Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 19 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3141: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (2): O ataque de 22 de Junho de 1968 a Contabane
1. No dia 5 de Julho de 2008, o nosso camarada Manuel Traquina, ex-Fur Mil da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70, enviou-nos, para publicação, este relato do ataque à povoação de Contabane, ocorrido em 22 de Junho de 1968.
Companhia de Caçadores 2382 (1968/70) (*)
O Ataque a Contabane
Era o dia 22 de Junho daquele ano de 1968, a Companhia estava na Guiné havia pouco mais de um mês e, ao ser deslocada para a região de Aldeia Formosa, (Quebo) dois pelotões fixaram-se em Mampatá, os restantes bem como o Comando foram deslocados para a aldeia de Contabane. Ali parecia respirar-se a paz, a população era numerosa e bastante acolhedora, e como habitual faziam-se alguns patrulhamentos na região, que ficava a poucos quilómetros da fronteira com a Guiné-Conákri.
Naquela aldeia os militares acomodavam-se nas próprias moranças cedidas pelo chefe da Tabanca, à volta da aldeia tinham sido abertos no terreno algumas valas e abrigos, além de duas fiadas de arame farpado. Tudo parecia correr dentro da normalidade, naquela tarde eu próprio com mais quatro militares saímos no Unimog a buscar água do poço que se localizava a curta distância.
Porém já próximo do anoitecer, um dos elementos nativos que connosco efectuavam um patrulhamento, pisou um engenho explosivo, que lhe deixou um pé seriamente afectado. Este foi o primeiro sinal de que toda aquela paz não era real, o grupo recolheu à aldeia/aquartelamento, era a hora de jantar e na improvisada enfermaria o Furriel Enfermeiro Chambel com grande dificuldade, tentava encontrar uma veia onde pudesse administrar algum soro ao militar milícia, que com um pé decepado tinha perdido muito sangue.
Entretanto o Sargento João Boiça apercebendo-se da situação, corria de uma ponta à outra da aldeia, não parava de alertar todos para que de imediato se deslocassem para os abrigos, talvez ao tomar esta medida tenha evitado algumas mortes.
Tinha anoitecido e, de repente algumas explosões deram inicio a um ataque que se ia prolongar por cerca de três horas, as balas incendiarias atravessavam a palha que servia de cobertura à tabanca onde o ferido começava a receber o soro. Disse ao Chambel e ao Coelho que tínhamos que sair daqui imediatamente com o ferido, porém ele, já mais endurecido pela guerra, reunindo as suas débeis forças arrastou-se até á porta e, no escuro sem que nos apercebesse-mos desapareceu rastejando, só na manhã seguinte o voltámos a ver, quando da chegada do helicóptero que o evacuou bem como a outros feridos.
Foram cerca de três horas de bombardeamentos em que a aldeia reduzida a cinzas mais parecia um inferno, no final foi uma forte trovoada que, transformou a cinza em lama, onde quase não havia onde nos abrigar. Não tenho dúvidas de que nós os militares que naquela tarde fomos à água, passamos muito perto do local onde o inimigo preparava o ataque e, só não fomos feitos prisioneiros porque o objectivo era o ataque. Apesar do grande aparato e grande potencial de fogo, sofremos apenas três feridos dois dos quais de maior gravidade. Porém, quase todo o património da companhia ali ficou reduzido a cinza, os rádios, os géneros alimentícios, o equipamento de enfermagem, tudo ali ficou carbonizado, grande parte dos militares ficaram apenas com a roupa que tinham vestida. Na manhã seguinte um helicóptero evacuou os feridos, alguns militares apressaram-se a escrever um ou outro aerograma meio queimado e enlameado que foi entregue ao piloto do helicóptero, era a parte psicológica a funcionar, pretendiam partilhar aquele momento de desânimo com alguém do coração.
Contabane foi totalmente evacuada de população e militares, saímos dali moralmente destroçados, alguns apenas de calções, sapatilhas e a sua G3, mas vivos para suportar muitos outros ataques e emboscadas durante os vinte e dois meses que se seguiram. Já no termo da comissão viemos encontrar na cidade de Bissau o milícia que ao pisar a armadilha foi amputado de um pé, e que naquela cidade tentava sobrevier como engraxador de sapatos.
Neste agora passado dia 22 de Junho ao completarem-se quarenta anos sobre este ataque, quero homenagear os dois camaradas mortos não neste ataque, mas noutros que se seguiram, Furriel Ramiro de Sousa Duarte e o Soldado Elidio Fidalgo Rodrigues, pertencentes a esta Companhia, quero também saudar todos os militares da 2382, estou convencido que todos os que viveram este acontecimento o recordam e jamais esquecerão aquelas horas difíceis ali vividas.
Manuel Batista Traquina
Ex-Fur Mil
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Notas de CV:
Vd. postes de:
2 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2399: Tabanca Grande (47): Manuel Traquina, ex-Fur Mil, CCAÇ 2382 (Buba, 1970/72)
2 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2500: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (1): CCAÇ 2382 - A hora da partida
13 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2533: O cruzeiro das nossas vidas (10): Fui e vim no velho e saudoso Niassa (Manuel Traquina)
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3 comentários:
Caro Manuel Traquina. Como sabes passei recentemente por Contabane. Tive a oportunidade de encontrar em Bissau no Simpósio um antigo geurrilheiro do PAICG que participou neste ataque. Falamos sobre o mesmo e pude conhecer uma razão concreta para o sucedido.De Contabane partia uma picada que atravessava a mata de Madina do Boé e fazia ligação a esta Tabanca. Embora desactivada era a qualquer momento uma segunda porta para lá chegar, o que não convinha à guerrilha. Militares em Contabane foi para eles um sinal das possíveis intenções da tropa, logo aquele ataque foi um primeiro e sério aviso,de que aquela porta não devia ser aberta, do qual foram vocês as vitimas.Zé Teixeira
... que,
No documentário «Voz da Saudade», transmitido pela RTP1 no pretérito 15 de Abril e retransmitido no passado domingo (31 de Agosto), logo após o seu início - http://ww1.rtp.pt/multimedia/index.php?tvprog=23742&idpod=13103&formato=wmv - ouve-se a voz da «noiva de Manuel Baptista Traquina», a desejar Feliz Natal àquele furriel miliciano.
O comentador refere que Maria Estefânia Anacoreta, que recolheu e gravou em fita magnética inúmeras mensagens destinadas a militares em serviço em África, cumpriu a missão que a si mesma incumbiu, percorrendo milhares de quilómetros em Angola. Não há naquele documentário, qualquer referência à Guiné.
Ficamos "um pouco confusos" (como diria a florisbela) ou "atrofiados" (à moda dos fedorentos): neste weblog, há pelo menos três entradas (23/4, 14/6 e 19/8) com o nome daquele ex-furriel miliciano, que em 1968-70 estava colocado na CCac2382, na Guiné.
Questões: haverá dois "Manuel Baptista Traquina", um que esteve em Angola e um outro que esteve na Guiné?; a senhora Estefânia Anacoreta, além de ter visitado unidades militares no mato de Angola, também se deslocou a unidades militares no mato da Guiné?; se sim, por que não há referências ao facto, no citado documentário?; se não, a que propósito está tal gravação inserida para abertura do mesmo documentário? Algum navegante poderá responder?
O camarada Traquina, Furriel da Companhia que comandei em 68/70 e meu amigo, pode provocar, sem querer, uma confusão.
Efectivamente a CCaç 2382 sofreu dois mortos, na Guiné:
O soldado Ilidio Fidalgo Rodrigues, o saudoso "Esgota-Pipas", atingido por um estilhaço no ataque de 14FEV69 e que veio a falecer no HM de Bissau em 31MAR69 e o Furriel Ramiro Augusto de Sousa Duarte que faleceu em Bissau em 31JAN69 num acidente de viação.
Não é assim, Traquina? Um grande abraço!
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