quarta-feira, 2 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2714: Antropologia (5): A Canção do Cherno Rachide, em tradução de Manuel Belchior (Torcato Mendonça)

Capa do livro de Manuel Dias Belchior, editado no início da década de 1960, A Grandeza Africana – Lendas da Guiné Portuguesa.

Foto: © Torcato Mendonça (2008). Direitos reservados


1. Texto enviado pelo Torcato Mendonça, alentejano e algarvio, andarilho, cidadão do Fundão, cidadão do mundo, nosso querido amigo e camarada, ex-Alf Mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69:



GRANDEZA AFRICANA > LENDAS DE FULAS E MANDINGAS


Em Julho de 1963, ofereceram-me alguns livros sobre África. Restam-me alguns, devido mais ao meu saltitar por vários poisos do que à voragem do tempo.

Foram trazidos agora á luz do dia, quando, talvez em Maio de 2006, senti vontade de falar de África apesar de, mentindo, mais a mim do que aos outros, ter dito: A guerra há muito acabou para mim… mas digo só que o Malan… foi o primeiro de demasiados escritos, ao longo destes quase dois anos.

Para melhor, não digo recordar, mas para ter mais a certeza do que escrevia, procurei certos livros, agendas e outro material. Lá estava este livro. Saiu portanto, do arquivo morto (onde já ouvi isto?!), A Grandeza Africana – Lendas da Guiné Portuguesa. Autor, o Dr. Manuel Dias Belchior, com muito belas ilustrações de José Antunes. O prefácio é do Major Carlos Gomes Bessa, (em 1961/63?), Comissário Nacional para o Ultramar da Mocidade Portuguesa.

Lembram-se da Mocidade Portuguesa? Óptimo. Camisa verde…cinto com fivela com S, de serviço… e lá vamos nós cantando e rindo.

No livro, além da beleza das ilustrações, temos, fruto da pesquisa do autor, quinze lendas de mandingas e fulas, desde o Século XIII até ao Século XIX; do Velho Mondem (foco original dos mandingas) ou no reino fula de Maciná – transcrição do livro, página 18. As últimas lendas já se passam na actual Guiné – Bissau.

Deve ser lido para assim melhor compreendermos o sentir e a cultura de outros Povos que connosco conviveram durante quase cinco séculos. A partir dos anos sessenta muitos de nós por lá andaram dois anos. Curiosamente, alguns tecem hoje rasgados elogios “ao bom povo… às boas gentes… que antes eram os sacanas dos turras e nharos de merda…e, porque não alguns, talvez devido ao excesso de sóis africanos, ainda dizem, hoje, que aquele povo não é capaz de"…

Não quero, ao escrever assim, ofender puristas ou anti-puristas. Colonialistas ou anti-colonialistas. Cada um é livre de sentir e viver como entende. Mas sejam frontais a bem da verdade. Compreende-se contudo certas tomadas de posição.

Este livro, estas lendas, abordam e mostram algo que merece relato, certamente propiciador de um maior e melhor conhecimento da cultura Africana e Guineense em particular.

Não comento o livro e menos ainda transcrevo qualquer lenda. Abordo muito ligeiramente o posfácio. Nele fala-se de um Homem Grande , nosso contemporâneo, a viver em Aldeia Formosa (hoje Quebo) e visitado pelo autor do livro. Esse Homem Grande era Cherno Rachide.

Ficou o autor encantado com o seu saber e simplicidade. Depois de conversarem e antes de se despedirem, Cherno Rachide, a pedido do autor, ofereceu-lhe escrito em árabe a sua canção – A Canção de Cherno Rachide, cantada diariamente pelos seus alunos.

O autor tentou, segundo diz, na transcrição para português, manter o ritmo e a musicalidade.

É essa canção que a seguir transcrevemos.

«Cherno Rachide mostra-se grato, pelo Governo da Província por haver possibilitado a realização do sonho de sua vida: a peregrinação a Meca». Transcrito do livro.

Se não for abuso talvez, um dia, se transcreva uma ou outra lenda. Talvez possa ter interesse, mais á cultura mandinga e fula ou Guineense.

Talvez…mas se tem para mim porque não para outros… Um dia…talvez!


Abril/08 TM
_______________________________

Canção do Cherno Rachide
tr e adapt. do árabe: Manuel Belchior

Filhos amados, vosso pai Rachide
Uma regra de vida vos vai dar,
Segui-a com rigor e não tereis
Nada que lastimar.
Raparigas sabei que um homem espera
Encontrar na mulher três qualidades:
Respeito aos seus segredos, ao leito
E a todas as vontades.
A vós rapazes dou-vos um conselho
Que todo o sábio para si tomou
De outro, ainda mais sábio, Logomane
Que outrora assim falou:

- «Deves ter fé em Deus que tudo vê
«E tudo pode acerca dos mortais
«Trabalha com ardor e serás útil
«A ti e aos demais.

- «Estuda e elevarás a tua alma
«Que os livros bons te podem ensinar
«Muitas coisas Formosas deste mundo
«E a Deus agradar.

- «A palavra, o alimento e o sono
«Como remédio deverás tomar:
«O bastante p’ra que o corpo não sofra
«Mas sem nunca abusar.

- «A boca é uma e as orelhas duas
«Isso te indica como proceder
«Usa o ouvido mais do que o falar
«E saberás viver.

- «Em três partes o estômago divide
«P’ra comida só uma reservar
«As outras hão-de ser bem necessárias
«P’ra água e para o ar.

- «A noite é grande e não deve ser gasta
«Do sol posto à manhã, toda a dormir,
«Destina parte dela à oração
«Terás feliz provir.

- «Deves casar p’ra nunca cobiçares
«Mulher doutro. Não nego, o casamento
«Traz desgosto profundo.
«Mas se a fêmea procuras fora dele,
«Em vez desse desgosto terás dois
«Neste e no outro mundo".

Meus filhos, quem seguir estes conselhos
No decurso da vida há-de contar
Satisfação a esmo.
E maiores triunfos que o atleta
Que vença toda a gente nos torneios,
Pois vence-se a si mesmo.

_____________

Notas de L.G.

(1) Referência bibliográfica constante da página
Memória de África, com a seguinte i

[190874]
BELCHIOR, Manuel
Grandeza africana : lendas da Guiné Portuguesa / Manuel Belchior ; capa e il. de José Antunes. - [S.l. : s.n., s.d.] (Lisboa : Oficinas de S. José : Edições O Mosquito. - 125 p., 23 p. il. ; 25 cm
Descritores: Artes Literatura Cultura regional Guiné
Cota: 2048/04AHSTP

Outras publicações referenciadas, de Manuel Dias Belchior ou Manuel Belchior:

Nas vésperas de um centenário : a grandeza de Mousinho / Manuel Dias Belchior In: Boletim da sociedade de geografia de Lisboa.- série 73, nº 1- 3 (Jan.- Mar. 1955), p. 47- 66.

Sobre a origem do termo Guiné / Manuel Dias Belchior.- In: Boletim Cultural da Guiné portuguesa / Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. - vol.XVII, nº 65 (Janeiro 1962), p.41-56.

Presença da Guiné / Manuel Belchior. In: Portugal em África. - Vol. 20 (1963), p. 240-250

Evolução política do ensino em Moçambique / Manuel Dias Belchior. - Lisboa : ISCSPU, 1965. - 42 p.

La actualidad social en las provincias portuguesas de Ultramar / Manuel Belchior. In: África. - Anõ 22, nº 282 (Jun 1965), Tercera epoca, p. 16-18

Fundamentos para uma política multicultural em Africa / Manuel Belchior. - [S.l. : s.n.], 1966. - 311 p.

O espírito ecuménico dos portugueses e seu valor gráfico actual / Manuel Belchior. In: Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. - vol. XXII, nº 87-88 (Julho-Out. 1967), p. 293-308.

Para uma idade de ouro no ultramar português / Manuel Belchior. In: Permanência: revista mensal de actualidades ultramarinas. - ano 1, nº 6 (Out. 1970), p. 17, il..

Les congrés du peuple de la Guinée / Manuel Bechior. - Lisboa : Arcádia, 1973. - 126 p.


(2) Sobre o Cherno Rachide (ou Rachid), vd. posts de:

4 de Junho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1815: Álbum das Glórias (14): o 4º Pelotão da CCAÇ 14 em Aldeia Formosa e em Cuntima (António Bartolomeu)

18 de Abril de 2006 >
Guiné 63/74 - DCCX: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)

16 de Dezembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

15 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo) (Luís Graça).

Sobre o Islão e a Guiné Portuguesa, vd. também o texto de Francisco Garcia:

FRANCISCO PROENÇA DE GARCIA > Os movimentos independentistas, o Islão e o Poder Português (Guiné 1963-1974)

(...) "De acordo com o 'Relatório de Serviço' (...) , na antiga Província Portuguesa, de 16 de Junho de 1972, elaborado por Amaro Monteiro na sequência de missão determinada pelo Ministro do Ultramar, as linhas de articulação dos dignitários islâmicos, no âmbito interno e no contexto africano, eram:

(...) "2) No tocante à confraria Tidjanya, dizia a mesma fonte:

"Os dignitários islâmicos mais proeminentes eram Al-Hajj Cherno Rachid Djaló (futa-fula) de Aldeia Formosa (rebaptizada Quebo, após a independência), o Xerife Secuna Haydara (de linhagem xerifina) de Ingoré e, em Cambor, o Al-Hajj Cherno Mamagari Djaló (futa-fula).
"Cherno Rachid apresentava, como figura tutelar, seu irmão Al-Hajj Califa Mamadu Cabiro Djaló com posição prioritária honorífica e consultiva, embora o autêntico poder de accionamento fosse detido pelo Cherno Rachid. Articulava-se em consulta ao Califa Abdul Azis Sy (em Tivouane, a NE de Dakar) e, suplementarmente, a Al-Hajj Seydou Nourou Tal do mesmo país (em Dakar), conselheiro governamental e 'director de consciência' dos tidjanistas tocolores e guineenses. Exercia influência religiosa interna do tipo polarizante em todo o território, nomeadamente na áreas de Fulacunda e Gabú (postos não especificados) e, externa, como consultor, no Senegal (Casamansa), na República da Guiné (pontos não especificados) e no Mali (Bamako). Manifestava acatamento xerifino do tipo idêntico ao dos pólos de Jabicunda e Bijine tendo, também, feito a dádiva recomendável ao Xerife Yussuf Haydara" (...).

1 comentário:

Anónimo disse...

Amigo Torcato
Muito obrigado pela tua iniciativa de te teres lembrado de enviar este artigo que me parece muito oportuno em função de alguns escritos recentes....
Relativamente ao poema deve ser lido atentamente e ver se é possível aplicar alguns desses conselhos, recomendações e orientações de vida aos nossos actuais jovens (sem ser preciso brigar pelo telemóvel).
Hélder Sousa