Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 5 de fevereiro de 2008
Guiné 63/74 - P2507: Estórias do Zé Teixeira (25): Raúl Fodé (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)
O nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), que vive em Matosinhos, mandou-nos mais um testemunho da sua vivência com aquela boa gente da Guiné.
Desta feita, apresenta-nos o Raúl Fodé, uma figura marcante de Empada, com quem o Zé Teixeira mantinha longas conversas, não fossem eles camaradas na área da saúde.
O Raul Fodé
por José Teixeira (1)
Escrever sobre o Raúl Fodé é deixar vir à ribalta da memória acontecimentos, vivências e emoções que o deslizar galopante dos anos impregnou de poeira impiedosamente. Marcas que afectaram positivamente as nossas vidas, contribuindo para uma forte e sincera amizade.
Partiu uns anos depois ao encontro eterno com Alá e as suas setenta mil virgens, mas o seu espírito continua vivo na minha memória.
Homem culto, profundamente religioso, homem afável e conversador, observador atento a tudo quanto o rodeava, muito respeitado localmente pelo seu carácter, facilmente cativava amizades.
Servia Portugal como soldado da milícia na área da saúde, em Empada, como enfermeiro auxiliar no Pelotão de Milícias. Por tal facto colaborava na enfermaria do quartel no acolhimento e tratamento das maleitas da população.
Alfaiate de profissão, era um gosto vê-lo, sempre que a vida militar o libertava, à porta da sua morança a costurar. Era também o Imã na Mesquita local, onde orientava as rezas, escrevia as tábuas do Corão para os putos decorarem, como é principio básico da religião muçulmana, ou mesmo a catequizá-las, levando-as a cantarolar aquela cantilena tão característica, que nos transportava à nossa infância, quando cantarolávamos o Pai Nosso ou a Salvé Rainha, orientados pela respeitável mestra (catequista) local, ou mesmo à escola onde tentávamos encornar a tabuada, o célebre dois vezes um.. dois, dois vezes dois... quatro...
À noite, sentado na soleira da porta da sua morança, dava conselhos aos mais novos ou ouvia respeitosamente os mais velhos ou quem tinha outro tipo de conhecimentos, que porventura lhe interessassem para enriquecer a sua já vasta biblioteca cerebral.
Considero-me um felizardo em ter podido viver e conviver com o Fodé. Sempre disponível na enfermaria, quando saíamos para as operações em conjunto, era o meu braço direito no transporte do equipamento de enfermagem – bolsa e maca.
Quantas noites ficámos os dois à conversa! Tudo se discutia: religiões, cristã e muçulmana, com os seus dogmas, verdades e princípios, literatura, geografia, política, etc. A política era um tema perigoso, que se falava quando estávamos sozinhos, pois até no mais interior da Guiné a PIDE tinha ouvidos.
Como língua, usava a da sua etnia, a da sua religião, o português falado e escrito correctamente, o crioulo e mais uma ou duas línguas locais, de povos ligados pela religião na Mesquita local.
Gostava muito que lhe falasse de Portugal , de Lisboa sobretudo, onde sonhava ir um dia.
Um exemplo de exploração colonial
Uma das nossas conversas desandou para o rumo da Guiné nos tempos futuros. Sentia-se português, mas tinha muito medo do futuro, porque a tropa não sentia o pulsar da Guiné e os brancos que por lá tinham passado, no seu espírito comerciante de ganhar dinheiro, tinham feito muito mal à população.
Fui cáustico para com ele, questionando-o se não ganharia mais a trabalhar a terra, apesar do esforço e trabalho exigente, do que a servir a tropa, pois um dia a guerra teria um fim. O que seria da sua gente ?
Sua resposta cruel veio de seguida para abalar a minha consciência de branco, educado num ambiente colonizador, em que os africanos eram os pretinhos coitadinhos e nós, os portugueses, os seus salvadores, porque lhe levámos a religião cristã e a civilização.
Disse-me ele:
- A região do Tombali, tal como a de Forreá, foram outrora muito ricas em arroz, milho, madeiras, peixe, etc. As etnias tinham os seus chefes, as suas normas e conseguiam entender-se de modo a que tudo estava bem. Chegaram os brancos vindos de Bissau, a produção aumentou muito, desenvolveu-se a produção da mancarra, que deu cabo da terra. A população começou a trabalhar para os brancos, dividiu-se e lentamente empobreceu, apesar de trabalhar e produzir muito mais. Os brancos, esses, ganharam muito dinheiro. Repara, eu, Fodé, vou na bolanha, com mulheres e filhos, rasgo a terra e semeio mancarra. Arranco as ervas más, cavo a terra para amolecer e provocar o enraizamento, passo lá todo o tempo a defender de animais e do bandido. Quando está seco, corto separo e ensaco, transporto para loja do branco, que me paga um peso [moeda antiga que correspondia a um escudo] por saco. Quando chega o barco, tenho de fazer o transporte desde a loja do branco. Isto é tudo trabalho meu. Agora sabes quanto recebe o branco por cada saco de mancarra ?
- Dois pesos - disse eu convictamente.
- Dois? Era bom! Por cada saco de mancarra, cultivada, secada, ensacada e embarcada por mim, o branco recebe quinze pesos.
Era este Portugal que tínhamos na Guiné, antes da guerra colonial começar.
Zé Teixeira
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 7 de setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2087: Estórias do Zé Teixeira (24): Vítimas inocentes (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)
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