Perguntas-me sobre a adaptação a Bambadinca. Vinha dolorido pela separação do Cuor, que nunca aceitei, embora percebesse perfeitamente que os meus soldados estavam saturados de viver permanentemente no interior do mato desde 1966. Não poucas vezes, quando tinha uma aberta nos meus afazeres, descia a rampa de Bambadinca até ao porto e ficava especado a ver a bolanha de Finete e todo o denso arvoredo que se estende até Mato de Cão. Cheguei a Bambadinca, fiquei num quarto com mais dois oficiais milicianos da CCAÇ 12, de nomes Magalhães e Abel Rodrigues, mantivemos uma relação altamente estimável. Conseguiu-se alojamento para todos os soldados e cabos africanos, houve que adiantar dinheiro para aluguer de moranças. Definimos as regras do jogo de quem ficava como intermediários para contatos urgentes, para qualquer tipo de saídas, desde colunas de reabastecimento ao Xitole a emboscadas noturnas; definiram-se responsabilidades para a guarda das nossas munições e armamento, ficou rigorosamente proibido que na povoação os soldados tivessem granadas de qualquer tipo, era a melhor maneira de prevenir acidentes dramáticos, eu já tinha ouvido histórias de sinistros devido a tais desleixos. E nunca esquecera o acidente de Abudu Cassamá, aquela criança de Finete que espevitada pela curiosidade viu algo dentro de um atrelado, era uma granada incendiária, tirou-lhe a cavilha, ficou brutalmente queimado.
As regras de convivência alteraram-se radicalmente. Agora tomo as refeições na messe de oficiais, sempre detestei jogos de cartas, acabei por ser atraído por um jogo simplório, verdadeiramente de fortuna ou azar, chamado lerpa, dei comigo a passar horas sem fim, foi excitante ao princípio, depois tornou-se uma sensaboria, voltei às leituras.
Tu tens razão, adorada Annette, falta na documentação que te tenho enviado, informação sobre aquilo que chamamos ocupação dos tempos livres. Como recordarás, levei centenas e centenas de livros, um espólio apreciável de discos de vinil e um gira-discos de altíssima qualidade, tudo ficou em cinzas em março de 1969. A correspondência, a leitura e a música foram os melhores lenitivos que encontrei. De tal ordem, que mesmo que regressasse estafado de madrugada de um patrulhamento a Mato de Cão havia sempre um cadinho de leitura, cheguei mesmo a amassar livros debaixo do peito quando cedia ao sono. Tens toda a razão, vou procurar nos escaninhos da memória uma possível relação daquilo que li, da música que ouvia.
Pedes-me mais imagens e tenho que confessar-te que poucas mais me restam. O que tinha até março de 1969 só se salvou o que mandei à família e aos amigos. Recebi depois algumas fotografias ou estão presentemente a facilitar-me imagens alguns antigos camaradas, mas não era para mim prioritário comprar uma boa câmara, tive que comprar roupa, tive que ajudar quem precisava, controlei as minhas despesas com livros, consegui um gira-discos a pilhas e adquiria em Bafatá discos de vinil com gravações magníficas, mas tudo moderadamente. Não sei a que propósito tirei aí uns quatro dias depois da mina anticarro, em Canturé, esta fotografia onde não escondo as dores que me vão na alma, comprei novos óculos, as lentes escuras trouxeram-me alívio para o sol incandescente. O dado curioso é que quando explodiu a mina e eu julgava que os meus óculos se tinham volatizado, alguém os encontrou, pasme-se, intactos, debaixo do chassi, evidentemente cheios de pó, comoveu-me muito este achado. Tenho dado voltas à cabeça para responder cabalmente ao que me pedes sobre o que tu chamas a minha inserção na vida de Bambadinca. Agora tenho condições para participar na missa dominical, faço visitas de rotina às instalações do batalhão, a burocracia continua, temos a nossa própria contabilidade e secretaria, são afazeres que reparto com o meu fiel ajudante, o furriel Sousa Pires.
Tenho um episódio hilariante para te contar. O comandante do batalhão entendeu que me devia praxar. O pretexto foi a saída do alferes Almeida de um outro pelotão de caçadores nativos, o n.º 63. Havia uma professora primária, Dona Violete, uma senhora de idade indefinida, de cabeleira oxigenada, gentil e faladora. Houve que a contatar, eu ficara com a incumbência de apurar quais os programas em curso para a 3.ª e 4.ª classe para o professor de Missirá e tinha um soldado que pretendia fazer a 4.ª classe, Dona Violete foi muito prestável. Contei este episódio ao comandante e ele informou-me com o ar mais sério deste mundo que com a saída do Almeida eu ficaria com a responsabilidade de acompanhar Dona Violete nas suas saídas de Bambadinca, era responsabilidade do batalhão fazer boas relações públicas com a professora, e que devia prontamente apresentar-me, dando-lhe a saber que passava a ser o seu fiel companheiro. Achei aquilo tudo insólito, mas não tugi nem mugi. Pedi ao Ussumane Mané, o meu novo guarda-costas (não te esqueças que o Cherno estava ainda hospitalizado em Bissau a tratar do seu duplo traumatismo craniano) que fosse perguntar à senhora professora se me podia receber pelas seis da tarde, e igualmente pedi ao Queta Baldé se me adquiria um ramo de flores no Mercado de Bambadinca. Tudo ajustado, apareci às seis da tarde com um bouquet de flores e com a minha farda n.º 2. Dona Violete estarrecida com a novidade da minha intendência, mandou-me entrar na sala da sua casa, apresentou-me a mãe, uma senhora esquálida vestida de preto e de idade ainda mais indefinida. Falei no alferes Almeida, a professora estava derretida, que o senhor alferes a levava no quadro da bicicleta, que esperava de mim uma gentileza tal, por exemplo descermos a Rampa de Bambadinca e irmos até Santa Helena, que a amparasse nas costas, ela às vezes tinha vertigens e gostava de estar amparada. Achei aquilo tudo estapafúrdio, mas o mais grave veio depois, Dona Violete pôs-se de pé, mantinha a sua voz melodiosa, falava da sua solidão, da necessidade que sentia de ter carinho e como o alferes Almeida era gentil com ela, e que esperava o mesmo de mim, avançava discretamente na minha direção, senti que estava encostado à parede e que a dita senhora me passava as suas mãos pelos meus braços, constrangimento maior não podia estar a ter, ocorreu-me olhar para o relógio e pedir licença para me retirar, era hora do jantar, prometia voltar a visitá-la para se marcar um passeio. Sempre com um sorriso travesso, Dona Violete pegou-me no braço, despedi-me da mãe dela, e à saída, não sabendo como rematar a minha partida, perfilei-me, curvei-me e beijei-lhe a mão, ficou em derriço.
E só quando atravesso a rua e vejo os oficiais à porta com uma expressão de gozo é que se deu o toque da campainha, fora tudo montado para eu ter aquele arrepio na espinha. Entrámos na messe, o comandante perguntou-me se estava tudo a correr bem, julguei oportuno dar-lhe em voz alta a lição que ele merecia, a senhora professora agradecia, mas estava à espera que fosse o senhor comandante a visitá-la, gostava mais de se dar com gente da sua idade…
Prometo contar mais histórias hilariantes, isto de estar na guerra não são só tiroteios nem rodopios de coragem, atos de solidariedade ou quadros de horror, há a vertente parodiante, muito do bizarro da vida vem ao de cima, é o contraponto para toda aquela tensão da contraguerrilha.
E deixo uma boa notícia para o fim: aguardo a marcação para os próximos 15 dias de uma reunião da nossa Assembleia-Geral em Bruxelas. Parece que será numa segunda-feira. Se assim for, e se tu tiveres disponibilidade, pedia-te para ir quinta-feira à noite e irmos a Ypres. Porquê Ypres? O meu querido amigo Melvin Coats tem família natural do Sul da Escócia, há para ali uma prima que anda a fazer a genealogia dos Minto, procura desesperadamente dois irmãos que morreram em data diferente e estão sepultados em cemitérios de Ypres, como sabes foi nesta região da Flandres que morreram muitas centenas de milhares de homens para conter a onda alemã. Dar-te-ei mais pormenores na próxima carta. Quando hoje atravessei o Tejo, vindo das aulas no Monte da Caparica, lembrei-me do passeio que demos à Arrábida, tu estavas felicíssima com aquela vegetação mediterrânica, prometi-te voltar a levar lá e espero que seja muito em breve que tu aqui regresses, o verão está próximo. Bisous, mais bisous e muito mais bisous, bien à toi, Paulo.
Imagem de uma parte do contingente que veio, às ordens de Oliveira Muzanty, combater a rebelião de Infali Soncó, a fotografia foi tirada pelo nosso primeiro fotógrafo de guerra no interior da fortaleza da Amura. A rebelião de Infali Soncó durou de 1907 a 1908
Em Bissau, na primeira visita, março de 1969, encontrei o Barbosa (à esquerda) e o Teixeira (à minha direita) com um amigo, aproveitámos para matar saudades. O Barbosa e o Teixeira foram dois diletos colaboradores, guardo-os no meu coração.
Fotografia tirada em Bissau em outubro de 1969, vim fazer tratamento oftalmológico e comprar óculos novos, a seguir à explosão da mina anticarro
Nota do editor
Último poste da série de 9 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22086: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (47): A funda que arremessa para o fundo da memória