Guiné > c. 1968 > Bilhete postal > No verso lê-se: "Bilhete postal > Mandinga - Guiné Portuguesa > Agência-Geral do Ultramar - Lisboa" (Cortesia de Cristina Allen: faz parte de uma colecção de postais ilustrados da Guiné, enviados pelo seu então noivo e futuro marido, Mário Beja Santos). Podia muito bem ser o retrato de um Soncó, do Cuor... (LG)
Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Bafatá > O Alf Mil Rodrigues e o Fur Mil Reis, da CCAÇ 12, posando descontraídos para a posteridade no jardim público de Bafatá. Ao fundo, o Rio Geba. O Rodrigues, infelizmente já falecido, era o comandante do 4º Gr Comb da CCAÇ 12 que fez, com o Pel Caç Nat 52, a Op Gaúcho, e que é aqui referido neste episódio. É divertida a primeira ideia com que o Beja Santos ficou dos periquitos do 4º Gr Com da CCAÇ 12, e em particular das suas praças africanas, acabadinhos de chegar da instrução em Contuboel: Ora o que aconteceu foi que eu me arrepiei assim que chegou o sobredito 4º Gr Comb, eram crianças desaustinadas, talvez de 14, 15 ou 16 anos, zangavam-se por causa do transporte de munições, pegavam nas armas como enxadas, falavam ruidosamente e teriam uma noção muito opaca da disciplina. O que diria o ex-Alf Rodrigues desta apreciação crítica, pouco abonatória, sobre os seus homens, se ele hoje fosse vivo ? (LG).
Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.
Texto do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviado a 28 de Junho último (e reenviado a 23 de Julho). Por lapso, não foi publicada na semana anterior, devendo por isso corresponder ao episódio nº 55 e não ao 56, já publicado (1). As nossas desculpas ao autor e aos nossos visitantes:
Caro Luís, aqui vai o episódio da semana. Ainda pensei em escrever-te amanhã o episódio da outra semana, já que estarei ausente em férias, mas tenho compromissos inadiáveis até sexta feira ao fim da tarde. Garanto que na semana que começa a 9 enviarei dois textos, muito provavelmente os dois que concluirão o primeiro volume. Mas não haverá pausas, entrarei logo no segundo. Não te posso dar nenhuma sugestão para ilustração, o ideal era mostrarmos o Enxalé, ou o Geba ou até Madina Xaquili. Eu sei que operarás um milagre. Quero felicitar-vos pelo sucesso que tem sido a chegada de novos confrades. Isto ainda não é nada, acho que chegou a altura de se repensar o funcionamento do blogue, é um meio cada vez mais afectivo, todos somos responsáveis pela sua emissão e não percebo porque é que vocês os dois têm que ser os mártires do sistema. Um abraço do Mário.
55º episódio da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2). Título e subtítulos: autor e editor.
De Enxalé a Bambadinca, de Madina Xaquili a Salá
por Beja Santos
Uma memorável viagem ao Enxalé só para 'partir mantenha'
Pelas 6 da manhã de 19 de Julho de 1969, perguntei ao contigente que ia a Mato de Cão se me queriam acompanhar ao Enxalé. Os nossos motoristas foram o Setúbal e o Manuel Guerreiro Jorge. Tal como eu esperava, houve urras e manifestações de alegria, logo uma adesão espontânea.
Desta vez muni-me de uma garrafa de tinto do Dão Porta de Cavaleiros e alguns víveres que para nós era um luxo: carnes enlatadas, postas de bacalhau da Noruega, latas de pêssego, algumas galinhas vivas. E em clima de festa, sempre a picar de Canturé a Gambaná, aproveitando um cordial dia de sol, chegámos ao planalto de Mato de Cão ainda não eram 11 da manhã.
Felizmente que o comboio de batelões foi pontual, havia gente atónita a ver duas viaturas de combate numa estrada que era sabido estar fechado ao tráfego, e logo que o último batelão se perdeu da nossa vista avançámos a picar até Saliquinhé, avistando as bolanhas esplendorosas e ao abandono à volta de Samba Silate.
A recordar este passeio com Queta Baldé, ele fez questão de referir as casas em ruínas dos ponteiros de Saliquinhé até S. Belchior, com os seus ancoradouros, eram casas assentes em pilares de cimento, com balaustradas onde se enrendilhavam tijolos, agora as portas estavam arrancadas, os telhados esventrados, os utensílios em ferro das destilarias votados à ferrugem.
A picagem acelerou-se e da curva de S. Belchior inflectimos para o Enxalé, aí actuando com muito cuidado, a picada muito arenosa e cheia de sombras dos frondosos paus de conta e bissilões, o capim altíssimo, a propor uma imprevisível emboscada.
Tal como na viagem anterior, a Enxalé civil e militar vem-nos receber, interrogativa, à porta de armas. Escrevi para Lisboa no dia seguinte e referi o nome do alferes Taveira que nos acolheu de braços abertos e mais à vontade ficou quando lhe disse que vínhamos só "partir mantenha".
Como o mundo é pequeno, parentes de Braima Mané, de Abudu Cassamá, paizinhos, irmãozinhos e tiozinhos de soldados mandingas e fulas acorreram a saudar gente de Missirá com água fresca e papaia. O camarada Taveira falou vezes sem conta em solidão, isolamento, dificuldades tremendas para aquele pelotão defender a população com segurança. Respondi-lhe na mesma moeda, olhei para o sol por altura das 3 da tarde, pedi-lhe compreensão para os 25 km que iríamos percorrer a picar até Missirá e fizemos meia volta.
A seguir a S. Belchior ouvimos o troar de morteiros, a gente de Madina dava-nos a saber que não gostavam de ouvir viaturas naquela estrada onde carcaças de vários Unimogs e pneus estrilhaçados lembravam aos incautos que aquela terra estava interdita às nossas tropas.
Quando passámos por Gambaná, seriam 5 da tarde, ouvimos uma tempestade de fogo de reconhecimento, morteiros e rockets anunciavam o descontentamento. E ao findar da luz do dia entrámos em Missirá com o mesmo ar de festa com que partíramos.
Vale a pena aqui referir que na conversa havida com o camarada Taveira ele concordara na lógica de juntar o Enxalé ao Cuor, e daqui proteger melhor a navegação de Mato de Cão e até mais abaixo junto ao Xime. Mal houvesse oportunidade, tentaria sensibilizar os comandos para uma evidência que se perdera na criação do extenso e absurdo Sector L1, onde poucos se identificavam com o mesmo inimigo, com excepção óbvia de Xime/Mansambo.
Acima de tudo, guardava desta viagem os lindos panoramas do Geba, as intermináveis bolanhas que vão dos Nhabijões até Ponta Varela, um alucinante silêncio só cortado pelo pio das aves. Nessa noite, houve muita narrativa oral, Missirá estava a ser informada do que se passava no Enxalé, os militares-correio transmitiam lembranças, saudades, estados de saúde, esperanças e desesperanças.
A força de um tornado e uma conversa com o novo Comandante de Bambadinca
A 21 de Julho [de 1969], uma coluna de Finete informou-nos que o soldado milícia Sadjo Candé tinha falecido em Bambadinca e que antes de morrer pedira para ser acompanhado por nós até à sua última morada. Sabíamos que ele estava a sofrer de uma virose, pensávamos que era uma malária, foi uma surpresa para todos nós. Pedi a Bacari Soncó que levasse o corpo para a Capela de Bambadinca, pedisse ajuda do Cabo Costa, da CCS, que o vestissem com a sua farda, ao amanhecer metade de Missirá e de Finete iriam levá-lo a Madina Xaquili.
Assim foi. Saímos de madrugada, não havia meio de amanhecer, surgiu depois uma nesga de luz, era um fenómeno estranho, parecia que a abóbada celeste se transformara numa câmara escura. A manhã luminosa a que nos habituáramos com o fim da época das chuvas dava assim lugar a lusco-fusco, uma ventania que punha as copas das árvores a sibilar baixinho. Em Canturé, já passava das 7 horas, a ventania anunciava tempestade. E à entrada da rampa de Finete desabaram dois relâmpagos tão fulgurantes que enquanto a terra tremia o lusco-fusco criou a ilusão de uma câmara clara, um dia de tons eléctricos, um dia feito no estúdio de cinema. E depois voltou a semi-escuridão.
O burrinho dançava na picada, em direcção ao Geba, com o Setúbal a remoer palavrões com aquele tempo danado. É quando grito por Mufali Iafai, o nosso canoeiro, que o tornado se anunciou. Com ronco, ergueu-se um redemoinho sobre o cais de Bambadinca e saltaram as primeiras chapas dos telhados. Do céu escuro estalavam mais relâmpagos, víamos os animais a fugir, e depois as árvores, as de grande, médio e pequeno porte a querer saltar, a desprender-se pelas raízes. Os militares no cais gritavam a pedir a clemência de Deus ou, desorientados, fugiam para dentro dos armazéns. Os civis fugiam das árvores, certamente com medo dos raios. Do lado de cá do Geba, Bambadinca estava espectral: formavam-se e desapareciam os redemoinhos, as águas saltavam o cais, os arbustos voavam, as crianças fugiam, os adultos procuravam dar-lhes protecção.
Estávamos a ser recebidos por um desses tornados que tornam o dia, noite, que destroem casas, revolvem as florestas, despedaçam os bissilões, os poilões, o pau de cabaceira e o pau de mandjamdjan. E de repente, tudo se aquietou, como se a natureza tivesse cansada daquele grande grito de revolta, dos soluços e das imprecações dos sofredores. O temível espectáculo acabara, caminhámos para a Capela de Bambadinca. O morto não estava fardado, não foi fácil amortalhá-lo com o corpo em rigor mortis. Fardado e aprumado, fechámos a urna, revestimo-la com a bandeira, subimo-la para um Unimog 404. E fez-se a viagem para Madina Xaquili, não sem que antes o Comandante me dissesse que queria falar comigo antes de eu regressar a Missirá.
Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Aspecto do Edifício do Comando após o tornado de 25 de Abri... de 1971 (1). A maior parte dos militares portugueses não estava famializarizado com as bruscas tempestades tropicais, nem menos preparado para suportar o calor e a humidade do território... (LG)
Foto: Fernando Barata (2007). Direitos reservados.
Em Madina Xaquili [, a nordeste de Duas Fontes, vd. carta de Cansissé, ] entregámos com honras militares a urna à família, seguiu-se a cerimónia religiosa, regressámos emocionados. Era assim a dura guerra. Não sabíamos que dentro de dias, e por três vezes ainda nesse mês de Julho, esta tabanca iria ser duramente flagelada (4).
O novo Comandante, [do BCAÇ 2852, tenente-coronel Pamplona Corte Real,] pedia-me alguns comentários ao memorando que eu lhe enviara sobre o primeiro ano em Missirá. O que eu pensava da evolução do Cuor? Eu não tinha ilusões de que mesmo que tivesse mais disponibilidade para patrulhamentos ofensivos, o inimigo estava instalado no outro lado do rio Passa e do rio Gambiel, policiava os trabalhos da população civil, eu podia lá ir e atemorizá-los mas nada mais. No rio Gambiel, em 5Km a linha recta de Missirá, corria sempre o risco de ser recebido à morteirada, como acontecera em Janeiro. Os de Madina não atacavam Mato de Cão pela simples razão de que lá íamos diariamente, e sempre por itinerários diferentes, nos horários mais estrambólicos.
Acrescia que tínhamos indícios seguros que mesmo com patrulhamentos regulares as colunas de abastecimento aos Nhabijões, a Mero e a Santa Helena não só persistiam como se acentuavam. Sem actuar nos Nhabijões e na região de Fá, era tudo um jogo do gato e do rato, com algumas mortes de premeio. Voltei a insistir na questão do Enxalé, chamando a atenção para o redobrados ataques em Ponta Varela que podiam ser melhor dissuadidos na estrada entre Mato de Cão e Enxalé. Pensava que era indispensável rever-se todo o contigente do Enxalé a Finete e daqui para Missirá.
Relembrei que havia muita gente de Canturé a viver em Galomaro que aceitava voltar mas que o Comandante de Bafatá não considerava prioritário a criação desta tabanca em autodefesa.
- É assim, meu Comandante, estamos ali para aguentar, para que o rio Geba seja navegável até Bambadinca, para que o inimigo não se assenhoreie de toda a outra margem do Geba, é um aguentar sem população civil e com baixo nível de resposta. Aqui tem a verdade.
O Comandante Corte Real agradeceu, voltei para Missirá. À despedida, gentilmente, e como eu já me habituara a um ano de Guiné, ouvi a proverbial frase "Vou ver o que é possível fazer".
A Operação Gaúcho, com os putos do 4º Gr Comb da CCAÇ 12
Há sempre uma larga distância entre o que se escreve e o que se passou no terreno. O que se escreveu na história da CCAÇ 12 foi o seguinte:
A 26, o 4º Gr Comb segue para Missirá a fim de realizar com o Pel Caç Nat 52 um patrulha de nomadização na região de Sancorlã/Salá até à margem esquerda do rio Passa (limite a partir do qual começa a zona de intervenção do comandante-chefe), com emboscada entre Salá e Cossarandim por onde o inimigo fazia o seu reabastecimento de vacas. Verificou-se que os trilhos referenciados não eram utilizados durante o tempo das chuvas.
Ora o que aconteceu foi que eu me arrepiei assim que chegou o sobredito 4º Gr Comb, eram crianças desaustinadas, talvez de 14, 15 ou 16 anos, zangavam-se por causa do transporte de munições, pegavam nas armas como enxadas, falavam ruidosamente e teriam uma noção muito opaca da disciplina. Pela primeira e última vez em 25 meses completos de comissão reinventei o programa da operação. De Missirá seguimos para Sancorlã, tudo na mesma, ninguém esperava novidades, a não ser a possibilidade de, em 15 de Julho passado, o inimigo ter vindo de Quebá Jilã até Sancorlã.
Havia capim alto, o mato tomara conta da velha picada, nenhum indício de presença humana. O dia estava festivo e começou um momento glorioso deste patrulhamento. É uma floresta-galeria que vai de Sancorlã até Salá, um cheiro a trópicos, o grasnar dos pássaros surpreendidos pelo avanço da coluna, as gazelas e os javalis em fuga quando os nossos passos desvendam a terra virgem.
O que guardo nos meus olhos são os raios de sol a infiltrar-se na floresta, ouvem-se tiros espaçados seguramente de caçadores furtivos para lá do rio Passa. O Sol cai a prumo, escaldante, inebriante, quando chegamos ao rio. Aqui Queta comenta:
- Nosso alfero não acreditava no que dizia Queba Soncó, o rio é mesmo fundo, quem não sabe nadar desaparece. Tinha aqui acontecido uma desgraça, em 1963, logo no início da luta armada, gente de Badora, Ganadu e Joladu viera com o régulo do Cuor tentar apanhar a gente do PAIGC que se refugiara em Sarauol. Não conseguiram passar, houve gente que morreu. Nosso alferes despiu a farda, nadou e confirmou, o rio estava cheio de água. Levávamos o morteiro 81, dispararam-se duas granadas em direcção a Mansoná. E descemos para o rio de Quebá Jilã. Não havia trilhos, não havia culturas, chegámos a Cossarandim e aqui descansámos.
E foi aqui que tomei uma decisão de não avançar sobre Quebá Jilã onde seria provável haver uma confrontação com uma patrulha que policiasse os cultivadores desta enorme bolanha entre Quebá Jilã e o rio Passa. Metemos a corta-mato e avançamos para o coração do Cuor, como se descêssemos para Sinchã Corubal. Os jovens mostravam cansaço, o dia caminhava para o seu termo, não havia vestígios de trilhos, Quebá, à sorrelfa, atraía-me para Mato de Cão. E foi entre Mato de Cão e Chicri que pernoitámos.
Por ironia, não havia nessa manhã embarcações para vigiar. Subimos então de Chicri sempre à volta do rio de Biassa, aqui encontrámos os sinais da passagem da gente de Madina que viera flagelar-nos a 15 de Junho: ligaduras, cartuchos, invólucros de RPG2. Ao princípio da tarde chegámos a Missirá, o alferes Rodrigues e os seus homens insistiram em partir prontamente para Finete. O Teixeira, com o seu ar sempre comprometido, trazia uma mensagem com a hora da nossa próxima presença em Mato de Cão... Amaldiçoei não dispor de um rádio para evitar mais 12,5 Km em escassas horas.
Uma semana dedicada ao papa João XXIII... e ao policial
Com o processo de Abudu Cassamá e sua mãe Fatumana a acelerar, com a vinda do David Payne a Missirá (ainda o vejo a caminhar entre os destroços da casa de Quebá, cuja mulher se sinistrara em 15 de Julho) escrevi pouco e mal. Estou consciente do desgaste físico, aguardo a qualquer momento a chegada de resposta ao meu recurso, recordo que do SNI (o órgão de propaganda do regime) recebi uma carta a dizer que vai chegar uma pequena biblioteca dedicada aos grandes cultos da História de Portugal.
Capa do livro Papa João XXIII, de Erneto Balducci Lisboa: Portgália Editora, 1969 (Colecção Documentos Humanos, 24)(tr. do italino, Papa Giovanni, 1964).
Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.
A minha mãe mandou-me A Torre de Barbela , do Ruben A. e o Carlos Sampaio O imoralista, de André Gide. Não sei por anda a minha fé, mas leio com alegria o Papa João XXIII, de Ernesto Balducci, um dos livros que vieram na lembrança do meu padrinho. Este é o papa que mudou o meu pensamento sobre a sinceridade, a serenidade, a espontaneidade. Balducci organizou com tacto e afecto extractos do diário do Papa, procurando extrair ensinamentos desse homem simples, "O bom Papa João", como ele visionou o concílio Vaticano II, como ele sonhou o diálogo universal, a reinterpretação dos evangelhos, a aceitação da modernidade e se investiu de alma e coração na Paz na Terra aos homens de boa vontade.
Leio devagar, regresso amanhã ao lido anteontem, tiro notas, rezo enquanto leio. Estão ali frases que me mudaram a oração. Por exemplo, continuo hoje a dizer antes de adormecer: "Aguardo com simplicidade e alegria a chegada da irmã morte e recebê-la-ei seja qual for o momento em que aprouver ao Senhor enviar-ma". O seu sorriso ilumina-me a existência , quando ele escrevia "queridos irmãos" e dizia que se dirigia a todos sem excepção, eu penso nos povos de Missirá e Finete, no optimismo que instalaram na minha vida, a despeito de todas estas contrariedades, escassez de recursos, promessas que ninguém cumpre, a minha exaustão física que já não sei controlar.
E, claro está, leio policiais, tudo quanto me cai à mão e serena o espírito. Ofício de Matar de Frank Gruber é uma grande diversão e tem uma grande capa de Lima de Freitas. Desta vez a dupla Johnny Fletcher e Sam Cragg estão sem um tostão em Chicago e vão trabalhar num fábrica de coiros onde se dá um assassínio. Claro que os miolos deslumbrantes de Fletcher irão resolver tudo num final feliz, depois dele ter conseguido vender contrafortes a um cliente que até agora recusara negócios com a firma Towner. Mal sabia eu que essas páginas hilariantes iriam, muitos anos mais tarde, ser comentadas por meus alunos.
Capa do romance policial Ofício de Matar, de Frank Gruber. Lisboa: livros do Brasil, s/d. (Colecção Vamprio, 159). Capa de Lima de Freitas.
Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados
Li também Knock-out de Sapper, pseudónimo de Herman Cyril McNeile, um escritor britânico muito popular nos anos 20 e 30 que se consagrou em policiais de acção à volta do detective Ronald Standish, exímio jogador de criquete e golfe. Desta feita, Standish recebe um telefonema alarmante, o seu interlocutor grita, ele vai lá a casa e ele está morto com um olho brutalmente desfiado. É tudo pura acção, viagens trepidantes até se conseguir matar o horrível Demonico, um chefe de quadrilha que recorre ao terrorismo para angariar fortunas. Mas sente-se que os escritos de Sapper estão ultrapassados, estão hoje nos umbrais da literatura moderna, serão clássicos de estudo e nada mais. A literatura que triunfa tem a ver com problemas, desvendar soluções incríveis à volta de montagens perfeitamente tenebrosas ou engenhosas. Esta literatura do policial problema vai ajudar-me imenso em todo o ano que vem por aí.
Agosto está à porta. O [Fur Mil] Casanova voltou, mas sinto que sofre imenso. Ele vai ficar aqui com o [ Fur Mil] Pires, vou cumprir os meus deveres em Finete. É aqui que vai acontecer em 3 de Agosto uma história que me abalará da cabeça aos pés. Mas tenho que a contar com todo o sofrimento disponível (1). E até o indisponível.
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 20 de Julho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1978: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (56): Mataste uma mulher, branco assassino!
(2) Vd. posts:
6 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1927: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (54): Ponta Varela e Mato Cão: Terror no Geba
29 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1898: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (53): O ataque a Missirá de 15 de Julho de 1969, visto pelo bravo mas modesto Queta Baldé
13 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1948: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (52): Em Bissau, no julgamento do Ieró Djaló
22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1870: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (51): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (5)
15 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1851: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (50): Do tiroteiro em Bambadinca na noite de 14 de Junho de 1969 à emboscada da bruxa
(3) Vd. post de 15 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1595: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (3): minas, tornados, emboscadas, flagelações e acção... psicossocial
(4) Vd. post de 29 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVIII: O baptismo de fogo da CCAÇ 12, em farda nº 3, em Madina Xaquili (Julho de 1969) (Luís Graça)
(...) "(l) Julho/69: Baptismo de fogo em Madina Xaquili
"Ainda não haviam sido distribuídos os camuflados às praças africanas quando a CCAÇ 12 fez a sua primeira saída para o mato. A 21, três Gr Comb (2º, 3º e 4º) seguiam em farda nº 3 para Madina Xaquili a fim de reforçar temporariamente o sub- sector de Galomaro,[a sul de Bafatá].
"Entretanto, o 1º Gr Comb efectuaria à tarde uma patrulha de segurança ao Mato Cão, [no chamado Rio Geba Estreito], tendo detectado vestígios muito recentes do IN que fizera uma tentativa de sabotagam da ponte sobre o Rio Gambana, provavelmente na altura do último ataque a Missirá (a 15).
"Este afluente do Rio Geba está referenciado como um ponto de cambança [travessia] do IN. Depois de se ter mostrado particularmente activo, durante o mês anterior na zona oeste do Sector L1 (triângulo Xime-Bambadinca-Xitole), o IN procurava agora abrir uma nova frente a leste, utilizando as linhas de infiltração do Boé [Madina do Boé tinha sido abandonada pelas NT em 8 de Fevereiro último e logo ocupada pelo IN] e visando especialmente as tabancas de Cossé, Cabomba e Binafa.
"Dias antes IN tinha atacado três tabancas do regulado de Cossé [donde era oriunda a maior parte das nossas praças africanas]e reagido a uma emboscada das NT.
Sori Jau, a primeira vítima em combate
"Seria, aliás, em Madina Xaquili que a CCAÇ 12 teria o seu baptismo de fogo. Os três Gr Comb haviam regressado, em 24, à tarde, dum patrulhamento ofensivo na região de Padada, tendo ficado dois dias emboscados no mato (Op Elmo Torneado), quando Madina Xaquili foi atacada ao anoitecer por um grupo IN que muito provavelmente veio no seu encalce.
"0 ataque deu-se no momento em que dois Gr Comb da CCAÇ 2446 que vinha render a CCAÇ 12, saíram da tabanca a fim de se emboscarem. [Esta companhia madeirense teve dois mortos e vários feridos].
"0 IN utilizou mort 60, lança-rockets e armas ligeiras, tendo danificado uma viatura e causado vári¬os feridos às NT. O primeiro ferido da CCAÇ 12 foi o soldado Sori Jau, do 3º GR Comb, evacuado no dia seguinte para o HM [Hospital Militar] 241 [Bissau].
"A 25, os três Gr Comb regressam a Bambadinca com a sua primeira experiência de combate. Nesse mesmo dia, o 1º Gr Comb participava numa operação, a nível de Batalhão no sub-sector do Xime. Foram detectados vestígios recentes do IN na área do Poindon mas não houve contacto (Op Hipopótamo).
"No dia seguinte à tarde, depois das NT terem regressado ao Xime, o aquartelamento seria flagelado com canhão s/r e mort 82 durante 10 minutos.
"A 26, o 4º Gr Comb segue para Missirá [, a norte do Rio Geba,] a fim de realizar com o Pel Caç Nat 52 uma patrulha de nomadização na região de Sancorlã/ Salá até à margem esquerda do RPassa (limite a partir do qual começa a ZI do Com-Chefe), com emboscada entre Salá e Cossarandin onde o IN vinha com frequência reabastecer-se de vacas.
"Verificou-se que os trilhos referenciados não eram utilizados durante o tempo das chuvas (Op Gaúcho).
"Entretanto, uma secção da CCAÇ 12 passava a ficar permanentemente destacada (…), [falta aqui um bocado de texto, presumo que fosse em Sansacutà ], na sequência de informações de que o IN se instalava de novo no regulado do Corubal, e na previsão duma acção de força contra o eixo de tabancas em auto-defesa a sudeste de Bambadinca" (...).
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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