sexta-feira, 6 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1927: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (53): Ponta Varela e Mato Cão: Terror no Geba

Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > No passado dia 20 de Junho fez uma ano que o Mério Beja Santos (a par do comandante Pedro Lauret) entrou para a nossa tertúlia (hoje, Tabanca Grande) (1). Fui desinquietá-lo ao Instituto do Consumidor (hoje, Direcção Geral de Consumidor)... O Mário começou furiosa, compulsivamente, a escrever, a reconstruir as suas memórias do Cuor, de que ele foi dono e senhor entre 1968 e 1970... O Tigre de Missirá voltou aos seus bons velhos tempos... Semanalmente publicamos um episódio da série Operação Macaréu à Vista. Hoje será o nº 53. O Mário quer publicar estes seus textos em livro. Está a negociar com uma editora. E , a levar o livro (eventualmente em dois volumes) para a frente, quer que os direitos de autor revertam para projectos de interesse comum, no âmbito da nossa tertúlia. No peisódio de hoje, ele relembra os temíveis ataques às embarcações que demandavam o Xime e Bambadinca. Estam,os em finais de Julho de 1969, quando a CCAÇ 12 ( aminha unidade) é colocada ao serviço dos barões de Bambadinca. O BCAÇ 2852 acaba de ser decapitada. Spnínola renova o comando. Pimentel Bastos, humilhado, acabou ali a sua carreira. O novo senhor da guerra chama-se agora Pamplona Corte Real.

O Mário escreve à Cristina, sua noiva: "Sinto-me hoje muito emotivo, estas belezas naturais comovem-me sem eu perceber porquê, é como se o fervor que eu já não tenho na oração o transferisse para a consagração deste reino vegetal". É um elogio ao Cuor vegetal...Não tenho nenhuma foto da época para ilustrar este estado de espírito... Fui ao meu álbum (secreto)... As flores e abelha (não assassina como as do Cuor) são portugesas e recentes (Lourinhã, Junho de 2007). É também uma pequena homenagem a um dos nossos mais activos, entusiásticos e profícuos tertulianos, a quem desejamos continuação de boa navegação na blogosfera.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tomada do lado da bolanha. Em Julho de 1969, há um novo senhor da guerra, à frente dos destinos do Sector L1 e do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pamplona Corte Real.

Foto: © Humberto Reis (2007). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Uma autogrua, da engenharia militar, de marca Galion, a (des)embarcar vacas no cais de Bambadinca, onde havia um pelotão de intendência, e onde ficavam armazenados muitos dos víveres e mantimentos que alimentavam as tropas da Zona Leste (Bafatá e NovaLamego).

O Rio Geba era navegável até Bafatá, mas do Xime para cima o curso do rio, sinuoso e mais estreito, só permitia a navegação de pequenas embarcações, de menor calado, militares (LDM, LDP) ou civis (por exemplo, da Casa Gouveia: a propósito, havia o mito de que as embarcações da Casa Gouveia, ligada ao Grupo CUF, e onde Luís Cabral trabalhara, como empregado antes de passar à clandestinidade, tinham livre trânsito do PAIGC, nunca sendo atacadas...) .

Esta autogrua da engenharia militar viu-se grega para chegar até aqui - estória que já contámos noutra ocasião mas que poderá ser retomada em breve. A Galion veio para reforçar os parcos equipamentos portuários existentes até então no cais de Bambadinca. E, se a memória não me atraiçoa, esse reforço coincide com o desenvolvimento do ambicioso e polémico projecto de reordenamento de Nhabijões, a que esteve ligado o Luís Moreira e outros camaradas de Bambadinca (incluindo malta da CCAÇ 12, como o Alf Mil Carlão, o Fur Mil Fernandes e o Sold Cond Soares, que aqui encontrará a morte em 13 de Janeiro de 1971).

Foto de 1970, gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-Alf Mil Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), gravemente ferido numa mina anticarro em 13 de Janeiro de 1971. Tive o grato prazer de o rever e abraçar no nosso encontro em Pombal, em 28 de Abril de 2007. (L.G.).


Foto: © Luís Moreira (2005). Direitos reservados

O Geba Estreito, junto a Bambadinca. Pirogas, na margem esquerda, que faziam a cambança do rio (ligação ao Cuor: Finete, Mato Cão, Missirá...).

Foto: © Luís Moreira(2005). Direitos reservados.


Mensagem de Beja Santos, com data de 20 de Junho passado (um ano depois de entrar, a meu convite, para a nossa tertúlia):

Caro Luís, aqui vai o apontamento enviado ontem, agora devidamente corrigido. Pelas minhas contas, o primeiro volume [do livro Operação Macaréu à Vista] terminará com mais três episódios, ou seja, em meados de Agosto de 69. Vou ser recebido pela Guilhermina Gomes, editora do Círculo de Leitores, para apreciarmos o projecto.

Penso que com os créditos fotográficos não haverá quaisquer problemas, o Humberto, com quem trabalharei amanhã, não põe objecções nas suas fotos. É essa a razão também porque te reenvio uma fotografia [, uma vista aérea do quartel de Bambadinca,] que me parecia útil para este episódio. Vai separadamente. Peço-te a gentileza, quando tiveres uma aberta, de mandares os primeiros [os links dos] 50 episódios anteriores. Igualmente, quando tiveres tempo e oportunidade, seria útil promoveres o debate acerca da transformação dos meus direitos de autor no nosso bem comum. Recebe toda a amizade do Mário.

53ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2). Os destaques a bold e a cores são da responsabilidade do editor.


As danações de Ponta Varela
por Beja Santos


Chegou o terror sanguinolento ao Geba, para lá do Xime.


É um amanhecer luminoso e do planalto de Chicri avista-se um [Rio] Geba de prata, estuante, quase genesíaco. É um tempo invulgar para esta época das chuvas, mas desde ontem que a Mãe Natureza parece querer advertir-nos que vem aí outro tempo, de calor persistente.

Olho o relógio, o comboio de batelões já devia ter passado há cerca de meia hora, de novo assesto os binóculos para o fim do horizonte, nada, nenhum ponto se avista, certamente que houve algum atraso na saída de Bissau. Tenho um mau presságio, parece que para lá do Xime se ouvem obuses, talvez o som dilacerante dos rockets. Interpelo Mamadu Camará acerca deste fogo e ele responde que sim, é para lá do Xime, talvez uma emboscada, talvez uma flagelação, pode ser mesmo um reconhecimento de obus, são sons cavos que a distância não permite identificar. Segue-se o silêncio, sufocante. Depois olho para a estrada que bordeja toda a vareda do rio e se perde ao fundo, onde eu sei estar o que resta de Saliquinhé.

Sinto uma enorme atracção por voltar ao Enxalé, para quem não sabe, caso não houvesse esta guerra, o burrinho em cerca de hora e meia chegaria a Bissau, depois de passar pelo Enxalé, Porto Gole, Nhacra. É a mesma estrada que para cima leva ao Gambiel, e depois a Geba e a Bafatá. A minha ansiedade cresce enquanto o Geba refulge os tons de prata, para lá de Madina ouvem-se uns tiros esparsos como se nos avisassem que há território hostil à nossa espera.

É então que assoma uma embarcação ziguezagueante, estranhamente morosa. Dirijo-me, intrigado, para o ancoradouro e depois de meia hora de espera díficil, o contramestre fala comigo com o horror estampado nos olhos. Uma coluna de 5 batelões, aproveitando a correnteza do Corubal aproximara-se do Geba estreito perto de Ponta Varela. Súbito, várias roquetadas atingiram a casa das máquinas deste barco e ele mostra-me os estilhaços, os vidros partidos, vestígios de algum sangue, um dos feridos vinha ao leme. O terceiro barco foi atingido nas máquinas, vem agora rebocado ao segundo barco, vem lentamente, quase encostado a esta berma do rio. Suplica-me que não me vá embora, que espere por eles, os feridos mais graves vão já para Bambadinca.

E, de facto, quase uma hora depois o pequeno comboio de barcos atacados chega a Mato de Cão. Há sinais de pavor, dou comigo a pensar se a estratégia da guerrilha não mudou radicalmente, Ponta Varela agora é o local temível da destruição, não sei medir as consequências, mas sinto que é necessário rever a protecção desta margem do rio, mesmo em frente a Ponta Varela. Seguimos no último barco, quero ir relatar este episódio ao 2º Comandante.



Uma conversa com o novo comandante, Pamplona Corte Real


Chegado a Bambadinca, sou informado no aquartelamento que chegou o novo comandante. Dou sinal no gabinete ao lado do comando que cheguei, anunciam-me e para minha surpresa sou imediatamente recebido.

Jovelino Sá Moniz Pamplona Corte Real é um cinquentão robusto, ainda com farripas de cabelo louro, tem um sorriso ameninado, um olhar azul inocente, tem boas maneiras e pede-me informações sumárias sobre o Cuor. Começo por lhe falar em Mato de Cão, dou-lhe conta do ataque sofrido há horas pelas embarcações civis, repiso no conceito de que é indispensável reinstalar Enxalé no nosso sector, não se me afigura possível deslocar diariamente pelotões para Ponta Varela a partir do Xime e ao mesmo tempo montar segurança nesta margem do rio, com Enxalé seria mais fácil acompanhar os movimentos na estrada de Mato de Cão, em Missirá e Finete passaríamos a ter condições para voltar aos patrulhamentos ofensivos, pela força das circunstâncias estamos cada vez mais limitados a Mato de Cão, às emboscadas nocturnas e às colunas de reabastecimento.



Um operação com um nome mexicano para ajudar a fazer rodagem à CCAÇ 12

O novo Comandante ouve atentamente, escreve num bloco de notas, despede-se com cordialidade, remete-me para o 2º Comandante. Ainda não houve oportunidade para apresentar o Major Herberto Sampaio, voz tonitruante, procurando acamaradar mas recordando sempre a hierarquia piramidal. Fala-me sumariamente na operação Gaúcho que terá lugar ainda esta semana. Este nome mexicano, para uma ida a dois pelotões até Sancorlã, patrulhando até Salá, descendo junto da antiga tabanca de Cossarandim, emboscando no rio de Biassa, descendo por Mato Madeira até Gambaná, é um perfeito enigma. Mas quando já se participou nas operações Hipopótamo, Bate no duro, Goldfinger, Fado Hilário, por exemplo, tem pouco interesse saber porque é que uma operação se chama Gaúcho.

O que importa é que me deslocarei com um grupo de combate da CCAÇ 12 que está a chegar a Bambadinca e precisa de rodagem. Digo a tudo que sim, despeço-me, vou cumprir a burocracia com o Tenente Pinheiro, levanto material da construção civil, alguns géneros, vou comprar ao Rendeiro lâmpadas, uma toalha para a mesa das nossas refeições, camisas para os petromaxes, comemos uma bifana no Zé Maria e rumamos para a bolanha de Finete.


Um elogio ao Cuor vegetal

Ao longe, os palmeirais parecem acenar neste dia de céu luminoso que vai secando os charcos de lama que dão conta da longuíssima época das chuvas. Interrogo-me como ainda é possível receber como primeiras sensações o deslumbramento deste bissilões que agitam os seus braços frondosos, ou contemplar com pasmo as imponentes árvores de pau sangue. Antes de entrar em Finete olhos os mangais, os arrozais túrgidos, os campos de legumes, falo com mulheres e crianças que trazem quiabos, papaias, beringelas.

Procuro Fatu Cassamá, dentro de dois dias vou levá-la de novo ao David Payne [, o Alf Mil Médico do BCAÇ 2852,] depois do incêndio de 19 de Março perdeu-se todo o processo, voltámos ao ritual das deprecadas, inquéritos, questionários, exames médicos. Marco com Bacari Soncó um novo horário para a ida da população civil à enfermaria, anuncio que o burrinho irá até à berma do rio para irmos buscar mais sacos de arroz a Madina Bonco, o sol está no zénite quando galgamos a íngreme subida de Finete e me despeço, na estrada de Canturé, de duas secções do pelotão de milícias que vão patrulhar de Cansonco até Gã Joaquim

Trago cartas, com expediente da guerra e nosso correio de além-mar, vou passando em revista as actividades que nos esperam esta semana em Missirá, flanqueamos a estrada cheio de capim alto, um convite para uma boa emboscada, atravessamos os morros de baga-baga em Canturé, sinto sempre nostalgia quando vejo as estacas calcinadas das velhas moranças, dos ferros das destilarias exploradas por um cabo-verdiano e um açoreano. Depois Caranquecunda feita uma seara de capim, atravessamos o pontão por onde corre a ribeira abundante, chegamos a Missirá ao entardecer.

Quantas vezes já fui a Mato de Cão: duzentas? trezentas? Mais, menos? Mal chegados, cumpridas as formalidades das arrumações de tudo quanto foi adquirido em Bambadinca, antes mesmo de abrir o correio e saber que Bissau comunica a chegada de substitutos de outros soldados, antes mesmo de saber que três dos meus bravos vão ser condecorados, antes mesmo de abrir a carta do Batalhão de Engenharia que refere o gerador com o seu manual de instruções, sento-me à minha secretária e escrevo.

Primeiro para o Luis Zagalo [de Matos], agradecendo-lhe as suas últimas notícias, enviando-lhe fotos de alguns soldados, tal como ele pediu. Inevitavelmente, falo-lhe do que aconteceu na noite de 15 de Julho, demoro-me nas marcas da flagelação, os destroços da casa de Quebá Soncó, que também foi seu picador, falo-lhe do sinistro de Fatumana, das birras da anciã que não quer cubata quadrangular, falo-lhe das vissicitudes do processo de Abudu Cassamá e anuncio que a época seca já está a dar sinais. Despeço-me pedindo-lhe que telefone à Cristina e lanço a suposição que casaremos em breve, talvez em Lisboa.

Depois escrevo ao Ruy Cinatti, agradecendo-lhe os livros de Saint-John Perse, o Prémio Nobel da Literatura de 1960 e a beleza dos poemas Eloges e Anabase. Folheio a bonita edição da Gallimard e como se escrevesse para mim transcrevo: "Homens, gentes de poeira e de todas as maneiras, gentes de negócio e de lazer, gentes dos confins e gentes de alhures, ó gente de pouco peso na memória destes lugares; gentes dos vales e dos planaltos e das mais altas vertentes deste mundo no termo das nossas margens: farejadores de sinais, de sementes e confessores de sopros no Oeste; seguidores de pistas, de estações, levantadores de acampamentos à brisa de madrugada; ó pesquisadores de olhos de água sobre a casca do mundo; ó pesquisadores, ou achadores de razões para se ir alhures, vós não traficais com sal mais forte, quando pela manhã, num presságio de reinos e de águas mortas, altamente suspensas, por cima das fumaças do mundo, os tambores do exílio despertam nas fronteiras a eternidade que boceja nas areias".

Sim, andei a plagiar inconscientemente este mestre de fosforecências, elogios sagrados, sinais do transcendente. Mas que importância tem eu curvar-me perante a ressonância destas imagens quando elas me tocam nos cinco sentidos dos assombros da mata à volta?

Continuo a escrever para Lisboa, as páginas desalinhadas do meu diário para a Cristina. Sim, vamos recuperar a casa de Quebá Soncó, um novo chuveiro está a funcionar, tenho desgosto pela partida do Pimentel Bastos, Bambadinca está diferente, um dia de consistente ensolaramento foi a nossa companhia, prometo regressar a Bafatá dentro de dias para tratar dos nossos papéis, escrevo uma frase dilacerante: "Sinto-me hoje muito emotivo, estas belezas naturais comovem-me sem eu perceber porquê, é como se o fervor que eu já não tenho na oração o transferisse para a consagração deste reino vegetal".

Depois falo-lhe de Bambadinca e do novo comando onde se sente que as preocupações defensivas passaram a ter mais peso. Faço perguntas sobre os seus estudos e despeço-me esmagado pelas saudades. Fecho os aerogramas e então sinto o chamamento do cansaço, vou para o balneário não sem antes contemplar embevecido a abóboda celeste estrelejante, uma quase resposta ao belo dia que entrou no negrume profundo.

Ao jantar, com auxílio do Pires, falamos dos reforços dessa noite, do grupo que vai emboscar, notício sem detalhes que vamos ter a Gaúcho, fiquei a saber igualmente que em Setembro voltaremos ao Xime e ao Burontoni, ele vai partir para a emboscada, hoje não há loto nem bisca lambida, tenho que ver as contas da cantina com o Alcino e o Queiroz. Aproveito para dizer ao Teixeira que já traz uma mensagem descodificada nas mãos a anunciar que devo voltar a Mato de Cão ao meio dia, que chegará em breve um colaborador, um tal Alcino Bairrada, que ficará ferido a 16 de Outubro, em Canturé.

As horas passam, já fui ver os postos de sentinela, conversei com Mussá Mané que me fez vários pedidos em nome da população civil, fui visitar soldados com malária ou carregados de viroses, confirmo que as contas estão em ordem, o Alcino apresenta-me a lista das munições e do equipamento em falta, são assuntos para resolver para a semana.

Foi um dia intenso e preocupante. Ainda não disse a ninguém, embora o Setúbal e o Xabregas estejam desconfiados com as inúmeras perguntas que fiz à mesa sobre o estado do 404 e do burrinho. Para surpresa dos dois, saíremos amanhã, igualmente com sol radioso, para Mato de Cão e depois Enxalé. Será uma linda e comovente viagem que vai selar, mal sabia eu, a reaproximação de Enxalé ao sector de Bambadinca.

Chegou o momento de gozar a solidão, vou ler até adormecer.


A semana de Jean Cocteau

Ao longo da semana, reli ou conheci obras de Jean Cocteau, tudo graças ao Carlos Sampaio. Reli Les Enfants Terribles, uma obra prima muito próxima do surrealismo, onde não estão ausentes as sequelas do dadaísmo. É o sonho e o inconsciente, um estilo musculado, frases sóbrias cheias de contra-senso e provocação. Dois irmãos, adolescentes, vivem num quarto numa desordem inacreditável. O pai já desapareceu , a mãe vai falecer, um outro jovem amigo pede a um tio rico que ajude estes dois irmãos. A relação destas crianças paira pelo obsessivo e o freudiano, quase que somos induzidos a um estado incestuoso. No final, os dois irmãos suicidam-se quase que ao nível de uma ópera. Quando digo dadaísmo é porque esta prosa balança-se entre o ilógico e o absurdo, a denúncia da demência da guerra é um propósito descarado, feita num barroco que se veste de escândalo e falta de sentido.


Capa do livro - peça de teatro em 4 actos - de Jean Cocteau (1889-1963), La machine infernale. Paris: Bernard Grasset. 19674 (Livre de Poche, 854).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007).


Capa da novela de Jean Cocteu. Tomaz, o impostor. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Miniatura, 51). Capa de Bernardo Marques.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007).
Até agora o que mais me entusiasmava no génio de Cocteau eram os seus filmes e algum do seu teatro. La machine infernale, Édipo e Jocasta, Tirésias e Antígona, sempre me pareceram soberbas reaproximações da tragédia grega. Esta peça foi representada pela primeira vez com a voz de Cocteau, e enquanto a releio imagino-o a declamar: "Regarde, spectateur, remontée à bloc, de telle sorte que le ressort se déroule avec lenteur tout le long d'une vie humaine, une des plus parfaites machines construites par les dieux infernaux pour l'aneántissement mathématique d'un mortel".

É com gosto que leio Tomaz, o Impostor, uma grande novela que ele escreveu com pouco mais de 20 anos. É igualmente um Cocteau dadaísta e surrealista, denunciando a guerra das trincheiras, a ingenuidade de um adolescente aldrabão e lunático que se move num círculo decadente e procura o heroísmo até sucumbir, vítima do mundo delirante que ele próprio urdiu. Esta guerra das trincheiras não me vai sair da cabeça tão cedo. E a lição de que não devemos engrandecer-nos com as paródias do inferno.


Um ano de Guiné

Para a semana, faz um ano que desembarquei no cais de Bissau. Não acredito que o tempo seja tão breve, tão intenso. Não acredito que tenha mudado tanto. Não acredito que tenha chegado num barco de mancarra, de saco a tiracolo, com latas de leite e pão apresuntado. Fiz a mesma viagem onde hoje faço vigilância, mais do que diária.
Um menino falou comigo durante toda a viagem. Ia visitar uns tios a Bafatá, falou-me das ilhas, anoiteceu, passámos as luzes do Xime, e em Mato de Cão o Almeida e o Pel Caç Nat 63 não sabiam que eu vinha ali. Nada tem importância, Missirá é um ponto no mapa, Finete é um encargo, a única coisa que conta em termos militares é que os barcos cheguem a Bambadinca, e todos com vida.

Não passaremos à história, mas os barcos, todos eles, vão chegar a Bambadinca, com a nossa vigilância, nesta margem do Geba. Louvado seja Deus pela coragem e pelo entusiasmo que tomam conta de mim.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 20 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P887: Dois novos tertulianos: Pedro Lauret e Beja Santos (Luís Graça)

(...)" O caso do nosso camarada Beja Santos foi ainda mais célere... Comecei com cerimónias [, ao telefone,] e acabámos no tu-cá-tu-lá, voltando aos velhos tempos de Missirá, Finete, Mato Cão, Bambadinca...

(...) Amigos e camaradas: a nossa caserna fica hoje mais rica, com a entrada do Pedro Lauret e do Beja Santos... A entrada de cada novo amigo ou camarada é sempre um momento bonito... Há trinta e tal anos atrás, seria celebrado mais ruidosamente, com umas valentes rajadas de G3... Agora estamos mais calmos, mais sábios, menos folgosos, mais amigos do ambiente, mais respeitadores do erário público, quiçá mais pacifistas, seguramente mais velhos... Espero que eles se sintam em casa, nas suas sete quintas, no seu meio (aquático, terrestre, aéreo, cibernáutico...) e que continuem sobretudo com essa imensa vontade de partilhar connosco a sua excepcional experiência como homens e como operacionais...

"Mário e Pedro: É também um privilégio contar convosco!... Vocês são mais dois pesos pesados da guerra que nos calhou em sorte... Conto convosco para nos ajudarmos, uns aos outros, a reconstituir o puzzle da nossa memória colectiva... Temos essa obrigação, perante nós próprios, o povo português, o povo guineense e a nossa história parcialmente comum" (...)

(2) Vd. post de 29 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1898: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (52): O ataque a Missirá de 15 de Julho de 1969, visto pelo bravo mas modesto Queta Baldé

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