"Algum tempo depois de regressarmos da Guiné, fizemos um almoço em Coimbra e fomos depositar um ramo de flores no cemitério em Condeixa. Haveria muito a dizer deste amigo que nos deixou tão cedo. Envio também uma fotografia em que estou com ele. (O Fernando está de pé.) Chamo-me Joaquim Carlos Peixoto, vivo em Penafiel, sou Professor do 1º Ciclo do ensino básico" (JP).
Foto: © Joaquim Peixoto (2007). Direitos reservados
1.Mensagem do Joaquim Carlos Peixoto, de Penafiel:
Amigo Luis:
Se vires que há algum interesse neste artigo, gostava que o publicasses.
Já escrevi para aí, mas o endereço era outro.
Agora tenho um novo mail.
Um grande abraço para todos
Joaquim Carlos Peixoto
2. O prémio que nunca me deram...
Foto: © Joaquim Peixoto (2007). Direitos reservados
1.Mensagem do Joaquim Carlos Peixoto, de Penafiel:
Amigo Luis:
Se vires que há algum interesse neste artigo, gostava que o publicasses.
Já escrevi para aí, mas o endereço era outro.
Agora tenho um novo mail.
Um grande abraço para todos
Joaquim Carlos Peixoto
2. O prémio que nunca me deram...
por Joaquim Peixoto
Amigo Luís Graça:
Há [dois] anos escrevi um artigo para este blogue (*), e em boa hora o fiz, porque através dele já fui contactado por vários camaradas da Guiné, dos quais já pensava ter perdido o contacto.
Frequentemente leio os assuntos publicados e tenho uma grande vontade de também escrever.Mas, ou por falta de tempo ou por preguiça vou adiando…
Agora resolvi escrever. Se achares oportuno, publica-o.
Identifico-me:
Joaquim Carlos Peixoto (59 anos ); Professor do 1º Ciclo, a exercer funções em Penafiel.
Já deixei de utilizar o mail antigo: joaquim.peixotomegamail.pt
[Revisão / fixação do texto: L.G.]
O PRÉMIO
1970 - De um jovem, quase adolescente, com um nome próprio...
... vivendo no seio de uma família, um ser humano, (como tinha aprendido o que era um ser humano desde os bancos da escola primária) passei de uma hora para a outra (sem que tivesse consciência de todo do que me estava a acontecer) a fazer parte de um número, um número frio e sem identidade.
Autómato... Maria vai com as outras... o caminho é este que te mandam seguir. Não perguntes, não reajas, não penses, segue em frente… o teu caminho é defender a Pátria. Mas, no escuro do subconsciente perguntava:
- Como vou defendê-la?O que me irá acontecer? Porque tenho de abandonar a minha família.. e fazê-la sofrer? O que vou fazer? Onde guardo os meus sonhos de menino?Quando voltarei ? …Ou não voltarei?
Perguntas e mais perguntas e sempre perguntas que não tinham e não havia resposta .
- Carne para canhão - ouvia-se, de longe a longe, esta frase.
O quê ? Eu ? Eu, era um ser humano que tinha ilusões, sonhos, desejos, sentimentos, gostos… Eu era aquilo ?
Não havia tempo para pensar. O tempo era de agir, obedecer e seguir o caminho indicado.
A roupa escolhida por mim ou pela minha mãe, passou a ser igual à de todos os outros, tratada e arranjada por mim.
As botas, essas - pesadas e desconfortáveis - tinham de andar sempre um brinquinho .
Fazer a recruta. Tirar a especialidade (atirador de infantaria). Tirar curso de minas e armadilhas. Ida para os Açores formar Companhia.
1971 – Chega o dia do embarque.
Para um sítio desconhecido, uma terra com usos e costumes totalmente diferentes. Uma terra que nos embriagava com tanto calor e humidade. ERA A GUINÉ. Uma terra onde havia guerra. Guerra a sério, não um simples jogo de cow boys. Era a doer,… era desesperante. Eu, como todos os outros, confrontado com um ataque, reagia, atacando.
Sofri muito... Vi morrer amigos (**). Saudades. Pergunto:
- Combatíamos por instinto? Porque nos haviam ensinado? Porque queríamos defender a Pátria? Porque nos queríamos defender a nós? Porquê ?
HOJE, passados trinta e seis anos, pergunto:
- PORQUÊ ?
Alguém lúcido e com as ideias bem ordenadas poderá responder-me?
A minha juventude, como a de tantos milhares de camaradas, foi passada entre tiros, medo, mato, vivências terríveis, desilusões, sonhos desfeitos…
Alguém, de vez em quando, dava-nos uma esperança, dizendo que ao regressarmos teríamos a recompensa, o tempo de tropa contaria a dobrar para efeitos de reforma, seríamos reconhecidos pelo contributo que estávamos a dar à Pátria, teríamos orgulho de ser portugueses, a consciência confortada com o dever cumprido.
Um General, muito conhecido, fiel aos seus compromissos, honrando a farda que usava, dizia-nos muitas vezes e passo a citar:
- Quando chegarem à metrópole e vos servirem uma bica fria, reclamem e digam: 'Quero uma bica quente, porque estive a servir a Pátria, na GUINÉ'!
Que ilusão !!! Que desespero !!!
Quem se lembra de nós ? Quem nos estende uma mão de reconhecimento? Que falta de memória !!!
Ao regressar da guerra, ao confrontar-me com a realidade, dura e crua, o que vi, o que senti? O que recebi?
Quando pedia uma bica, não a recebia, nem quente, nem fria. Simplesmente não ma serviam.
Verifiquei que ninguém me reconhecia, nem queriam saber o que tinha feito pela Pátria. Recebi incompreensão, falta de emprego (Os empregos eram para outros) no pós-25 de Abril.
Senti uma tremenda desilusão, um vazio que doía, doía e se transformava, aos poucos, numa frieza que eu não queria.
Queria constituir família. Onde estava a recompensa do dever cumprido? Que era feito das promessas?
Como a minha namorada era Professora Primária (como ainda hoje gosta de ser chamada), incentivou-me a tirar o curso de Professor. Em boa hora o fiz, porque foi sempre muito gratificante trabalhar com crianças. Profissão que abracei com gosto e profissionalismo. Ao longo destes 30 anos de trabalho, raras foram as faltas e sempre por motivos justificados.
A vida foi mudando, o regime político alterou-se, o nível de vida subiu, mas as marcas, o pesadelo, os traumas, o estigma de guerra, esse continua implacável dentro das mais profundas entranhas.
A vida foi pouco a pouco tomando o seu rumo e com este ou aquele projecto de vida, com este ou aquele sonho em melhorar cada vez mais as condições, essas marcas de guerra foram-se camuflando e cada vez mais ténuas foram quase passadas ao esquecimento.
Eis se não quando, por magia ou brincadeira do destino, tudo desaba sobre os ombros e tudo que parecia adormecido vivo e em chamas, prostrando-nos a uma apatia tal que a força para lutar escapa-se-nos pelos dedos, qual água gélida de um glacial a derreter…
Não há mais força, não há mais sonhos…
As leis mudaram, o tempo de tropa já não conta para o regime especial a que os Professores Primários tinham direito. Esse tempo conta só para o regime geral.
E então, tudo o que passei, tudo o que dei à Pátria, todo o meu contributo que prestei com o meu serviço militar só serviu para ser injustiçado ?
Mas que erro cometi em ser Professor Primário só depois de ter cumprido o serviço militar? Que culpa tenho eu em ter ido cumprir esse serviço? Onde se encontra a justiça deste país?
Porque tantos Professores, por não terem cumprido o serviço militar e não irem para o Ultramar, muito mais novos do que eu, já estão aposentados?
Eu, que defendi a Pátria na zona mais perigosa das nossas colónias- a Guiné; que não tive logo emprego quando cheguei porque eram todos ocupados pelos retornados (o que não tenho nada contra eles); que tirei um curso para poder viver e trabalhei sempre com o maior profissionalismo, não me posso aposentar se não aos 65 anos?!...
Que justiça é esta que em iguais condições de trabalho dão a aposentação aos mais novos que tiveram a possibilidade de tirarem o curso mais cedo, que não sabem o que é deixar família, que não sabem o que é uma guerra, que não defenderam a Pátria em detrimento daqueles que, pelo menos 5 anos , como eu, me desfiz de sonhos, que vivi horrores e por esses horrores tirei o curso mais tarde, tenho o PRÉMIO de trabalhar ainda mais !!!...
Vejo muitos dos meus amigos professores a aposentarem-se aos 52 ou 55 anos.Não chegou o que já fiz pelo meu país?
Senhor General Spínola, onde quer que esteja, ilumine os nossos governantes dizendo-lhes:
- Sirvam um café quente a estes ex-combatentes pois estiveram na Guiné...
Joaquim Peixoto
3. Comentário de L.G.:
Pois é, camarada Peixoto, dois anos (tu dizias 'alguns', mas são só dois, o que não deixa de ser muito tempo, era uma comissão em África, dias e dias, noites e noites, semanas e semanas, meses e meses, que nunca esqueceremos, uns pior passados do que outros, com sangue, suor e lágrimas, com muita camaradagem e amaizade, também...).
Amigo Luís Graça:
Há [dois] anos escrevi um artigo para este blogue (*), e em boa hora o fiz, porque através dele já fui contactado por vários camaradas da Guiné, dos quais já pensava ter perdido o contacto.
Frequentemente leio os assuntos publicados e tenho uma grande vontade de também escrever.Mas, ou por falta de tempo ou por preguiça vou adiando…
Agora resolvi escrever. Se achares oportuno, publica-o.
Identifico-me:
Joaquim Carlos Peixoto (59 anos ); Professor do 1º Ciclo, a exercer funções em Penafiel.
Já deixei de utilizar o mail antigo: joaquim.peixotomegamail.pt
[Revisão / fixação do texto: L.G.]
O PRÉMIO
1970 - De um jovem, quase adolescente, com um nome próprio...
... vivendo no seio de uma família, um ser humano, (como tinha aprendido o que era um ser humano desde os bancos da escola primária) passei de uma hora para a outra (sem que tivesse consciência de todo do que me estava a acontecer) a fazer parte de um número, um número frio e sem identidade.
Autómato... Maria vai com as outras... o caminho é este que te mandam seguir. Não perguntes, não reajas, não penses, segue em frente… o teu caminho é defender a Pátria. Mas, no escuro do subconsciente perguntava:
- Como vou defendê-la?O que me irá acontecer? Porque tenho de abandonar a minha família.. e fazê-la sofrer? O que vou fazer? Onde guardo os meus sonhos de menino?Quando voltarei ? …Ou não voltarei?
Perguntas e mais perguntas e sempre perguntas que não tinham e não havia resposta .
- Carne para canhão - ouvia-se, de longe a longe, esta frase.
O quê ? Eu ? Eu, era um ser humano que tinha ilusões, sonhos, desejos, sentimentos, gostos… Eu era aquilo ?
Não havia tempo para pensar. O tempo era de agir, obedecer e seguir o caminho indicado.
A roupa escolhida por mim ou pela minha mãe, passou a ser igual à de todos os outros, tratada e arranjada por mim.
As botas, essas - pesadas e desconfortáveis - tinham de andar sempre um brinquinho .
Fazer a recruta. Tirar a especialidade (atirador de infantaria). Tirar curso de minas e armadilhas. Ida para os Açores formar Companhia.
1971 – Chega o dia do embarque.
Para um sítio desconhecido, uma terra com usos e costumes totalmente diferentes. Uma terra que nos embriagava com tanto calor e humidade. ERA A GUINÉ. Uma terra onde havia guerra. Guerra a sério, não um simples jogo de cow boys. Era a doer,… era desesperante. Eu, como todos os outros, confrontado com um ataque, reagia, atacando.
Sofri muito... Vi morrer amigos (**). Saudades. Pergunto:
- Combatíamos por instinto? Porque nos haviam ensinado? Porque queríamos defender a Pátria? Porque nos queríamos defender a nós? Porquê ?
HOJE, passados trinta e seis anos, pergunto:
- PORQUÊ ?
Alguém lúcido e com as ideias bem ordenadas poderá responder-me?
A minha juventude, como a de tantos milhares de camaradas, foi passada entre tiros, medo, mato, vivências terríveis, desilusões, sonhos desfeitos…
Alguém, de vez em quando, dava-nos uma esperança, dizendo que ao regressarmos teríamos a recompensa, o tempo de tropa contaria a dobrar para efeitos de reforma, seríamos reconhecidos pelo contributo que estávamos a dar à Pátria, teríamos orgulho de ser portugueses, a consciência confortada com o dever cumprido.
Um General, muito conhecido, fiel aos seus compromissos, honrando a farda que usava, dizia-nos muitas vezes e passo a citar:
- Quando chegarem à metrópole e vos servirem uma bica fria, reclamem e digam: 'Quero uma bica quente, porque estive a servir a Pátria, na GUINÉ'!
Que ilusão !!! Que desespero !!!
Quem se lembra de nós ? Quem nos estende uma mão de reconhecimento? Que falta de memória !!!
Ao regressar da guerra, ao confrontar-me com a realidade, dura e crua, o que vi, o que senti? O que recebi?
Quando pedia uma bica, não a recebia, nem quente, nem fria. Simplesmente não ma serviam.
Verifiquei que ninguém me reconhecia, nem queriam saber o que tinha feito pela Pátria. Recebi incompreensão, falta de emprego (Os empregos eram para outros) no pós-25 de Abril.
Senti uma tremenda desilusão, um vazio que doía, doía e se transformava, aos poucos, numa frieza que eu não queria.
Queria constituir família. Onde estava a recompensa do dever cumprido? Que era feito das promessas?
Como a minha namorada era Professora Primária (como ainda hoje gosta de ser chamada), incentivou-me a tirar o curso de Professor. Em boa hora o fiz, porque foi sempre muito gratificante trabalhar com crianças. Profissão que abracei com gosto e profissionalismo. Ao longo destes 30 anos de trabalho, raras foram as faltas e sempre por motivos justificados.
A vida foi mudando, o regime político alterou-se, o nível de vida subiu, mas as marcas, o pesadelo, os traumas, o estigma de guerra, esse continua implacável dentro das mais profundas entranhas.
A vida foi pouco a pouco tomando o seu rumo e com este ou aquele projecto de vida, com este ou aquele sonho em melhorar cada vez mais as condições, essas marcas de guerra foram-se camuflando e cada vez mais ténuas foram quase passadas ao esquecimento.
Eis se não quando, por magia ou brincadeira do destino, tudo desaba sobre os ombros e tudo que parecia adormecido vivo e em chamas, prostrando-nos a uma apatia tal que a força para lutar escapa-se-nos pelos dedos, qual água gélida de um glacial a derreter…
Não há mais força, não há mais sonhos…
As leis mudaram, o tempo de tropa já não conta para o regime especial a que os Professores Primários tinham direito. Esse tempo conta só para o regime geral.
E então, tudo o que passei, tudo o que dei à Pátria, todo o meu contributo que prestei com o meu serviço militar só serviu para ser injustiçado ?
Mas que erro cometi em ser Professor Primário só depois de ter cumprido o serviço militar? Que culpa tenho eu em ter ido cumprir esse serviço? Onde se encontra a justiça deste país?
Porque tantos Professores, por não terem cumprido o serviço militar e não irem para o Ultramar, muito mais novos do que eu, já estão aposentados?
Eu, que defendi a Pátria na zona mais perigosa das nossas colónias- a Guiné; que não tive logo emprego quando cheguei porque eram todos ocupados pelos retornados (o que não tenho nada contra eles); que tirei um curso para poder viver e trabalhei sempre com o maior profissionalismo, não me posso aposentar se não aos 65 anos?!...
Que justiça é esta que em iguais condições de trabalho dão a aposentação aos mais novos que tiveram a possibilidade de tirarem o curso mais cedo, que não sabem o que é deixar família, que não sabem o que é uma guerra, que não defenderam a Pátria em detrimento daqueles que, pelo menos 5 anos , como eu, me desfiz de sonhos, que vivi horrores e por esses horrores tirei o curso mais tarde, tenho o PRÉMIO de trabalhar ainda mais !!!...
Vejo muitos dos meus amigos professores a aposentarem-se aos 52 ou 55 anos.Não chegou o que já fiz pelo meu país?
Senhor General Spínola, onde quer que esteja, ilumine os nossos governantes dizendo-lhes:
- Sirvam um café quente a estes ex-combatentes pois estiveram na Guiné...
Joaquim Peixoto
3. Comentário de L.G.:
Pois é, camarada Peixoto, dois anos (tu dizias 'alguns', mas são só dois, o que não deixa de ser muito tempo, era uma comissão em África, dias e dias, noites e noites, semanas e semanas, meses e meses, que nunca esqueceremos, uns pior passados do que outros, com sangue, suor e lágrimas, com muita camaradagem e amaizade, também...).
Mas a verdade é que, desde Maio de 2007, passaste a fazer parte da nossa Tabanca Grande, pudeste reencontrar velhos camaradas da tua CCAÇ 3414, tiveste oportunidade de ler os nossos escritos - já lá vão cerca de 2300 a mais, desde esse dia em que nos contaste a história do teu malogrado amigo e camarada Fernando Ribeiro...
Pois é, a tua/nossa Pátria não foi Mátria, foi Madrasta, para ti, para todos nós, para toda uam geração de portugueses quye combateu em África... Como eu percebo a tua amargura, quando te referes ironicamente ao Prémio que os valorosos e generosos combatentes de África era pressuposto virem a receber, no regresso, depois de cumprido galhardamente o seu dever... No mínimo, o reconhecimento do sacrifício da sua juventude (e em muitos casos da sua vida), por parte dos seus compatriotas, da sociedade e do Estado, do regime democrático instaurado a seguir ao 25 de Abril...
Pois é, a tua/nossa Pátria não foi Mátria, foi Madrasta, para ti, para todos nós, para toda uam geração de portugueses quye combateu em África... Como eu percebo a tua amargura, quando te referes ironicamente ao Prémio que os valorosos e generosos combatentes de África era pressuposto virem a receber, no regresso, depois de cumprido galhardamente o seu dever... No mínimo, o reconhecimento do sacrifício da sua juventude (e em muitos casos da sua vida), por parte dos seus compatriotas, da sociedade e do Estado, do regime democrático instaurado a seguir ao 25 de Abril...
Mas, não, esqueceram-te, arquivaram-te, arrumaram-te a um canto, ao canto das velharias e dos anacronismos da História... Os ex-combatentes são sempre uma pedra no sapato para as novas elites dirigentes, as que assinam a paz antiga e preparam os cenários das novas guerras...
Como entendo a tua ironia, ao citares o General Spínola, uma das suas frases que o tornaram tão popular entre as nossas tropas da Guiné:
"Quando chegarem à metrópole e vos servirem uma bica fria, reclamem e digam: 'Quero uma bica quente, porque estive a servir a Pátria, na GUINÉ'"
Não sei se a frase é apócrifa, mas tu deves tê-la ouvido... Podia ser tão sincera como demagógica, mas a verdade é que tinha o seu efeito emocional: no mínimo, fazia bem ao ego, à auto-estima, de milhares de homens que regressavam das bolanhas, das picadas e das matas da Guiné, amargurados, uns, 'apanhados do clima', outros...
Automaticamente fez-me lembar esse grande poema do Álvaro de Campos / Fernando Pessoa, que tu, como professor, e homem nortenho, deves conhecer, e bem. Permite-me que o reproduza aqui, socorrendo-me, com a devida vénia, do Arquivo Pessoa, disponível em linha:
Álvaro de Campos
DOBRADA À MODA DO PORTO
Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).
Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
(s.d. In: Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).- 310).
Pois é, Peixoto, serviram-nos o amor da Pátria frio, como dobrada fria, quando a dobrada é sempre quente, à moda do Porto, da Cidade Invicta... E nem direito tiveste/tivemos a um cimbalino, quente... Em Lisboa, diz-se uma bica, e eu peço-a sempre... escaldada.
Olha, o único consolo que te posso dar é que gostei do teu 'regresso' e do tom intimista da tua mensagem... Daqui para a frente não tens desculpas, sejam as da perguiça ou da timidez: o nosso blogue, em Penafiel, está à distância de um clique...Um Alfa Bravo. Luís
_________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 22 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1774: A morte do Fernando Ribeiro: eu ia nessa fatídica coluna e era seu amigo (Joaquim Peixoto, CCAÇ 3414)
(**) Sobre o Fernando Ribeiro, vd. postes de:
24 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1544: Quem conheceu o Furriel Mil Art Fernando J. G. Ribeiro, morto na picada de Binta-Farim em Julho de 1973 ? (Luís Graça)
25 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1547: O Furriel Mil Atirador Fernando Ribeiro pertencia à açoriana CCAÇ 3414 e morreu entre Mansabá e Mansoa (A. Marques Lopes)
28 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1554: As mulheres que ficaram na rectaguarda (Luís Graça /Paulo Raposo / Paulo Salgado / Torcato Mendonça)
Como entendo a tua ironia, ao citares o General Spínola, uma das suas frases que o tornaram tão popular entre as nossas tropas da Guiné:
"Quando chegarem à metrópole e vos servirem uma bica fria, reclamem e digam: 'Quero uma bica quente, porque estive a servir a Pátria, na GUINÉ'"
Não sei se a frase é apócrifa, mas tu deves tê-la ouvido... Podia ser tão sincera como demagógica, mas a verdade é que tinha o seu efeito emocional: no mínimo, fazia bem ao ego, à auto-estima, de milhares de homens que regressavam das bolanhas, das picadas e das matas da Guiné, amargurados, uns, 'apanhados do clima', outros...
Automaticamente fez-me lembar esse grande poema do Álvaro de Campos / Fernando Pessoa, que tu, como professor, e homem nortenho, deves conhecer, e bem. Permite-me que o reproduza aqui, socorrendo-me, com a devida vénia, do Arquivo Pessoa, disponível em linha:
Álvaro de Campos
DOBRADA À MODA DO PORTO
Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).
Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
(s.d. In: Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).- 310).
Pois é, Peixoto, serviram-nos o amor da Pátria frio, como dobrada fria, quando a dobrada é sempre quente, à moda do Porto, da Cidade Invicta... E nem direito tiveste/tivemos a um cimbalino, quente... Em Lisboa, diz-se uma bica, e eu peço-a sempre... escaldada.
Olha, o único consolo que te posso dar é que gostei do teu 'regresso' e do tom intimista da tua mensagem... Daqui para a frente não tens desculpas, sejam as da perguiça ou da timidez: o nosso blogue, em Penafiel, está à distância de um clique...Um Alfa Bravo. Luís
_________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 22 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1774: A morte do Fernando Ribeiro: eu ia nessa fatídica coluna e era seu amigo (Joaquim Peixoto, CCAÇ 3414)
(**) Sobre o Fernando Ribeiro, vd. postes de:
24 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1544: Quem conheceu o Furriel Mil Art Fernando J. G. Ribeiro, morto na picada de Binta-Farim em Julho de 1973 ? (Luís Graça)
25 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1547: O Furriel Mil Atirador Fernando Ribeiro pertencia à açoriana CCAÇ 3414 e morreu entre Mansabá e Mansoa (A. Marques Lopes)
28 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1554: As mulheres que ficaram na rectaguarda (Luís Graça /Paulo Raposo / Paulo Salgado / Torcato Mendonça)
4 comentários:
Já que o Luís pegou no Álvaro, Deixai-me tocar no Fernando:
"..............................
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompeensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história. É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma.
.................................
É saber falar de si mesmo.
.................................
Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo..."
(Fernando Pessoa)
Joaquim, venha um café bem quente!
Do tamanho do Cumbijã um abraço,
Mário Fitas
Cada linha que ia lendo mais emocionado ficava e mentalmente recordava-me das emoções que se me foram acumulando a partir do momento em que sou confrontado que tinha de ir para um lugar, meu descinhecido, onde me fariam capitão!
Revoltado, já eu era, com o "prejuizo" profissional que já me tinham feito anteriormente...mas agora...era bem pior.
Entretanto os camaradas, amigos, Luís e Mário Fitas, derramaram o seu bálsamo na tristeza que me tinha tomado e assim recuperei.
Obrigado e um grande abraço do Mansoa ao Cacheu.
Jorge Picado
Amigo Peixoto, benvindo! Não te fiques, homem! Deita cá para fora toda essa mágoa que se pressente ser muito sentida e forte. Não para te esvaziares, porque não devemos abandonar a nossa razão, mas para te sentires mais confortável ao partilhá-la com outros amigos, que te compreendem e têm sentimentos semelhantes. Uma das coisas boas deste Blogue é a sua capacidade para potenciar o que já se chamou de "blogoterapia" e deves aproveitar isso ao mesmo tempo que nos dás a conhecer mais uma parte de nós mesmos através dos teus sentimentos. Podes ter a certeza que muitas coisas que exprimires encontrará eco em muitos de nós, que se reconhecerão nelas.
Um abraço
Hélder Sousa
Joaquim
Belo texto, sofrido!
De uma penada, contas os anseios fracassados , as injustiças sobrevividas , as promessas não cumpridas, os sonhos estilhaçados!
Contas que te “serviram / servem frio, o cimbalino (café) e a dobrada” também .
Enfim, desilusões que nos esfriam e nos trazem interrogações.
Sentimentos de revolta que atrofiam
Pedras lançadas no caminho, já de si pouco fácil ,que foste “apanhando e com elas construíste o teu castelo” e conseguiste meter dentro das muralhas o sangue rejuvenescedor que tomará o Futuro nas mãos. É a tua recompensa .Pensa nisso e verás que valeu a pena.
Mas, se ainda não apanhaste as pedras todas ou te sobram ...pega numa atira-a, “estilhaça um vidraça” e…” come uma dobrada e toma um café, bem quentes!!”
Um abraço
Luís Faria
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