segunda-feira, 14 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6594: Notas de leitura (122): A Guerra de África, 1961-1974, Volume II, por José Freire Antunes (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Junho de 2010:

Queridos amigos,
Acho que nos faz bem a todos rever o conjunto de depoimentos referentes à Guiné recolhidos pelo José Freire Antunes.
Sem ele, teríamos demorado mais tempo para saber que o Governo de Caetano estava a negociar com o PAIGC ou que o sistema financeiro avançava rapidamente para o colapso.

Um abraço do
Mário


A Guerra de África, 1961 – 1974, Volume II

Por José Freire Antunes


Beja Santos

A obra em dois volumes “A Guerra de África”, organizada por José Freire Antunes, obedece à metodologia designada por “história oral”, o investigador, a propósito de uma determinada época em análise, convoca protagonistas, dá-lhe voz ou socorre-se da sua escrita. Esta metodologia não é hoje completamente aceite como primeiro recurso, exige-se-lhe que seja complementada com outras diferentes fontes, posta em confronto com outros testemunhos, documentos e até com o tratamento do contraditório. Seja como for, há que reconhecer que no acervo dos protagonistas seleccionados por José Freire Antunes trazem um importante contributo para a história de guerra da Guiné. Como se compreenderá, são exclusivamente este tipo de protagonistas os que aqui vão ser enunciados.

Começando por Lemos Ferreira, General da Força Aérea, que serviu na Guiné onde comandou a Base Aérea n.º 12. Referindo-se ao último período da guerra, o general observa: “A convicção do PAIGC era a de que seria possível uma vitória militar e então arriscou e fez o contrário da guerrilha, que era aparecer no terreno com forças relativamente vultosas. Eles consideravam que o que faria a diferença seria a parte aérea, portanto, o que eles precisavam era qualquer coisa que anulasse a Força Aérea. Isto foi perfeitamente claro e apareceram os mísseis Strella. E o que aconteceu foi que, de repente, numa tarde, nós perdemos três aviões: um T6 e dois DO. Quando se tem um núcleo de 60 ou 70 pessoas e, só numa tarde, em duas ou três horas se perde cinco por cento da sua capacidade, isto é muito complicado. Um soldado de infantaria podia-se preparar num mês e meio, um piloto demorava muito mais tempo.

Criaram-se vícios de forma nas Forças Armadas. Pensava-se que era possível realizar tudo devido à cobertura aérea. Mas a nova situação levou a que se decidisse que tinha que haver algumas restrições. Tivemos que ser inventivos: se a ideia do adversário era de que a Força Aérea estava de gatas, havia que provar o contrário. E provar o contrário como? Com a utilização muito mais intensa da arma aérea. Eu nunca fiz tantos bombardeamentos na vida, nunca fiz tantos disparos, como nessa altura, exactamente para a contraprova. Normalmente, a noite era o refúgio do guerrilheiro e, por isso, nós tivemos que inverter a situação. A maior parte flagelações que eles faziam às nossas guarnições eram feitas de noite, muitas delas com morteiros. Havia que responder de forma muito mais pesada. Na altura, vimo-nos no embaraço de consumirmos mais munições – bombas e foguetes – na Guiné do que consumiam Angola e Moçambique juntos”.

O brigadeiro Martins Marquilhas serviu na Guiné entre 1966 e 1968. O seu depoimento é alusivo à instrução dos comandos. Comenta ele: “O inimigo da Guiné era mais aguerrido, mais evoluído culturalmente a nível do soldado. Não estou a falar das elites. Uma gala da Guiné, que era dos fulas, era mais evoluído. Um exemplo era a capacidade de decisão: um terrorista guineense, num aperto, era capaz de tomar uma decisão muito mais rápida e acertada do que um quioco. Na Guiné, a própria religião islâmica desenvolvia-os um bocadinho mais”. Falando dos comandos, observa: “Na Guiné, mataram-nos depois do 25 de Abril, não a todos mas a muitos. Mataram-nos com o receio da reacção deles em relação aos que tinham poder na altura, não foi por mais nada”.

O depoimento do general Almeida Bruno é detalhado, começa por explicar o projecto da Guiné Melhor e as dificuldades militares que Spínola encontrou quando chegou à Guiné. Spínola pretendia em simultâneo aumentar a actividade operacional e desenvolver a Guiné, queria dialogar com o PAIGC numa posição de força. Refere ao pormenor as tentativas de negociação de Spínola e como elas foram inviabilizadas por Caetano. E desabafa: “Quando saí da Guiné em Julho de 1973, nós tínhamos perdido a batalha no plano político. Enquanto se fez a guerra na esperança de que a solução estava à vista porque estávamos a ganhar terreno no plano político, tudo bem. Mas quando nos apercebemos que no plano político tínhamos perdido a batalha, voltámos ao princípio de fazer a guerra pela guerra... Quando percebi que tinha perdido essa batalha, só vi uma hipótese: derrubar o regime. Aderi e ajudei a derrubar o regime, vi na queda do regime a única hipótese de continuar Portugal através da lusofonia”.

O testemunho de Manuel Maria Monteiro Santos, combatente do PAIGC conhecido por “Manecas” tem igualmente muita importância. Destaco o seguinte comentário: “Quando Spínola foi para a Guiné substituir Schultz como comandante-chefe, a situação militar já era nitidamente favorável ao PAIGC. Schultz fez muitas asneiras. Não fez uma anti-guerrilha moderna, dado que os portugueses estavam a bater-se contra um movimento bem estruturado e bem equipado. Schultz não fazia trabalho com as populações... o PAIGC sempre procurou constituir a suas unidades com elementos vindos de todas as etnias. Procurou, mesmo, fazer mover todas as unidades do Sul para o Norte, do Norte para o Leste, do Leste para o Sul, etc., para não vincular nenhum combatente à sua área, à sua região ou à sua etnia”. Falando da sua preparação sobre os mísseis Strella, explicou: “Estive na União Soviética, numa escola militar, com o grupo de soldados que foi lá fazer o estágio dos foguetes anti-aéreos. Da primeira vez vieram umas 24 instalações de lançamento Strella, via Conacri. Os Strella acabaram com a guerra no sentido em que o exército colonial ficou completamente na defensiva. Foi exactamente nesse momento que começamos a fazer operações de maior envergadura, de dia... Em termos de luta armada, o assassinato de Cabral teve um efeito oposto àquele que se esperava: houve um recrudescimento da actividade armada e, quando chegaram os Strella, foi a gota de água. Lembro-me que a chegada de Bethencourt Rodrigues foi saudada com uma operação ofensiva que os portugueses fizeram. Foi uma operação no chão dos manjacos com duas companhias de comandos que se infiltraram ali de helicóptero mas que os helicópteros já não puderam ir buscar por causa dos mísseis terra-ar. Essas suas companhias foram perfeitamente destruídas e até foi capturado o comandante de uma delas”. Deixamos para o próximo texto os depoimentos de Dias Rosas, Tomé Pinto, Hélio Felgas e o Rui Patrício.

(Continua)
__________

Nota de CV:

Vd. postes de:

9 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6569: Notas de leitura (120): A Guerra de África, 1961-1974, Volume I, por José Freire Antunes (1) (Mário Beja Santos)
e
11 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6577: Notas de leitura (121): A Guerra de África, 1961-1974, Volume I, por José Freire Antunes (2) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Anónimo disse...

Nunca qualquer historiador, comentarista ou estudioso explica o insucesso militar (intencional) em Angola, Caboverde, Moçambique e São Tomé, por parte dos movimentos revolucionários, ao invés do sucesso militar na Guiné-Bissau.

Os jovens da Juventude Amilcar Cabral, aprenderam que valentes eram os guineenses, os angolanos e outros eram cobardes. E até achavam que os "mezinhos" da Guiné eram mais poderosos. Que estes jovens falem assim, ouvi durante anos, tem muita lógica para efeitos de mobilzação.

Agora, que venha um brigadeiro nosso, Matias Marquilhas de seu nome, entrevistado por J.F.A., comparar a inferioridade militar de um Quioco (angolano) com um Fula guineense, para explicar as diferenças da guerra nos dois campos, é simplificar demais, para um brigadeiro.

Até parece que há brigadeiros que "passaram a guerra distraidos".

Enfim, fizemos o que podemos!

antonio graça de abreu disse...

Diz o general piloto aviador Lemos Ferreira:

“A convicção do PAIGC era a de que seria possível uma vitória militar (...) Eles consideravam que o que faria a diferença seria a parte aérea, portanto, o que eles precisavam era qualquer coisa que anulasse a Força Aérea. Isto foi perfeitamente claro e apareceram os mísseis Strella. (...)A nova situação levou a que se decidisse que tinha que haver algumas restrições. Tivemos que ser inventivos: se a ideia do adversário era de que a Força Aérea estava de gatas, havia que provar o contrário. E provar o contrário como? Com a utilização muito mais intensa da arma aérea. Eu nunca fiz tantos bombardeamentos na vida, nunca fiz tantos disparos, como nessa altura, exactamente para a contraprova".

Abraço,

António Graça de Abreu

antonio graça de abreu disse...

Diz Manuel dos Santos, Manecas, comandante cabo-verdeano do PAIGC:


"Os Strella acabaram com a guerra no sentido em que o exército colonial ficou completamente na defensiva. Foi exactamente nesse momento que começamos a fazer operações de maior envergadura, de dia.(...) Houve uma operação no chão dos manjacos com duas companhias de comandos que se infiltraram ali de helicóptero mas que os helicópteros já não puderam ir buscar por causa dos mísseis terra-ar. Essas duas companhias foram perfeitamente destruídas e até foi capturado o comandante de uma delas”.

Quantos hélis foram abatidos pelos Strela em toda a guerra? Nenhum.
Como se explica que "um exército que fica completamente na defensiva"
mande duas companhias de comandos, helitransportadas ao chão manjaco?
As duas companhias de comandos (africanos creio) "foram perfeitamente destruídas" segundo o Manecas?
Alguém anda a enganar alguém.
A nossa História e a História dos povos mártires da Guiné-Bissau faz-se com verdade, com a verdade dos factos.

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Sobre as duas CCmds "completamente destruídas", v. o poste 6382, de 13 de Maio. Ali se encontra a transcrição de uma anotação de V. Briote a uma passagem do livro de Amadu Djáló:

"Segundo nota do editor (Virgínio Briote) (p. 265), foi no decurso da Op Gema Opalina, na região de Cobiana, de 24 a 27 de Setembro de 1973. Um dos agrupamentos, com 40 homens, depois de helitransportado para a zona, caiu numa forte emboscada montada da mata para o tarrafo. As NT sofreram 3 mortos (Fur Quintino Rodrigues e Sold Lama Djaló e Braima Djaló) e 7 desaparecidos (Tem Jalibá Gomes, 1º Cabo Albino Tuna e Sold Ali Jamanca, Braima Turé, Vicente Djata, Demba Só e Eusébio Fodé Bamba). Destes desaparecidos soube-se, dias depois, que 4 tinham sido aprisionados pelo PAIGC, incluindo o Ten Jalibá Gomes que foi levado para Conacri, passando a partir de então a colaborar com o PAIGC até à independência".

Bettencourt Rodrigues chegou à Guiné em 21 de Setembro de 73.

Abraço,
Carlos Cordeiro