segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2229: Questões politicamente (in)correctas (35): RTP: o (im)possível debate sobre a guerra (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem recente do Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil - e grande fadista! - que, na Guiné (1971/73), pertenceu a três unidades: CART 3492 (Xitole), Pel Caç Nat 52 (Mato Cão / Rio Udunduma) e CCAÇ 15 (Mansoa). Caros Luís e Camaradas da Guiné:

Em 17 deste mês enviei o mail abaixo. Como não obtive qualquer resposta e o assunto me parece ser actual, fiquei na dúvida se o receberam.

Sei muito bem que nem todos os mails que enviamos são objecto de publicação e, seja qual for o critério dos editores, concordo à partida desde já com eles.

Sei que este assunto é polémico mas também sei que se não enfrentarmos as coisas que vivem nas nossas vidas, dificilmente alcançaremos a paz sobre o nosso passado.

Nós não fomos políticos, fomos apenas os soldados que foram chamados a combater pela sua Pátria, independentemente da razão ou não razão da mesma. Em todas as guerras há sempre diversas visões e a maior parte delas colidem umas com as outras. Para termos paz, pelo menos eu, não podemos atribuir virtudes só a um dos lados e o outro ser o condenado.

Por isso falo em termos militares, puramente militares, pois apenas vejo, (parece-me), grandes feitos de um lado, e defeitos do outro, ao qual eu pertencia.

É muito dificil explicar onde quero chegar, e sei, repito, que o assunto é polémico, mas não há dúvidas que falta essa análise sem vergonhas, nem sentimentos de culpa.
Estarei enganado? É possivel, mas a verdade é que sempre me incomodou dar certas coisas como adquiridas, por isso digo que se calhar ainda é cedo para uma análise desapaixonada deste ponto de vista.

Repito que nada disto implica com a condenação da guerra, (esta e qualquer outra), que ainda bem terminou e nunca devia ter acontecido.

Abraço amigo do

Joaquim Mexia Alves
Termas de Monte Real
Tel: +351 244 619 020 / fax: +351 244 619 029


2. Mernsagem de 17 de Outubro, enviada pelo Joaquim Mexias Alves:

Assunto: Prós e Contras

Caro Luís e Camaradas da Guiné:

Também assisti ao [programa] Prós e Contras, mas confesso que me começou a faltar a pachorra e fui-me deitar.

Como o Luís, também acho que aquele formato de programa, já não dá. Fico sempre com a impressão que o programa se podia chamar "Fátima e os seus convidados", pois a maior parte das vezes ela fala mais que os convidados e constantemente interrompe o discurso e linha de pensamento dos mesmos.

Bem esta é a minha apreciação, outros verão de modo diferente!

Quanto ao debate: Apesar de já ter passado muito tempo, provavelmente ainda é pouco, porque se nota que as paixões estão à flor da pele. Ou seja todo o debate está eivado de política e por isso mesmo muitas vezes carece de objectividade.

Claro que seria difícil falar de uma guerra destas sem falar da política ou do ponto de vista político, mas a guerra não se resume apenas à política.

Passaram a maior parte do tempo a discutir se a guerra era do ultramar, se colonial, se de libertação.Ora, abóbora, conforme o pensamento de cada um ela terá a designação que cada um lhe quer dar: (i) Do ultramar, porque uns acreditavam ou queriam acreditar servindo os seus interesses, que aqueles territórios eram parte integrante do "todo nacional"; (ii) Colonial por aqueles que viam ou queriam ver, servindo os seus interesses, aqueles territórios como colónias; (iii) De libertação por aqueles que, sendo desses países a fizeram, porque aqueles que sendo desses países os apoiaram, mas lembrando que alguns, sendo desses países, com ela não concordavam, e por isso não seria para eles de libertação.

Como foi chamada a guerra das Malvinas? Do ultramar pelos ingleses, colonial pelos argentinos, de libertação pela população, ou alguma população?

Não me parece que isso seja muito importante, pelo menos para mim não é.

Agora pode-se discutir esta guerra do ponto de vista político, do ponto de vista militar e do ponto de vista politico-militar.

Naquele debate parece-me ter-se discutido apenas do ponto de vista político e, como tal, deu em nada. Acaba por se ver e ouvir sempre os mesmos a dizerem as mesmas coisas, citando outros, mas sem grandes provas que eles o tenham dito, servindo-se de frases muitas vezes tiradas de contexto, etc, etc.

E os milicianos? E aqueles que não eram militares profissionais e oriundos de diversos pensares e vivências? O que pensam eles? Alguém viu? Alguém sabe? Alguém quer saber?

Afinal quem fez a guerra, na sua esmagadora maioria, foram os militares de carreira ou os milicianos?

Com isto não estou de modo nenhum a colocar de lado os militares profissionais, que os há e muitos, cheios de competência e dignidade, e que me orgulho de ter servido sob o seu comando.

Mas a verdade, e é a minha opinião, é que a maior parte tenta sempre demonstrar que a guerra estava perdida, e isso cheira-me muitas vezes a uma qualquer justificação!

Claro que a guerra estava perdida! Estava perdida politicamente, como qualquer guerra daquele tipo, e pelo desgaste e a pressão internacional, estaria também perdida militarmente, pois demorasse o tempo que demorasse acabaria na independência daqueles povos.

Mas agora, e era isso que gostava de ver debatido com verdade e sem paixões políticas e outras, verdadeiramente porque se diz que a guerra estava perdida militarmente na Guiné?

É uma afirmação permanente, com a qual eu não concordo, e até agora ninguém me demonstrou o contrário.

Com isto não quero dizer que não fico muito feliz com a independência da Guiné, (gostava de ver um país próspero e um povo feliz), mas sim que se pode analisar a situação, não por dois ou três lugares ou acontecimentos, mas pelo todo.

Vejamos a titulo de exemplo:

Estive de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973 na Guiné e durante esse tempo, que eu saiba, não houve nenhuma emboscada ou ataque a qualquer coluna na estrada Bambadinca/Xitole, ou Bambadinca/Bafatá, ou Xitole/Saltinho, ou, julgo eu, Bafatá/Gabu (Nova Lamego)

Não houve, que eu me lembre, qualquer ataque a barcos no Geba, entre o Xime e Bafatá.

Em Mansoa estávamos a abrir a estrada de Jugudul, (salvo o erro), Portogole e a mesma avançava, claro que com algumas acções de guerra, mas nada que a impedisse.

Montei várias vezes protecções a colunas na estrada entre Mansoa e Mansabá, na zona do Morés e as colunas passaram sem incidentes.

Isto são só alguns exemplos que logicamente não retratam também o que se passava em toda a Guiné, mas parece-me que os trágicos episódios de Gadamael, Guileje e Guidage acabaram por determinar essa informação que a Guerra estava perdida militarmente.

Em muitas guerras, em muitos lugares, ao longo da história do mundo, se perderam algumas praças, mas não se perdeu a guerra.

Em Angola a guerra estava perfeitamente controlada e isto penso que é opinião geral. Em 74 e 75 fiz milhares de quilómetros no interior de Angola e nem um pequeno incidente aconteceu. Assim o esforço militar que se estava a fazer em Angola, podia ser desviado em parte para a Guiné, mormente Força Aérea com outras capacidades, o que poderia mudar muita coisa na Guiné.

Com isto não estou a dizer que queria que a guerra continuasse! Não, nem tal me passa pela cabeça, ainda bem que acabou, para todos nós, Guineenses e Portugueses!

Apenas quero dizer que, na minha opinião, a guerra militarmente não estava perdida, ou pelo menos ainda não mo conseguiram demonstrar.

Sei que esta é uma abordagem polémica, e que a análise que aqui faço, (se é que se pode chamar análise a este arrazoado de ideias), não demonstra coisa nenhuma, mas talvez suscite discussão sã sobre os méritos ou deméritos das Forças Armadas Portuguesas, às quais pertencemos, embora alguns dos seus elementos nos queiram esquecer.

Agora, Luís, deixo-te isto escrito para fazeres o que quiseres, no sentido de que só com serenidade, com distância política e emocional é possível fazer uma verdadeira discussão e análise ao que foi a Guerra da Guiné.

Eu sinceramente não sei se tenho essa distância, sobretudo emocional, para me abalançar à discussão. Mas se não formos nós que estivemos no terreno, quem o fará?

Abraço forte do camarigo [camarada e amigo]
Joaquim Mexia Alves

PS - Ah, não revejo o texto, não me apetece, e se calhar se o revir já não o mando.
Perdoem-me também qualquer imprecisão de tempos e lugares, mas a memória já não é o que era.


3. Comentário de L.G.:

O direito à palavra é a regra de ouro da nossa tertúlia! Obrigado, Joaquim, e desculpa o atraso. Deixa-me só dizer-te duas ou três palavras, de amizade e de camaradagem:

(i) Percebo o teu desconforto: como é que vais justificar os três anos da tua vida numa tropa, "tão comprida e tão cumprida", como a tua, como a minha, como a nossa, que até meteu uma guerra pelo meio...

(ii) Concordo contigo: um debate a preto e branco sobre essa guerra só pode levar ao seu enviesamento e emprobrecimento... Debates como os do Prós e Contras são uma armadilha letal, são um espectáculo deprimente... Eu recuso-me, não os vejo, não sou masoquista, não sou maniqueísta...

(iii) Resta-nos fazer as pazes connosco próprios, encontrando entre os velhos camaradas, o maior denominador comum, que são as nossas (contraditórias mas não necessariamente antagónicas) vivências...

(iv) Não escondemos - a generalidade de nós, milicianos e soldados do contingente geral - que partimos com a morte na alma... Parafraseando a letra do teu belíssimo fado da Guiné: Lembras-te bem daquele dia / Enquanto o barco partia / E tu morrias no cais // Braço dado com a morte / Enfrentavas tua sorte / Abafando os teus ais... Impossível esquecer a tua condição de português, mas também acreditando no futuro e na história: Que o suor do teu valor / Que vai abafando a dor / Que te faz manter de pé, // Seja massa e fermento / Desse nobre sentimento / Que nutres pela Guiné.

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