Guidaje em revolta após Abril
As lacunas que ainda não se conseguem preencher por falta de informação do lado africano, não impedem que envie este texto para se perceber as dificuldades que certas Unidades na Guiné tiveram depois de Abril.
Com o tempo já decorrido as situações vividas na altura esbatem-se na memória mas estão muito próximas da realidade vivida então na altura.
O que abreviou o texto (tinha apontamentos já feitos de forma dispersa), foi o facto de eu ter acabado a leitura do livro do Amadú Bailo Djaló, em especial a parte por ele descrita pós Abril, fez com que eu resolvesse contar mais este episódio.
Em Binta depois do 25 Abril, e esperando o desenrolar das negociações do cessar-fogo, então em discussão e a não saída do aquartelamento em termos operacionais (finais de Maio), o tempo começou a andar muito devagar para quem esperava sair depressa da guerra, mas nós ainda teríamos que por à prova os nossos recursos “diplomáticos”, com os nossos camaradas de armas guineenses para uma saída honrosa para ambas as partes.
A estrada que tínhamos andado a construir tinha ficado já muito perto do Cufeu, e nós apenas esperávamos a nossa vez de ir embora.
Havia pelo menos acordos tácitos de cessar-fogo, e as armas esperavam a vez de serem entregues, isso não impediu o PAIGC de no dia 8 Maio/74, talvez para nos lembrar que era o 1.º aniversário do começo da ofensiva a Guidaje no ano anterior, de nos enviar umas morteiradas a partir do seu acampamento de Fátima? do lado do K3, quando estávamos a comer, o que implicou que todos os palavrões existentes, fossem gritados para o lado de lá do rio a par de resposta adequada para dizermos que ainda estávamos vivos.
Depois da entrega das nossas armas, esperávamos o regresso a Bissau para o embarque para casa, mesmo sabendo que havia Unidades que mais novatas que a nossa Companhia iam mais depressa embora, ou pelo menos seguiam para Bissau, aparentava-se a calma necessária de modo a tudo parecer feliz.
Depois da saída da Ccaç 4150 no começo de Julho/74 de Guidaje, um dos nossos GrComb foi deslocado para lá a fim de ajudar a fazer a manutenção do quartel até à entrega do mesmo ao PAIGC, que foi efectuado a 21 de Agosto/74 , uma semana antes de sairmos de Binta para Bissau, o mesmo é dizer que até a “batata quente” nos foi entregue.
Ora é sabido que naquela altura havia movimentações por parte de elementos africanos que tinham servido o exército e andavam por vários aquartelamentos a elucidar os seus camaradas e a prevenir situações que estavam a pressentir não serem as adequadas às suas expectativas, quanto ao seu futuro.
Viam-se também envolvidos militares dos Comandos Africanos que estavam a alertar os seus companheiros para situações menos claras por parte do PAIGC.
Em sentido contrário andavam os comissários políticos do PAIGC a tentarem falar com a tropa nativa e populações, apresentando-se nos quartéis e pedindo aos Comandantes dos mesmos as licenças necessárias para tal fim, propondo encontros bilaterais para abreviar caminho, porque a pressa era muita para ambos os lados.
As promessas, (ou acordos ?) então feitas aos nossos camaradas africanos em Guidaje não estavam a ser cumpridas e eles revoltaram-se, tentando fazer valer os seus direitos de combatentes que ainda eram, não querendo fazer a entrega do seu armamento sem as necessárias garantias, e desconfiados do PAIGC, e com razão, como infelizmente se veio a verificar depois da nossa retirada.
Em finais de Julho, (ou princípios de Agosto) recebemos ordens para levantar novamente o armamento, para fazer face a uma insubordinação que acontecia em Guidaje, onde o nosso GrComb estava como que refém dos camaradas africanos que estavam relutantes na entrega do seu armamento, face à falta de garantias mínimas que não existiam para eles.
A apreensão tomou conta de nosso pessoal, que de imediato quis saber em que consistia a nossa ida a Guidaje, e a nossa recusa terminante em tomarmos alguma medida que pusesse em causa camaradas nossos, o pessoal militar africano de Guidaje teria que resolver o problema já que nada poderíamos fazer, e em nada contribuíramos para a situação criada.
A operação consistia em se utilizar os meios necessários incluindo a força (confrontação armada?) para que os revoltosos entregassem as suas armas a fim de permitir a entrega pacífica do aquartelamento ao PAIGC.
Na fronteira do Senegal estavam forças do PAIGC, atentas ao evoluir da situação, e a pressionar com a sua presença os revoltosos.
Lá seguimos mais uma vez para Guidaje, novamente armados e a querer parecer que os ecos de Abril ali não tinham chegado, a minha HK-21 voltou às minhas mãos depois de me ter “despedido” dela, parecia que o “divórcio” amigável não se queria consumar.
Avançamos pela estrada que tinha sido construída e durante a deslocação fomos confrontados com uma viatura militar vinda de Guidaje com dois soldados africanos (Comandos?), a ordem era para não deixar passar ninguém, mas depois da paragem da viatura e de breve diálogo, nada questionaram e voltaram para trás.
Estávamos assim numa situação que além de perigosa, não deixava de ser bizarra e irónica, a “alinhar” com o PAIGC para desarmar camaradas africanos que tinham combatido a nosso lado.
Ao entrarmos no quartel, somos rodeados de Milícias e Militares da Ccaç 19 que nos insultam e nos culpam pela situação existente, chamando-nos f… da p… e traidores entre outros “mimos”, e muito exaltados culpando-nos da situação existente.
Antes de lá irmos já nos tinham alertado para a calma que teríamos de ter para resolver a questão e levar a bom termo com a máxima persuasão possível a questão da entrega do armamento por parte das forças de Guidaje, embora a tensão existente não fosse a mais favorável.
Embora o conhecimento mútuo das nossas Ccaç pudesse ajudar, foi complicado e teve que haver muito discernimento, e muitas conversas isoladas com este e aquele mais exaltado, já no interior do quartel, e evitando qualquer sinal de animosidade.
Entre as nossas 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512 e a CCAÇ 19, apenas havia ocorrido um episódio menos agradável entre Grupos de Combate de ambos os lados em Binta depois de uma coluna, mas tinha sido um caso pontual, embora tenso para ambos os lados.
É evidente que não se vislumbrava o PAIGC embora eles já tivessem tido encontros bilaterais com a 19.ª CCAÇ, pelo menos a nível superior, mas alguma coisa tinha corrido mal, e nós teríamos de ajudar a sanar o problema, agora era connosco, era caso para citar o velho ditado, quem vier atrás que feche a porta.
Se calhar dá para perceber o meu cepticismo relacionado com as alegrias decorrentes então pela Guiné, uns abraçavam o IN, outros amargavam mesmo depois da paz (podre) alcançada.
Não culpo ninguém, (embora tenha a minha opinião que não é para aqui achada) apenas relato factos que poderiam ter tido consequências desastrosas, para militares em final de comissão, com a guerra acabada, e desejosos de regressarem às suas famílias.
E também com a força moral para dizer, que para mim as despedidas da Guiné não foram o que eu pessoalmente desejava, e lamento sinceramente, não ser capaz de exprimir alegria quando lembro o que se passou nessa altura.
Não sei o que foi tratado a nível superior, mas a deposição das armas por parte da tropa africana existente em Guidaje, foi conseguida, mas fiquei sempre com a triste imagem dum camarada africano perfeitamente fora de si olhando para nós e gritando-nos na cara que éramos traidores.
Numa próxima contarei a nossa triste saída de regresso a casa.
Um abraço para todos vós
Manuel Marinho
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6416: Controvérsias (75): A nossa postura face ao PAIGC no pós-Abril (Manuel Marinho)
Vd. último poste da série de 25 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 – P6467: Estórias avulsas (88): A minha viagem à Guiné-Bissau 2 (José Casimiro Carvalho, Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAV 8350)
9 comentários:
Independentemente de todos os possíveis (e passíveis) enquadramentos histórico-políticos,o teu texto,mesmo à distância de tantos anos,obriga-nos a ...parar e pensar. Um abraco.
Caro Manuel Marinho
Sentir-me-ia muito desconfortável se ainda estivesse na Guiné quando se deu o 25 de Abril.
Felizmente estava a viver em Lisboa, na R. Viriato, quando às 05h00 uma pessoa amiga me telefona a dizer que não saísse de casa que tinha havido uma revolução. Eu mesmo assim, às 06h30, saí de casa em direcção à Av. da Liberdade.
Também assisti ao 1º de Maio, na Alameda, assim como testemunhei algumas manifestações espontâneas, que eram frequentes, surgindo inusitadamente, sem se saber como nem de onde. Era constante verem-se cartazes onde podíamos ler – NEM MAIS UM MILITAR PARA O ULTRAMAR.
Foi uma explosão de erros que estavam em ebulição, há muitos anos, que com o 25 de Abril encontraram escape.
Apurar responsabilidades dos culpados do que aconteceu nas ex-colónias, depois do 25 de Abril, é muito difícil. Sabemos o que aconteceu, mas nunca saberemos o que poderia ter acontecido.
Faltou-nos a seu tempo, um estadista com rasgo de visão, para em tempo oportuno ter dado uma outra orientação à política colonial Portuguesa, para nunca ter deixado extremar as posições. As últimas decisões, no meu entender, creio que foram difíceis para todos.
Um abraço
José Corceiro
Parece que está havendo muitos "desertores" da classe de oficiais, e que estão aparecendo muitas mais praças neste enorme contador da história da guerra do ultramar, que é o blog Luis graça & Camaradas da Guiné.
Ou é apenas da minha vista?
Pois é Manuel Marinho, o "rabo é o mais dificil de esfolar".
"Cobardes e traidores"? essas palavras não eram para ti 1º cabo que não tinhas nome, tinhas um número apenas. Ainda hoje, não vemos ex-praças de cravo ao peito nos palcos das cerimónias do 25 Abril.
Os testemunhos sem politiquices e menos iruditas, incomodam muito Manuel Marinho.
Antº Rosinha
Saí de Guidage em Dezembro de 1973, desembarquei do avião em Lisboa, na véspera do dia de Natal…
Saí bastante combalido (cansado e debilitado espiritualmente), preocupado e apreensivo… Algo me dizia que quem ia pagar os nossos erros seriam as nossas forças armadas africanas…
Agradeço o teu relato, que não deixa de ser corajoso, ex. 1º Cabo Manuel Marinho.
Compreende-se a reacção daqueles soldados africanos da CCaç 19… Não mereciam o que lhes veio a acontecer!... Enganados e abandonados: Sofrimento e drama!...
Recordo todos, mencionando um nome: MALAN SISSÉ, de Binta, filho de régulos Mandingas, soldado da CCaç 19. Teve um fim trágico!
Lendo estas histórias sobre a Guiné e Guidage, fico amargurado…
Um abraço,
José Pechorro
Ex. 1º Cabo Op.Cripto
CCaç 19 - Guidage - 71/73
A história aqui contada tem alguma falta de informação.
Era eu o cmt da Companhia e tinha vindo a Lisboa. Quando cheguei regressei, a 27 de Julho, deparei-me com uma situação explosiva.
Estive cercado com os meus alferes e furrieis durante dois dia. Até que os soldados da C. Caç me deram um prazo para falarem com um cap. dos comandos africanos. Se isso não acontecesse até às 15 horas eles fuzilar-me-iam na parada.
Chegou um helicóptero às 13 H, com um cap.comandos africanos , Se bem me lembro, Cap. Sisseco, acompabhado de um Major do Estado Maior.
Os soladados Africanos , quando souberam que tinham que sair em Agosto, não aceitaram e acharam que nós tinhamos sido uns traidores.
Depois da minha ida a Bissau chamado pelo Cmt. Chefe Coronel Fabião, conseguiu-se que eles recebessem o pré até fins de Dezembro.
O autor do comentário efectuado às 12,03 esqueceu-se de se identificar, no entamto, pelo texto deduzo ser o Capitão Miliciano de Infantaria Francisco da Silva Oliveira. Era bom confirmar esta informação.
O Capitão Siseco (seria o Ten. Grad. Cmd. Adriano Sisseco), que foi um dos comandantes da 2ª CCmdsAfr?
Quanto aos pagamentos a efectuar aos militares africanos, está consignado no artigo 24º da Anaxo qo Acordo de Argel, assinado em 26 de Agosto de 1974, Previa o seu pagamento até ao fonal do ano de 1974.
Porem, não foi nesta data que o mesmo foi acordado. Teria de vir de reuniões anteriores uma vez que, na C.Caç 5 (Canjadude) desactivada em 24 de Agosto (antes da assinatura do Acordo), o Comandante na altura pagou esses valoes aos seus subordinados africanos, tendo para tal de ter deslocado a Bissau o seu 1º Sargento para proceder ao levantamento da verba necessária e proceder ao transporte da mesma.
Renovo que, o subscritor do comentario a que me refiro, alem de se identificar nos faculte mais elementos sobre este pediodo que não está muito documentado "oficialmente".
Tambem me permito convida~lo para integrar esta Tabanca, onde todos partilhamos as nossas mem´
orias daquela terra que "odiámos" e, posteriormente, a adoptamos como nossa.
Sou o Ex Cap. Mil. António Eduardo Gouveia Carvalho. Já tentei integrar este maravilhoso colectivo, mas não possuo fotografias do tempo da Guiné.
Serei um dos vossos com todo o gosto, pois ao consultar, o que faço muitas vezes, este espaço netiano, verifico , com agrado que é muitisimo bem orientado pelo camarada Luis Graça e seus directos colaboradores, a quem desde já presto a minha homenagem.
Aproveito para desejar a todos uma Festas Felizes.
Caro Gouveia de Carvalho
Seria um "absurdo" não se poder farticipar nesta Tabanca, porque quiz o destimo não se tivesse fotos do tempo da Guiné.
Tal "questão" aplica-se, tão somente, para permitir a "identificação" do membre, face à época.
O mail de contacto dos nossos editores, está no próprio blogue.Quanto às fotos, muito provavelmente, "elas irão aparecer", saídas dos arquivos dos muitos camaradas que aqui se reunem.
Em nome da Tabanca Grande, da qual apenas sou colaborador, desejo-te, a ´ti e à familia, Bom Natale que o próximo ano seja mais risonho que so que agora termina.
Aparece. Todos te receberemos de braços abertos. Agardamos as tuas histórias.
Abraço camarigo
Caro Gouveia (ou António) Carvalho
Com uma pesquisa aos meus "books" detectei o Último Capitão da 19.
Não sei se o comentário do dia 18 às 12,03 é teu. De qualquer das formas, é sempre bom encontrar camaradas da Guiné e, sobretudo, daqueles que têm algo em comum connosco: camardas de companhias e pelotões africanos.
Ficamos a aguardar noticias.
Forte abraço
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