domingo, 31 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5737: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (1): Um Gabu de poucas e fracas recordações


Guiné-Bissau > Região do Gabu > Gabu > 16 de Dezembro de 2009 > Um dos edifícios, de traça colonial, mais imponentes da cidade. Do laddo direito, fica a agência local do Banco da África Ocidental (BAO) que tem cinco agências no país (duas em Bissau, e as restantes em Gabu, Bafatá e Canchungo), pretendendo abrir outras  duas, em S. Domingos e em Buba.  O BAO, um banco guineense,  com 100% de trabalhadores guineenses, foi fundado em 1997, e pretende contribuir para a modernização da economia guineense: apenas 2% dos 1,3 milhões de guineenses utilizam serviços bancários...  O Banco tem participação de capitais portugueses.


Guiné-Bissau > Região de Gabu > Proximidades de Gabu > 16 de Dembro de 2009 > Um imagem eterna: Mulheres lavando no rio...



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Tabanca de Tabató na estrada Bafatá-Gabu  > 16 de Dezembro de 2009 > Meninos mandingas. Esta é a terra do músico Kimi Djabaté, radicado em Portugal desde 1994. Fotos do médico e músico João Graça (Melech Mechaya), que esteve na Guiné-Bissau em Dezembro de 2009 (Bissau, Guileje, Iemberém, Bubaque, Bambadinca, Bafatá, Contuboel, Tabató, Gabu, São Domingos).

Fotos: © João Graça (2009). Direitos reservados


1. Damos início, hoje, à pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, "Mulher Grande" (*):


Mail de 14 de Janeiro:

Queridos amigos, o livro “Mulher Grande” é uma narrativa ficcionada, um relato de uma vida de memórias (memórias de uma vida). É a Guiné que aproxima a narradora e o seu arquivador/escriba. Benedita Dantas Estevão possui uma memória prodigiosa, viveu as agonias e os êxtases de toda a gente.

A estrutura da narrativa baseia-se num processo literário explorado magistralmente por John Dos Passos, limitei-me a seguir-lhe as pisadas: há um episódio inicial em que o narrador descreve acontecimentos, o arquivador/escriba reflecte sobre eles (solilóquio) e o narrador dá uma explicação íntima para o que contou (recordações e trabalho de casa), é um círculo fechado de duas pessoas que falam a três vozes.

O que ofereço ao blogue é matéria que se prende com a essência do nosso blogue: a Guiné em vias de entrar na guerra. O resto, caso venha a entusiasmar os tertulianos, fica para a leitura de cabo a rabo. Sugiro a sua publicação em pequenos episódios de duas ou no máximo três páginas, em consonância com a própria construção dos diálogos. Aguardo a vossa apreciação. Um abraço de amizade, Mário



Mulher Grande > III > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”por Mário Beja Santos

[III. 1] Um Gabu que deixou poucas recordações


Viajámos quase um dia inteiro de Bissau para o Gabu. As coisas passaram-se assim. De Bissau seguimos para Nhacra e daqui para Mansoa. Esta primeira etapa era a que se fazia melhor, embora tivéssemos partido debaixo de temporal, uma picada escalavrada. Quase duas horas depois, rumámos para Mansabá, tudo em caminho de terra batida. Quando passámos ao lado do Morés, mal sabia eu que dentro de alguns anos estaria aqui um dos santuários da guerrilha. De Mansabá seguimos até Bafatá, um estirão de duas horas e meia com as picadas inundadas. Em Bafatá lá fomos a um restaurante, fez-se uma pausa de uma hora. E depois, fez-se o percurso final, uma picada interminável de Bafatá a Nova Lamego, o Gabu. Creio que já disse que procurei documentar-me, o livro dos Fulas ajudou-me imenso, foi ali que fiquei a saber que aquela imensidão árida era quase um quarto do território da Guiné.

A melhor recordação que retive da viagem foi a ida ao mercado de Bafatá, pela primeira vez senti qualquer coisa de Muçulmano na atmosfera, vi os cavaleiros Fulas, garbosos, com os trajos a esvoaçar, com lindos turbantes, fora do mercado havia jogos de corpo a corpo, para mim não era grande novidade, já tinha visto os Felupes e os Manjacos, todos untados de óleo, faziam simulações um pouco como o que eu tinha lido acerca dos lutadores gregos. Para meu pesar, calcorreei toda esta região ao lado do Albano. O Boé é o único ponto do território com alguma elevação, ali há colinas mas falta vegetação, fui muitas vezes a Cabuca, fizemos passeios à República da Guiné indo do Gabu até Madina do Boé e daqui à fronteira. O Corubal e os seus afluentes eram de uma grande beleza, sentia-se uma natureza pouco mexida, houve quem me dissesse que mais belo que aquelas matas à volta do Corubal só no Cantanhez.

Quando chegámos ao Gabu era o fim da tarde, mas deu para ficar horrorizada com o que vi da casa. Por fora, era imponente, por dentro não tinha conserto possível, era um apodrecimento imparável. A água vinha de uma fonte, em bidões trazidos por carros de bois, os criados enchiam os bidões para o serviço da casa. Ocorreu-me este pormenor quando há dias me falou que a água de Missirá vinha de uma fonte a 2 quilómetros e que os seus soldados muitas vezes rolavam os bidões até ao quartel. Estávamos lá há 4 dias quando o secretário da administração adoeceu e os seus 3 filhos ficaram em nossa casa. No meio daquela desolação, aquelas crianças encheram-me de alegria.

Provavelmente pensa que eu estou a exagerar quando falo no desgosto que senti no Gabu. Olhe, a cadeia era nas caves da casa. Cada um dos quartos tinham um número na porta, a primeira impressão era que eu estava num colégio interno ou num reformatório. Disseram-me que o anterior administrador era um homem original que chamava o pessoal com apitos, cada um tinha o seu toque. Cada um de nós tem tendência para dizer que já viveu no fim do mundo. Estou à vontade para afirmar que naqueles anos 50 o Gabu era para lá do fim do mundo.

Naquela época das chuvas foi uma verdadeira aventura irmos visitar os postos de Piche, depois o Albano disse que íamos até Buruntuma, tive a noção que estava a atravessar um deserto, aqui e acolá havia umas pequenas tabancas, não havia brancos, nem mesmo libaneses, talvez um ou dois cabo-verdianos, o Albano só falou crioulo. O Gabu não tinha praticamente brancos nenhuns, talvez por ter pouco comércio, por ser quente como tudo, e a terra parecia calcinada. Encontrei logo duas pessoas simpáticas, o senhor Fontes, o chefe dos correios, e a mulher que era a professora.

Tinha havido um incêndio muito grave na administração, parece que fora um cigarro aceso deitado imprudentemente para um caixote, perderam-se muitos documentos. Naquela aridez, o edifício da administração estava num dos vértices de um quadrado o outro vértice era o correio e a escola, do outro lado a casa do médico e no vértice oposto a igreja. A igreja esteve praticamente fechada enquanto lá estive.

O Albano prezava a fidelidade do pessoal, por isso o Omaia, o Ocante e o Augusto vieram connosco. Há uma história passada no Gabu que nunca mais poderei esquecer. Eu gostava muito do filho mais novo do Borja, o nosso secretário, que nós conhecíamos por Chaplin. Quando nos viemos embora o miúdo queria vir à força connosco. Foi uma separação muito difícil. Aí por 1997, quando o Toninho estava a morrer, encontrei numa sala de estar do Hospital Particular de Saúde uma rapariga nova, muito triste. Estava a chorar, aproximei-me dela, não sei como a conversa passou para a África, num pulo chegámos à Guiné, não sei como lhe falei do Chaplin, a senhora levantou-se e deu um grande grito, era o seu marido que estava ali ao lado a morrer. Fui vê-lo, ele reconheceu-me, assisti à sua morte. O Toninho morreu uma semana depois. Deus dá-nos sinais que não queremos entender. Ou não podemos.

Se tudo era árido, se nem ao menos podíamos passear à noite 1 quilómetro a pé, se eu não podia dar-me com quem quer que fosse, resolvi adoptar uma gazela que eu criava a biberão, vivia lá em casa. Quando o Albano saía do quarto entrava a gazela, ficávamos ali as duas a conversar.

É quando estamos no Gabu que soubemos que o De Gaulle ia fazer um referendo na Guiné-Conacri para saber se a população queria ficar vinculada à França ou tornar-se independente. O Albano foi enviado pelas autoridades de Bissau à Guiné-Conacri para apreciar o processo do referendo, andámos 4 dias a visitar mais de 20 mesas de voto.

Também o Albano estava contrafeito com a vida que levávamos no Gabu. Recebemos com alívio, 6 meses depois de ali estarmos, a notícia de que o Albano ia em missão para Bambadinca, junto do rio Geba. Lá metemos tudo num camião, desta vez a viagem foi muito mais simples, a partir do Gabu nós chegámos a Bafatá, e daqui por uma estrada razoável descemos até Bambadinca.

No caminho, o Albano levou-me a uma terra muito curiosa chamada Fá, fiquei surpreendida com as instalações, o Albano explicou-me que tal como em Geba houvera um presídio e uma missão católica importante, em Fá havia serviços da administração, granjas experimentais e, já não me recordo muito bem, parece que também tinha havido um presídio, Fá teria sido uma povoação muito importante no passado. Antes de partirmos do Gabu aquele Chaplin que muitos anos depois eu vi morrer agarrou-se muito a mim e pediu-me para vir connosco.

Desculpe se esta exposição não está muito clara, dormi mal, para ser sincera esta noite pensei nas diferentes doenças que sofreu o Albano e nos apoios que ele teve enquanto viveu na Guiné. Um dia, António Carreira, um administrador quase aposentado que depois foi trabalhar na Casa Gouveia e que assistiu aos acontecimentos do massacre do Pidjiquiti, falou-me numa doença grave do Albano, tinha ele 20 anos. Foi nesse tempo que o Albano passou a acreditar nas plantas medicinais, tratou-se com de chá de buco quando sofreu de uma bilharziose. Todos os grandes estudiosos da Guiné lastimavam não haver estudos sobre as plantas medicinais. Eu já estava habituada com as doenças mais estranhas que imaginar se pode. A si não o espantava aquelas elefantíases com os corpos deformadíssimos? O Albano, por exemplo, sofreu de uma ténia que o engordou imenso.

A viagem para Bambadinca foi agradável. Nota triste foi que a gazela fugiu do camião, nunca mais a vi. Chegamos ao fim do dia, fomos ver o porto, com um cais muito velho. Estava na enchente, várias embarcações partiam para Bissau, ali o Geba está cheio de meandros, as margens são muito bonitas, parámos a ver um pôr-do-sol extraordinário. O Albano disse-me: “Ali é o Cuor, antes do Oio. Havemos de lá ir, estão ali algumas das florestas equatoriais mais fechadas que existem. E agora vamos subir, a casa da administração é no cimo daquela rampa, de onde se parte para o Xime”.

(Continua)

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Nota de L.G.:

Brasão de armas de Gabu (do tempo colonial),  retirado, com a devida  vénia,  da Wikipedia.en

(*) O Mário já nos tinha mandado o 1º Cap da Mulher Grande em 1 de Abril de 2009...  É a história de uma mulher, lisboeta, nascida em 1920, que vai parar a África por via do seu casamento  com um administrador colonial, Albano, no início dos anos 50...  Falaremos, com maior detalhe deste 1º Cap, num próximo poste...

2 comentários:

Jorge Narciso disse...

Caros Luis e Mario

Para quando a publicação do livro ?

Abraço(s)

Jorge Narciso

Luís Graça disse...

Jorge:

Este projecto já tem um ano e tal... Pelo que percebi, da minha última conversa com o Mário, o manuscrito está nas mãos do editor (Circulo de Leitores / Temas & Debates)... Não sei se já deu o OK!... O Mário poderá dar-nos informações mais precisas. Obrigado pelo teu interesse. Luís