1. Continuação do relato do Paulo Santiago, sobre o encontro, realizado ontem, na Maia, com o António da Silva Batista (na foto, ao lado) (1):
(v) A vida em Madina do Boé
Havia uma relativa liberdade,para os prisioneiros, na zona de Madina do Boé, tanto assim era que um deles, em Março de 74, conseguiu fugir e, acompanhando a margem do Corubal, acabou por chegar ao quartel no Saltinho.
Souberam do 25 de Abril através de informação dada pelos guerrilheiros, continuando, apesar daquele acontecimento, a viverem nas mesmas condições. Havia o caso do Cap Peralta, preso em Portugal,e a libertação deles estava dependente da libertação daquele militar cubano.
(vi) A liberdade chega em Setembro de 1974
Um dia em Setembro de 74, não sabe precisar a data certa, meteram-nos num camião, sem os informar ao que iam, levando-os para Aldeia Formosa (Quebo). Chegados aí, aperceberam-se que o cativeiro tinha acabado, ao verem vários oficiais do Exército Português juntos com comandantes do PAIGC.
Ressalvo, dos sete prisioneiros, o oitavo fugira em Março, o Batista era o único oficialmente dado como morto,os outros tinham sido dados como desaparecidos em combate, ou em poder de (ou capturados por) o IN.
Quando chegou a Lisboa, pagaram-lhe dezoito mil escudos mas, atendendo aos vinte e sete meses de cativeiro (desde Abril de 1972 a Setembro de 1974), deveriam ter-lhe pago vinte e três mil escudos.
(vii) Uma mãe em estado de choque
Chegou ao Porto no dia 17 de Setembro de 1974, à noite. Nesse dia de manhã, alguns oficiais do QG tinham ido preparar a mãe, para a iminente chegada do filho, cuja campa, quase todos os dias, visitava no cemitério de Crestins.
Disse-me o António Batista:
- A minha mãe estava completamente apanhada, entrei em casa,estava sentada, continuou na mesma posição, não disse uma palavra, olhava para mim com uma cara de imenso espanto. Foi muito dificil para mim.
Começaram, de seguida, os problemas burocráticos. Documentos não tinha, ou melhor, tinha uma Certidão de Óbito com o seu nome.
(viii) O único que o ajudou foi o Corvacho [, o antigo capitão do nosso Zé Neto, em Guileje]
Teria que ir a Lisboa, andar de repartição em repartição para resolver todos os problemas. Conseguiu falar pessoalmente com o Comandante da Região Militar Norte, o Eurico Corvacho (2), de quem diz ter sido a única pessoa que mais o auxiliou naquela fase complicada da sua vida, conseguindo inclusive que ele recebesse os cinco mil escudos que o Exército lhe ficara a dever, quando da sua chegada.
Precisava de ir a Lisboa, ía ao QG ter com o Corvacho, ele mandava passar uma Guia de Marcha para Lisboa, ficando instalado no Depósito Geral de Adidos, os dias necessários para tentar resolver a sua situação.
Tinha inclusive, facilidades de transporte militar, em Lisboa. Do seu antigo comandante de batalhão[, o BCAÇ 3872, com sede em Galomaro, sector L5 da Zona Leste] nunca teve uma palavra e, pelo que me apercebi, das duas vezes que esteve com o Lourenço [, o antigo capitão da sua companhia, a CCAÇ 3490], este também não lhe deu qualquer apoio. Como eu disse no início, é um homem humilde, sem rancores e, sendo assim, cagaram-se - é o termo - para os problemas do homem.
Andou nestas idas e vindas para Lisboa durante alguns meses, até ter de novo documentos que o davam como vivo e válido.
O ex- Alf Mil Médico Alfredo Pinheiro de Azevedo, em 1972 e hoje
Fotos: © Álvaro Basto (2007). Direitos reservados.
O Álvaro Basto tem uma questão pertinente (3). No dia da emboscada, ele e o Alf Mil Médico Azevedo, que prestava assistência no Xitole e no Saltinho, foram a este último quartel, afim de passarem as respectivas Certidões de Óbito. O Dr Azevedo, apesar das insistências do Lourenço [, capitão da CART 3490], recusou-se a passar certidões daqueles corpos carbonizados e desmembrados.
Pergunta o Álvaro e agora também eu pergunto:
- Quem assinou as ditas certidões?
O Fur Mil Enf Álvaro Basto, em 1972 e hoje.
Fotos: © Álvaro Basto (2007). Direitos reservados.
Por sua vez, o António Batista é assaltado por uma outra perplexidade:
- Tenho desde 6ª feira outra dúvida - diz-me ele – Um conterrâneo meu, da Maia, António Oliveira Azevedo, ía também a monte na GMC, tendo sido dado como desaparecido em combate. Nunca apareceu. Acontece que, de Maio a Agosto [de 1974], tempo que ainda permaneci no Saltinho, jamais ouvi falar em terem sido dados como desaparecidos em combate qualquer dos militares que iam na GMC. Nunca os meus FurMil Mário Rui e Dinis, assim como os meus primeiros Cabos Cosme e Pina, que fizeram a recolha dos corpos, me falaram no Soldado Azevedo.
Aquilo que se dizia era que o Batista - este viram-no ser apanhado ! - devia ter sido dado como desaparecido em combate, situação a que o Lourenço se tinha oposto. O Cosme continua a não se lembrar deste facto, infelizmente, neste momento,não tenho o contacto do Mário Rui e o Dinis é da Terceira, Açores. Também não tenho qualquer contacto dele e o Pina, por sua vez, morreu há um ano. Terei que deslindar esta dúvida por outros meios.
Agora vem o meu sentimento da mais profunda revolta. Há uns dez anos, por motivos relacionados com a reforma, o António Batista pediu uma 2ª via da Caderneta Militar. Nesta consta o seguinte: incorporado em Julho de 1971 no RI 13 em Vila Real, passando à disponibilidade em Novembro de 1974.
Filhos de puta! ... Onde está a ida para a Guiné? Onde estão os 27 meses do Batista como prisioneiro de guerra? Apagaram quase 4 anos da sua vida. Verdadeiramente lamentável.
No consulado do Ministro Portas, o Batista fez uma exposição sobre a sua situação de ex-combatente e prisioneiro de guerra. Até hoje não teve qualquer resposta.
Paulo Santiago
(Ex-Alf Mil, Cmdt do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 22 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1983: Prisioneiro do PAIGC: António da Silva Batista, ex-Sold At Inf, CCAÇ 3490 / BCAÇ 3872 (1) (Álvaro Basto / João e Paulo Santiago)
(2) Vd. posts de:
24 de Fevereiro de 2006 >Guiné 63/74 - DLXXVIII: Corvacho, um homem com honra (João Tunes)
23 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXVII: Corvacho, um capitão de Abril
(A.Marques Lopes)
23 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXVI: O meu capitão, o capitão Corvacho da CART 1613 (1966/68) (Zé Neto)
(3) Vd. post de 26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1888: Tabanca Grande (19): Álvaro Basto, ex-Fur Mil Enf, CART 3492/BART 3873 (Xitole, 71/74)
(...) "Eu também estive no Quirafo.. .Já só fui ajudar a identificar os mortos nos balneários do Saltinho. Fui de heli com o médico Dr. Azevedo (se não me engano, que isto da memória às vezes prega-nos partidas)... E imaginem como fiquei ao ler os relatos e testemunhos que aqui foram deixados sobre esse fatídico dia de Abril... Recordo sobretudo e infelizmente o Armandino e os pormenores mais macabros que me levaram a perder o sono durante muito tempo e a recorrer, de forma quase viciante, às diazepinas (valiuns) para dormir e sossegar a mente e o medo...
"Quando após o 25 de Abril leio, uma bela manhã, na primeira página do Notícias do Porto a reportagem do morto que, afinal, estava vivo, a visitar a sua campa no cemitério de S. Mamede Infesta com a namorada que afinal já tinha casado com outro porque se julgava livre, imaginem como fiquei!... Era mesmo o tal transmissões que foi alapando na emboscada do Quirafo. Durante anos guardei a reportagem do jornal mas acabei por deitá-la fora numa dessas minhas alucinadas crises de arrumação compulsiva... Como lamento hoje" (...).
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Que gente é esta, um comandante de batalhão e um comandante de companhia, que vendo um soldado seu naquelas circunstâncias não faz nada para o ajudar... será que têm classificação?
Henrique Matos
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