quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1438: Questões politicamente (in)correctas (18): A derrota (mais política do que militar) afectou mais a tropa especial (Carlos Vinhal)


Guiné > Bissau > Voz da Guiné > Separata do nº 203, de 30 de Junho de 1973, dedicada ao Dia dos Comandos. Na quarta página vêem-se quatro fotos, da autoria do fotógrafo Álvaro Geraldo. Legenda:

(i) em cima , à esquerda: "O Alferes Marcelino da Mata, ostentando as suas numerosas condecorações, foi o digno Porta-Bandeira";

(ii) em cima, à direita: "O Alferes Carolino Barbosa, lendo o Código Comdanso" (diz-me o ranger Eduardo Ribeiro, que este alferes comando foi barbaramente assassinado em 1974 pelas tropas do PAIGC);

(iii) em baixo, à esquerda:"Os últimos minutos de Comando da Unidade [para o Major João de Almeida Bruno]";

(iv) em baixo, à direita: "Os primeiros minutos de Comando da Unidade [para o major Raul Miguel Socorro Folques]".


Foto: Eduardo Ribeiro (2006). Direitos reservados.


Mensagem do Carlos Vinhal:

Camaradas:
Este assunto (1) dá pano para mangas. Muita coisa se poderá dizer e muito nos vamos repetir.

Já em tempos opinei sobre as diferenças entre as diversas forças militares actuantes e o modo de enfrentar e ver a guerra por quem lutou na nossa Guerra Colonial.

Conheci de perto uma companhia de comandos e pude verificar a diferença abismal que havia na sua preparação e comportamento militares. À partida eram seleccionadas entre voluntários, com características físicas e mentais especialmente dotadas para a luta. O seu treino era especialmente ministrado com exigência física e mental próximo dos limites humanos. Ganhavam uma mentalização e preparação militar que faziam deles tipos quase invencíveis, indestrutíveis e, porque não, quase uma máquina de matar, mesmo que fosse para não morrer, como muito bem diz o nosso camarada Mendes.

A matéria prima era muito fácil de moldar, jovens com 20 anos plenos de força e coragem a quem só faltava dar o incentivo e a arma. Iriam fazer as coisas mais complicadas em termos militares pois tinham sido treinados para não falhar. E quando falhavam? Não sei se há estatísticas quanto às sequelas psicológicas por tipo de Força.

Por outro lado, havia a tropa vulgar com uma impreparação tal que mais não era que carne para canhão. Por exemplo, os militares da minha Companhia fizeram toda a recruta e especialidade com arma Mauser e só tocou numa arma automática (G3) no IAO feito na Madeira.

Preparação diferente, logo visão e disposição diferentes. Tenho a impressão que a derrota (mais política que militar) que sofremos na Guerra, afectou mais a tropa especial que propriamente a dita tropa macaca.

Já confessei que fui para a guerra com o fim de voltar vivo e tentar não matar ninguém. Não fui para lá para acabar com o conflito, já que não fui culpado do seu início. Era inevitável cumprir as ordens operacionais que me eram impostas, mas isso fazia parte da minha condição militar que nunca rejeitei.

Sempre me achei um estrangeiro na Guiné e um ocupante. Nunca compreendi a nossa ocupação com a espada na mão direita e a cruz na mão esquerda. Foi este o nosso início em África. Invasores, julgando-nos superiores só por professarmos a Religião Cristã, impondo esta como salvação eterna. Impusemo-nos, não fomos aceites nem compreendidos. Mais tarde ou mais cedo havia de chegar a hora da desocupação e calhou à nossa geração o trabalho inglório de contrariar o inevitável.

Quem matou, devia tê-lo feito só para se defender. Quem massacrou ou atentou contra a dignidade do Inimigo, mesmo depois de morto, não foi digno da farda que envergou, fosse a de Portugal ou a do PAIGC.

Também já disse que os dois contendores têm coisas de que se devem envergonhar. Em ambos os lados houve erros, matando-se indiscriminadamente e massacrando-se sem motivo.

Na Guerra não vale tudo, mas a realidade, mesmo nos dias hoje, se encarrega de contrariar esta máxima.

Por muitas teorias que possamos desenvolver, temos de nos convencer de que:

(i) falamos do passado;

(ii) já temos mais uns anitos;

(iii) devemos expor as nossas opiniões sem ofender os camaradas que por terem outras ideias ou terem tido outras vivências, têm opiniões diferentes da nossa;

e, muito, mas muito importante, (iv) não deixemos o nosso Comandante Luís na difícil situação de ter de apagar fogos ou ter de filtrar os nossos escritos.

Paz e saúde para todos

Um abraço do camarada
Carlos Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732
Mansabá 1970/72
Leça da Palmeira
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 16 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1435: Questões politicamente (in)correctas (17): Matei para não ser morto (A. Mendes, 38ª CCmds)

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