1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Janeiro de 2011:
Queridos amigos,
Naquela altura, o Tangomau sofria a valer, era uma corrida contra o tempo, tinham falhado vários itinerários, todos eles de valor precioso: o Cuor, na região de Finete junto ao Geba, até Aldeia e Gã Gémeos; a região de Fá; as tabancas beafadas perto de Amedalai; Samba Silate e os Nhabijões.
Esta foi uma manhã inesquecível. Mas a tarde, passada na Ponta do Inglês, não foi menos. E amanhã, domingo, vamos ter festa, os velhos combatentes vão conviver e recordar os seus mortos.
Um abraço do
Mário
Operação Tangomau (12)
Beja Santos
A partir de Maná até Madina de Gambiel. A seguir, a Ponta do Inglês
1. O Tangomau está inquieto, sem retórica até se sente um pouco angustiado. Dormiu agitado e sente culpas no cartório, veio à Guiné por razões muito precisas ou lineares, sobressaltou pessoas e instituições para ter chegado a um programa lisonjeiro com alguma estadia na região de Bambadinca. Mas agora tudo lhe sabe a pouco, vai para a casa de banho refrescar-se com o duche de caneco e faz perguntas sem resposta: é justo regressar a Bissau sem ver a malta das tabancas beafadas, até Moricanhe? Andaste por aí a perguntar por gente que mora a escassas dezenas de quilómetros e não ousas pôr-te ao caminho, tens tanta soberba que até pensas que lhes compete serem eles a fazerem esta longa marcha de candonga ou bicicleta? Eras tu que querias fazer Finete a Missirá junto ao Geba e afinal rendeste-te ao argumento que está tudo alagado? És negligente, tens a mania das facilidades, perdeste o gosto pelo risco, és um merdas, disfarçado de caminheiro, só queres a vida facilitada.
Com os alvores do dia, passou do estado melancólico para a excitação, hoje vai começar por se despedir do Cuor, visitando Maná, Sansão e Madina de Gambiel, poderá dizer por quase todo o Cuor está conhecido, sem remissão. O que na prática não é verdade. Andou ali a discutir com o Fodé Dabaha que tinham ido a Madina de Biassa. Tinham sido quilómetros a mais, tinham chegado ali perto de Sancorlã, tabanca que visitara várias vezes no passado, em patrulhamento. Pedira para visitar Salá e Quebá Jilã, rendera-se ao argumento das bolanhas alagadas e estradas intransitáveis. Lânsana Sori devia ter entrado mais cedo na expedição, paciência. Agora, impunha-se usar o dia, intensamente. Lânsana chegou, pontualmente, fizeram-se as compras no mercado do Bambadincazinho, ei-los à desfilada do Bairro Joli à Bantanjã, daqui para Finete e depois Canturé. Começa a ritual das toranjas, aqueles citrinos que matavam fome e sede nas idas e vindas diárias a Mato de Cão. São árvores miraculosas, quase irãs, merecem uma imagem para a posteridade.
2. Apresentam-se mais cumprimentos a Malã Mané, o chefe de tabanca de Canturé, acena-se à população e ruma-se para a velha estrada que ligava no passado o Enxalé a Geba. Esta estrada exerce um estranho fascínio sobre o Tangomau, e logo desde Agosto de 1968. Vale a pena, resumidamente, explicar porquê. Dentro dos 16 itinerários alternativos entre Missirá e Mato de Cão (bem divulgados no mercado de Bambadinca de modo a que a informação chegasse a Madina, e os inibisse nas iniciativas de emboscadas e minas) atravessar aquela estrada era uma obrigação. Mas uma obrigação com fascínio, e não se exagera, basta tê-la percorrido. Era alcantilada em muitos pontos. Numa das margens, à direita, de quem ia de Missirá para Gambaná, muito densa, não foi por acaso que o PAIGC escolheu esses pontos em emboscadas passadas, na outra berma era tudo aberto e luxuriante, basta pensar em Canturé e Maná. Chegava a ter rectas de um quilómetro, era uma vista desafogada, de um lado, uma inquietação permanente de outro, mas tudo numa atmosfera de beleza selvagem, expectante. E um silêncio só interrompido pelas viagens dos pássaros e o restolhar da fauna de pequeno porte. No passeio de hoje, o Tangomau delicia-se com essa estrada perdida, quase sem préstimo, para chegar a Maná nem vai ser difícil, Lânsana Sori inflecte para a direita, muito antes de se passar de Cancumba para Missirá. É um renovado prazer, agora Maná tem vida, a tabanca começou a ser reconstruída logo em 1975, não tomem o Tangomau por pedante ou excessivo, agora que se entrou pelo trilho e se avista Maná, ele referencia o ambiente como um todo. É bem recebido por Silá Sani, o chefe de tabanca. Aqui vivem 175 pessoas, o Tangomau mostra os livros, pela enésima vez pedem-lhe que os deixe ali, lamentavelmente não é possível, mas eles estão à disposição em Missirá. Tiraram-se fotografias, por azar do destino tudo se perdeu e é por isso que se mostra a fonte de Cancumba, um dos lugares míticos do Tangomau. Só quem ali viveu é que pode compartilhar da alegria em saber que aquela fonte dá vida a Cancumba e mesmo a Missirá, pode recordar o pesadelo do abastecimento quando as duas viaturas estavam empanadas.
3. Em alvoroço, o Tangomau retoma à velha estrada que ligava Bissau a Geba. Agora quer ir a Sansão, terreno emblemático dos guerreiros do Cuor. Aqui, foi Sambel Nhantá, aqui combateu Infali Soncó, foi obrigado a recuar perante as tropas portuguesas, em Abril de 1908. A motocicleta passa por Missirá, novos abraços efusivos, o Tangomau obtempera a todos os pedidos, possíveis e impossíveis, desde equipamento de futebol a material escolar. Bantan Aiderá e Nhali Cassamá, esta última viúva de Quebá Soncó e que há poucas horas visitaram o Tangomau em Bambadinca, olham-no atónitas, parece que a motocicleta transporta uma alma do outro mundo. Até Lamine Suane, o filho de Cherno Suane, o guarda-costas do Tangomau pede fotografia para o pai ver em Lisboa. Aparece a correr Braima Sani, que veio de Maná, Nhali Cassamá indica o caminho para Sansão. O Tangomau leva o coração em festa, ali há vida, quase todos os dias se percorria Sansão então tabanca morta, com as suas hortas ao abandono. É recebido por Aladje Lamine Cassamá, há abraços, perguntas, mostram-se os livros. É nisto que começam os prodígios da manhã, dois amigos se apresentam, felizmente que a máquina fotográfica não traiu o evento. Eles são Dauda Mané, aquele menino que ficara surdo no ataque a Missirá no Natal de 1966, Dauda fora enviado ao hospital, regressou sem diagnóstico; a seu lado, temos Aladje, que o Tangomau tão bem conhece, naquele tempo era inimaginável supô-lo chefe de tabanca em Maná. O admirável diz tudo é conversa com Dauda, ele olha para os lábios do interlocutor, percebe e sente tudo. Sim, sente, aqueles abraços vêm cheios de meiguice, estão muito para além da falta de compreensão dos sons. Quanto o Tangomau agradece este afago, este olhar maravilhado de Dauda Seidi!
4. De regresso a Missirá, multiplicam-se os conselhos para chegar a Madina de Gambiel. São talvez dez quilómetros até chegar à fronteira do regulado do Cuor; uma fronteira com paraíso, é esta a recordação que guarda o Tangomau, uma atmosfera edénica, com palmares soberbos, as palmeiras de Samatra que Armando Cortesão, mais tarde um dos maiores cartógrafos do mundo, para ali levou. São bolanhas úberes, uma fertilidade espantosa, tudo o Tangomau conheceu ao abandono, como terra de ninguém, embora as populações na órbita do PAIGC as cultivassem do lado de Mansomine. É uma viagem extasiante, umas vezes dentro de um carreiro com a frescura das copas dos cajueiros praticamente entrançados, outras sentindo as hortas cultivadas, e depois o desfrute das águas e do arvoredo combinados. Caminhava-se para o paraíso de Gambiel.
5. A tabanca de Madina de Gambiel é modesta mas está cheia de vida. O Tangomau pede para falar com o chefe da tabanca, alguém parte à procura da individualidade, entregue as fainas agrícolas. Outra pessoa levanta-se de um banco de madeira e olha directa e mansamente e exclama: “Reconheci-te pela voz e pelo andar. O teu nome é… Eu sou o Ieró Baldé, fui teu soldado milícia em Missirá, até Novembro de 1969”. O Tangomau é quase derrubado pela emoção, tal coisa nunca lhe acontecera, se sentir a fome e quisera comer fruta e bolacha Maria e beberricar água, tal precisão partiu instantaneamente. Agarra na mão de Ieró e vão a conversar, como em Novembro de 1969, falam de famílias, sobretudo dos filhos, o Tangomau pergunta-lhe por camaradas como Gibrilo Embaló ou Tomani Sanhá ou Sila Sabali, Ieró não tem notícia de nenhum deles. E assim chegam à bolanha de Madina de Gambiel, dois quilómetros à frente, fazem o percurso a pé, vão acompanhados por curiosos, cenas destas não se vêem todos os dias.
6. O Tangomau está decepcionado com o que vê à volta. Afinal, para construir a tabanca, a estrada sobre o rio Gambiel, arrasaram o palmar, continua a haver beleza mas o magnetismo, o feitiço dos palmares a beijar a água em abundância desapareceu. O Tangomau explica que esteve em Madina de Biassa que afinal fica para lá de Sancorlã e que ali insistem que é Madina de Gambiel, foi assim que Djlimamadu Camará, exímio caçador e que sempre andara nas florestas com Cibo Indjai, sempre a designou. Os de Madina de Gambiel andam furiosos com esta confusão, nem chega a ser uma rivalidade como Nazaré e Peniche, é um abuso de confiança, uma usurpação de quem vive no Gambiel não gosta e recalcitra. A grande emoção, afinal, foi rever Ieró Baldé. Não deve haver ninguém no mundo que não aprecie ser reconhecido imediatamente depois de mais de 40 anos de separação. Mais palavras, para quê?
7. A manhã vai alta, urge regressar, Lânsana Sori quer comer e repousar em Bambadinca. De Madina de Gambiel parte-se para Missirá, quando o Tangomau acena para todos na tabanca sente o coração contrito, há sempre presságios, pensamentos negros do género: terá sido a última vez que visitei Missirá, lugar eleito? A motocicleta prossegue veloz em terreno alcantilado, sempre a fintar pequenos abismos e charcos esverdeados. A excitação apazigua-se vendo Maná ao longe, atravessando Canturé, isto com uma enorme falta de coragem de ter pedido a Lânsana Sori para descerem até Gambaná, é aqui que começa uma recta espectacular com Malandim à esquerda e Chicri à direita, não fosse aquele cansaço brutal, a roçar o desumano, e todos os dias valia a pena vir aqui, palmilhar mais de duas dezenas de quilómetros. Mas não, houve prudência, seguiu-se até perto de Finete e inflectiu-se para a Bantajã Mandinga e daqui para Bambadinca. Aliás há imensos pormenores a tratar com Calilo Dahaba, o homem grande Fodé decidiu que a festa amanhã não é cabrito é foleré bem especial. Para quem está esquecido, o foleré mete batata, candja, alho, calda de tomate, óleo, orégãos, djacatu, sal, cebola e caldo de carne. A proteína é à escolha, e o homem grande Fodé decidiu que vai ser carne de vaca com osso, da costela. Assim seja, o Tangomau quer é regozijo neste reencontro, passar o dia na festividade com todos aqueles que foi possível encontrar. Por insólito que pareça, mesmo junto ao Geba, quando os viajantes deixaram Finete, o Tangomau pediu para captar a última imagem, a despedida do Cuor, tem consciência de que não há grande beleza naqueles eriçados com a mata ao fundo. Mas foi o lugar em que viveu e de que se vai separar, não sabe se pela última vez. E agora vamos descansar. Lânsana larga o Tangomau num espaço fresco onde fica à frente de uma cerveja, com a sua bolacha Maria, goiabas e algumas bananas-maçã. Um rádio batuca uma melopeia pouco estridente. Ali ao pé, as vozes no mercado são cada vez mais sussurrantes, com a onda de calor todos procuram sombra, descansar o corpo. Com um frémito de prazer, o Tangomau prevê uma tarde apaixonante. Daqui a um bocado partem para a Ponta do Inglês, um dos roteiros mais cobiçados para esta viagem. Estonteado pelo calor, ainda com remorsos pelas viagens que não fará e que tanto gostaria de fazer, o Tangomau deslizou para a escuridão. Na vaga do calor, adormeceu.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P7571: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (11): Regresso de Madina e Belel, com paragem em Canturé
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
Regressei agora de Lisboa, do jantar do PEN CLUB
PORTUGUÊS e vim abrir o blogue. Calculava problemas, logo na altura em que enviei o comentário, neste mesmo espaço, achei que me excedi.
Foi tudo removido pelo Luís e Carlos. E Muito bem.
Peço desculpa a todos, repito peço desculpa todos os camaradas da Guiné, em primeiro lugar ao Mário Beja Santos.
Talvez isto sirva para um dia lhe dar um grande abraço.
António Graça de Abreu
Caro camarigo António Graça de Abreu
Leio com alegria este teu comentário, este teu pedido de desculpas.
Bem hajas pela dignidade deste teu proceder.
Um abraço forte e camarigo para o Mário e para ti
O Luís tinha desinfectado o poste, mas este pedido de desculpa mais não é que uma tentativa de pelo menos deixar uma bactéria a germinar.
Quanto mais conheço os homens mais gosto do cão da minha vizinha.
Carlos
Caro Carlos
Confesso que não entendo este teu comentário???
Um abraço
Camaradas, amigos e camarigos:
Deixemo-nos de picardias e ressentimentos, neste blogue que é (e deve continuar a ser) o da inclusão (não o da conclusão, menos ainda o da exclusão) das memórias e dos afectos de todos os amigos e camaradas da Guiné, para mais no dia em que o Mário (e a sua ex-mulher e nossa amiga Cristina Allen) recebe com profunda alegria a notícia do nascimento da sua primeira neta, filha da Joana, um ano depois da trágica morte da sua outra filha, a sua tão querida Locas...
Para que conste, aqui fica o mail que, de resto, já circulou internamente na Tabanca Grande, com data de 11 de Janeiro:
"Assunto: A Benedita nasceu pelas 3:30 de hoje! Sou um avô babado!
"É verdade, Acabo de vir da Maternidade Dr. Alfredo da Costa. A minha neta chegou, ao que parece bem disposta ,antecipando-se duas semanas ao previsto. Chama-se Benedita, mais feliz coincidência não há, é o nome da heroína da Mulher Grande, [livro que] vai ser lançado em Março [pelo Círculo de Editores / Temas & Debates], espero que ela assista ao aparecimento dessa mulher que até poderá ser um exemplo para a sua vida, que desejo do fundo do coração seja longa ,produtiva e inesquecível . Saúde e fraternidade! Tigre de Missirá".
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