quinta-feira, 8 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P161: Antologia (18): Um domingo no mato, em Ganjolá (Luís Graça)

1. Já aqui referi o nome do lourinhanense e meu parente José António Canoa Nogueira, que morreu na Guiné em 1965: vd. post de 24 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXV: Homenagem aos mortos da minha terra (Lourinhã, 2005). E na altura recordei a notícia do seu funeral que eu próprio escrevi, na minha qualidade de responsável da redacção do quinzenário regionalista Alvorada. Tinha eu então 18 anos.

Há dias repesquei essa notícia e dei conta que o jornal tinha publicado também a última ou uma das últimas cartas que o Nogueira terá escrito, antes de morrer em combate no sul da Guiné. Ele estava destacado em Ganjolá, sítio que ainda não consegui localizar correctamente no mapa. Há uma Ganjolá Porto e uma Ganjolá Nalu, entre Emapaf e Bedanda, na região sudoeste da Guiné. Não sei se o destacamento de Ganjolá fica perto destas povoações. Também não sei a que companhia pertencia o Nogueira.

Um facto, desconhecido e insólito para mim, mas ao tempo revelador da grande solidariedade dos portugas: na época os restos mortais dos nossos soldados não eram embarcados para a Metrópole, a expensas do Estado. No caso do Nogueira, foram os seus camaradas que se quotizaram para pagar, do seu bolso, o transporte por via marítima da urna... Aliás, entre a morte em Ganjola e o funeral na Lourinhã passaram cerca de três meses e meio...

Fica aqui a minha homenagem a esses bravos anónimos de Ganjolá. E mais uma vez aqui deixo também a saudosa recordação do meu conterrâneo e parente, reproduzindo uma notícia que já tem 40 anos e uma das suas cartas, relatando um pacato domingo no mato!


2. Alvorada. (Lourinhã). 23 de Maio de 1965 : Os restos mortais do José António jazem finalmente na sua Terra Natal.

Depois de transportados da Guiné para a Metrópole a expensas dos seus companheiros de campanha que lhe votavam particular estima e amizade, os restos mortais do soldado José António Canoa Nogueira repousam finalmente no cemitério da sua terra natal.

O funeral, realizado no segundo domingo do corrente, constituiu uma homenagem pública à memória daquele de cuja presença e convívio a morte irremediavelmente nos separou, e um testemunho de apreço pelo sacrifício da sua vida. Nele se incorporaram, além da multidão anónima e inumerável, o sr. Presidente do Conselho, outras autoridades civis e militares e os Bombeiros Voluntários.

À chegada do auto-fúnebre militar, com a urna, os clarins dos Soldados da Paz tocaram a silêncio. E o préstito atravessou a Vila, sob uma impressionante atmosfera de recolhimento e dor.

Antes da urna ser depositada no jazigo, os Bombeiros tocaram a continência, num último adeus e derradeiro tributo de homenagem ao Soldado e Jovem Lourinhanense.

3. Uma carta dirigida ao Alvorada

O jornal publicou uma carta, datada de 10 de Janeiro, endereçada ao Alvorada, que o jornal não chegou a receber, mas que foi entregue pelo seu pai. E onde se revela “a alma simples e transparente do José António, e da sua sensibilidade fina, delicada, capaz de descobrir motivos de beleza numa bandeira que flutua perdida no mato ou numa improvisada e fraterna refeição de campanha. Tinha razão o filósofo e ensaísta brasileiro Tristão de Ataíde quando disse: “No fundo de cada homem dorme um poeta desconhecido.

"Por ser , pois, a última ou uma das últimas cartas que escreveu para a Metrópole, e um apontamento breve mas sugestivo de expedicionário, aqui a publicamos"- acrescentava a notícia do jornal da terra.


Um domingo no mato
Aqui, Ganjolá, Guiné, 10-1-1965

Mesmo no sul da Guiné, pequeno destacamento militar presta continência à Bandeira Verde-Rubra que sobre o mastro fica brilhando ao sol. E que linda que é a nossa bandeira; e é tão alegre, tão garrida, só olhá-la nos faz sentir alegria e também emoção; alegria de sermos portugueses e emoção por estarmos cá longe para a defender. Embora assim perdida no mato, a bandeira, brilhando, afirma que aqui também é Portugal.

Em volta, meia dúzia de barracas verdes, o nosso aquartelamento, a única nota de civilização nesta imensa planície. Muito ao longe, quase perdidas no mato e no capim, algumas palhotas indígenas; de resto, tudo é solidão. Somos soldados de Infantaria e por isso o nosso trabalho é fazer operações em qualquer parte do mato.

Aqui não há escolas e as igrejas não têm paredes; o tecto é o céu. Em toda a parte se reza e tudo nos incita à oração. Deus está em toda a parte e ouve-nos.

Hoje é domingo, dia de descanso, não se trabalha, mas distracções também não há. Alguns vão à pesca ou à caça; outros, deitados debaixo das enormes árvores, dormem e pensam nas suas terras e famílias distantes, mas pertinho do coração. Como são diferentes aqui os divertimentos nos domingos.

Dois soldados vão todos os dias à caça; por isso, fome não há. Temos carne com abundância, mas falta tanta coisa!... Ei-los que chegam com tenros cabritos e gazelas e logo enorme fogueira crepita alegremente. Esfolam-se os animais e lava-se a carne; a água não falta, embora para se beber seja preciso enorme cuidado. Prepara-se um espeto para se assar a carne. Espalha-se então o cheiro da carne assada pelo pequeno acampamento. Está a refeição preparada; troncos de árvores, caixotes vazios, servem de mesa e de cadeiras.

Todos se servem. A refeição é pouco variada: apenas carne assada e pão. O vinho também é pouco, mas dividido irmãmente dá para todos; que bem que sabe uma pinguita com este almoço!...

Bebi-se mais mas não há, paciência… O improvisado cozinheiro faz enormes quantidades de café. Todos enchemos os copos de alumínio e bebemos alegremente. Acaba a refeição; por fim, alguns macacos, meio domesticados, que por aqui andam, aproximam-se e reclamam a sua parte.

É assim um domingo no mato. Depois de explanar esta ideia, termino. Despeço-me com o mais ardente desejo de a todos vós abraçar brevemente, fazendo preces ao Senhor para que tenhais saúde e boa sorte. Vosso amigo que respeitosamente se subscreve, todo vosso.

José António Canoa Nogueira.
Soldado nº 2955/63
SPM 2058.

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