terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1435: Questões politicamente (in)correctas (17): Matei para não ser morto (A. Mendes, 38ª CCmds)


Guiné > Voz da Guiné > Folha de rosto da Separata do nº 203, de 30 de Junho de 1973, dedicada ao Dia dos Comandos. Na primeira página vêem-se duas fotos: à direita, do major João de Almeida Bruno, que cessava funções como comandante do Batalhão de Comandos da Guiné; e à esquerda, o novo comandante, o major Raul Miguel Socorro Folques.

Foto: Eduardo Ribeiro (2006). Direitos reservados.


1. Texto enviado, em 13 de Janeiro corrente, pelo Amilcar Mendes (ex-1º cabo, 38ª Companhia de Comandos, Guiné, Brá, 1972/74; hoje, taxista da praça de Lisboa):

A Guerra da Guiné e os Direitos Humanos
por A. Mendes

Vitor Junqueira, Luís Graça e demais membros da nossa tertúlia:

De há uns tempos a esta parte tenho sido mais leitor que interveniente, porque algumas coisas que vou lendo no Blogue, sobre o tempo da guerra da Guiné, me obrigam a estar calado. De facto, os comentários que vou lendo confundem-me ao ponto de não saber se falamos da mesma guerra e da mesma Guiné.

Primeiro que tudo estou no Blogue porque sou um ex-combatente da Guiné e é essa a razão deste Blogue. Trocarmos impressões sobre o que passámos é saudável. A razão por que é que passámos, isso é já história política. Para isso existem os letrados e iluminados que escrevem sobre as causas e consequências.

Vem isto a propósito dos comentários que aqui li sobre a Convenção de Genebra, Operação Mar Verde, Massacres, Direitos dos Combatentes e dos coitadinhos dos guerrilheiros do PAIGC! (1)

Por favor, não insultemos a memória dos que morreram em combate. Alguém que lá esteve pode achar que os turras eram meninos de coro? Será que o Vitor Junqueira e eu estivemos na mesma guerra ?

No ano de 1973, na estrada de Mansoa -Mansabá, numa emboscada a uma coluna junto ao chamado Carreiro da Morte, os senhores guerrilheiros do PAIGC apanharam à mão três agressores militares portugueses e, cagando para direitos ou convenções de guerra, cortaram-lhe o sexo e enfiaram-lho na boca depois de os matarem a sangue frio!

Se tal, como nós, cumpriam o direito defendendo a Pátria (não sei se a minha ou a deles), expliquem-me por favor quem é que era santo?

Fui combatente, como vocês, matei para não ser morto. A forma como, não tem a ver. Ou será que o Vitor ia para a mata com a Bíblia numa mão e a arma noutra ?

Enfim, relembremos Guidaje, Guileje, Canquelifá, Boruntuma, Gandamael, etc. porque o PAIGC não se limitou a defender a sua (deles) Pátria.

O Vitor fala em stresse de guerra, mas já tentou saber se tem a ver com a forma ou o conteúdo? Quem sabe o que se passou em Wiriamu ? Vamos condenar à pena de morte quem lá esteve? Para expiarmos todas nossas culpas, como combatentes, vamos ter que julgar toda a humanidade? Eu posso apresentar ex-comandos que lá estiveram, para o Vitor, o Luís e os demais tertulianos ouvirem a outra parte da história...

Já agora, e a propósito de direitos, olhemos para o que está a acontecer na Guiné e com a herança do PAIGC.

Vitor, Luís e restantes tertulianos, um abraço.

A. Mendes

2. Comentário do editor do blogue:

Meu caro Amílcar:

A gente ainda não se conhece pessoalmente mas já temos falado várias vezes ao telefone, e até lá temos apalavrada uma ida à sede dos Associação dos Deficientes das Forças Armadas, aqui mesmo ao lado da minha chafarrica, para dar um abraço a um amigo comum, o Patuleia...

Há muitas feridas de guerra, no corpo e na alma, que não saram e que vão morrer connosco. É o caso do Patuleia, que é uma figura conhecida, que dá a cara (e que cara!) pela ADFA, e por todos nós. É uma problemática dolorosa, essa, a do deve-e-haver da nossa guerra em África (sem esquecer a Índia, Timor, etc., como muito bem nos chamava ontem à atenção o António Rosinha) (2).

Como qualquer membro da nossa tertúlia, tu tens direito à palavra. Não preciso de te dizer que o teu testemunho, como homem e como operacional, me sensibilizou, e tem enriquecido o nosso esforço colectivo para reconstruir e divulgar a nossa memória da guerra na Guiné.

Como sabes, aqui - naquilo a que eu chamo a nossa caserma virtual - tratamo-nos por tu, o que não quer dizer menos respeito uns pelos outros, respeito pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (assumindo o que fomos ontem e o que somos hoje, sem culpa, sem complexos, sem acusações). Mas também sendo capazes de manifestar, de maneira franca e serena, os nossos pontos de vista, e sobretudo as discordâncias... Saudavelmente, como amigos, como camaradas... Na prática, como sabes, estas regras não fáceis de aplicar... Mas esforçamo-nos por consegui-lo...

Nunca escondemos uns dos outros que não pensamos todos pela mesma cabeça, nem sentimos todos pelo mesmo coração... A nossa riqueza está justamente no nosso pluralismo e na capacidade de gerir as nossas diferenças... É certo que nem sempre lemos o que outro escreve... Tu, por exemplo, se calhar não entendeste bem o que o Vitor quis dizer, ou então foi o Vitor que não comunicou bem... Compete a ele esclarecer-te, se for caso disso. Mas eu insisto: temos que aprender a ouvir os outros...

Para trás ficaram, entretanto, as velhas rivalidades entre infantaria, cavalaria e artilharia, entre a terra, o mar e o ar, entre a tropa-macaca e a elite da tropa, entre tropas africanas e metropolitanas, entre pessoal do quadro, do contigente geral e milicianos, entre operacionais e pessoal de apoio...

Aqui também não há bons nem maus, heróis ou cobardes, gente politicamente correcta ou incorrecta, letrados e iletrados... Somos camaradas, ponto final. A mim, compete-me dar igualdade de oportunidades a todos os que me escrevem, o que nem sempre seguramente consigo.

Não me compete tomar posição a favor de A ou B. Não sou juiz nem fiel da balança. Mas, confesso, que não gostaria que o nosso blogue fosse uma arena de combate. Não cultivo nem gosto de cultivar a polémica. Acho que podemos (e devemos) dizer olhos nos olhos (neste caso, no ecrã do computador) o que nos divide, o que nos separa... De preferência, com elegância, sem insultos, e com factos a fundamentar o que escrevemos... Esta pedagogia tem funcionado. E eu acho que podemos orgulhar-nos do nosso blogue, da nossa convivivência, e até da gente da nossa geração.

Não temos de estar acordo sobre questões dolorosas, dolorosíssimas (e ainda polémicas), do nosso passado recente (para não falar da nossa vasta e riquíssima história enquanto povo, estado e nação): os massacres de 1961 (em que morreram milhares de portugueses e angolanos, inocentes), os excessos (e crimes) que se cometem em todas as guerras, de um lado e de outro, Nambuangongo, Mar Verde, Wiriamu, Nó Górdio... Não estaremos de acordo seguramente sobre as razões por que fomos parar à Guiné, a Angola ou a Moçambique. Ou sobre a descolonização. Como a guerra foi conduzida pelos nossos chefes, políticos e militares.

Não podemos evitar falar de tudo isso, dessas e doutras questões ditas fracturantes. Podemos fazê-lo, mas de preferência evocando a nossa condição de protagonistas, testemunhas ou historiógrafos... Por exemplo, eu não estive em Wiriamu, nem estou suficientemente documentado para ter opinar sobre o que lá se passou... Eu nunca passei no Carreiro da Morte, na estrada de Mansoa-Mansabá e já não estava na Guiné, em 1973, mas gostava de saber quem (do lado do PAIGC e das NT) esteve envolvido nessa macabra cena que tu relatas...

Eu também não estive no chão manjaco mas quem lá esteve (o Afonso M.F.Sousa, o João Tunes) pode dar o seu testemunho (ou opinar) sobre o massacre do PAIGC que vitimou três dos nossos três melhores oficiais superiores do tempo do Spínola... Um historiador, como o Leopoldo Amado, também tem autoridade para falar sobre esse assunto, porque fez investigação de arquivo ou entrevistou dirigentes do PAIGC... Eu, confesso, que não tenho autoridade para o fazer, é uma questão de honestidade intelectual... (E a propósio, vamos abrir em breve um dossiê sobre este melindroso e doloroso tópico da guerra da Guiné, sob a direcção do Afonso M.F. Sousa)...

Por fim, queria só lembrar que também é nosso apanágio respeitar (ou tentar respeitar) o nosso inimigo de ontem... Eles, de facto, não eram meninos de coro. Mas não nós também não éramos turistas. Dito isto, concordo com o Pedro Lauret e o Vitor Junqueira: a guerra, todas as guerras, têm regras. E quanto ao Amílcar, queria só acrescentar: Todos matámos para não morrer... Afinal, todos fomos para a Guiné com "licença para matar e morrer"...

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

13 de Janeiro de 2006 < Guiné 63/74 - P1425: Questões politicamente (in)correctas (16): na guerra, de facto, não vale tudo, também há regras (Vitor Junqueira)

12 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1423: Questões politicamente (in)correctas (15): Na guerra não vale tudo (Pedro Lauret)

(2) Vd. post de 15 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1432: Pensamento do dia (10): Honrar os que morreram no Ultramar (António Rosinha)

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