1. O nosso Camarada António Martins de Matos (ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74, hoje Ten Gen Pilav Res), enviou-nos a seguinte mensagem:
Caros amigos,
Fim de semana de chuva, lá vai mais um texto, este a propósito do livro do José de Moura Calheiros.A foto do cockpit do G-91 é tirada da internet, seu autor "SCDBob", a outra é minha.
A propósito da “Ultima Missão” de José de Moura Calheiros
A época do Natal e Ano Novo é sempre um período de grande estafa e agitação, planos a cumprir, compras, planos a alterar, compras, tentativas de juntar os familiares, uns que podem, outros que podem mas não querem, outros que não podem, viagens para cima e para baixo, compras...
Felizmente que tudo tem um fim, depois da grande azáfama, finalmente a calma a regressar.
E com o regresso à normalidade e o colesterol em alerta entre o vermelho e o roxo, acabamos por ter um tempo para esticar as pernas e finalmente... “descansar”.
Aproveitando a acalmia da ocasião acabei de ler o livro do “meu Major” José de Moura Calheiros, “A Ultima Missão”.
Já lhe tinha dado umas bicadas, algumas partes que me interessavam mais que outras, mas agora foi como deve ser, do princípio ao fim.
Gostei.
Não obstante ter lido muitos dos livros que falam sobre a Guiné, foi a sua escrita que me fez obrigar a recordar os locais por onde andei, o calor, os cheiros, a terra vermelha, a descrição de Bissau e seus encantos e desencantos, o mercado, a rua das lojas, o largo do liceu, o Solar do Dez e o Pelicano, a humidade e as pragas, de grilos, morcegos ou sapos.
Como ele recordei a minha sensação de insegurança ao andar pelas ruas e estradas na área de Bissau, logo desmentida pelos mais experientes “estás aqui mais seguro que no Rossio”, alguém terá dito.
E era verdade.
O livro fez-me voltar à guerra, ao Cantanhês, a Guidage e Gadamael, aos PCVs em DO‑27, aos apoios de fogo às tropas pára-quedistas, aos contactos com a tropa no rádio dos 49.0 ou 51.0, à largada de armamento, umas vezes sem problemas de proximidade, outras vezes mesmo ali nas barbas dos nossos homens.
Tenho de o dizer, a maior angústia que os pilotos sofriam não eram os problemas dos mísseis Strela ou as antiaéreas com que nos iam tentando acertar, a maior angústia era não saber no meio daquele tapete verde onde se situariam “os nossos”, ou sabendo-o, tentar satisfazer o seu pedido de apoio, de bombardear o inimigo logo ali a uns metros de distância.
Que o inimigo sabia defender-se, ao sentir a aproximação dos aviões, tentavam encostar‑se o mais possível às nossas tropas.
Se houve missões em que a segurança dos “nossos” esteve mais em risco elas foram seguramente as do Cufeu e meses mais tarde em Canquelifá e Copá, o alívio só nos chegava quando se ouvia a tropa depois do bombardeamento dizendo que estavam todos bem.
E, caros amigos, deixem-me confessar algo, uma ou outra vez foram largadas bombas demasiado perto da nossa tropa, bem dentro do perímetro de segurança.
Só o pedido feito no rádio em momentos de desespero, entrecortado pelo som de disparos, nossos e deles, nos faziam quebrar as regras de segurança a que estávamos obrigados.
Trinta e sete anos passados ainda oiço nos meus ouvidos o pedido de alguém que, na bolanha do Cufeu dizia, “estamos no pontão, bombardeia o pontão”.
Pontão bombardeado, devo ter envelhecido alguns anos, sem conseguir restabelecer as comunicações com quem me pedira o apoio.
Cinco minutos passados, contacto finalmente restabelecido, voltei a ser um jovem.
Eu sei que nem sempre é fácil dizer “onde estamos” ou “para onde vamos”, ou “o que queremos”, é preciso algum treino, todos nós já tivemos aquela experiência de ter que indicar um caminho a alguém, voltas ali, e mais acolá, estás a ver o sinal, não é esse, é logo a seguir...
Estamos perfeitamente a ver o caminho e assumimos que o interlocutor também o está a “ver”, quando grande parte das vezes isso nem é verdade.
Ainda há uns dias disso tivemos a prova, quando o José Brás nos quis facilitar a vida, indicando-nos o melhor caminho para irmos ter à Biblioteca de Loures, parece que ainda hoje anda gente perdida entre Odivelas e a Póvoa do Varzim.
Só que no caso das aviações, a coisa era bem mais complicada, levávamos nas asas o poder de salvar ou destruir um grupo de combate.
Essa compreensão era o fruto das inúmeras missões que fazíamos em conjunto, talvez por sermos ambos parte da Força Aérea, ou talvez pelo facto de convivermos em quartéis lado a lado.
Enquanto vivi na Base o meu quarto ficava encostado à área do quartel dos Páras onde estes limpavam as suas armas, às vezes entretinha-me à conversa com eles.
Muitas vezes e por causa do rancho na Base ser entre o mau e o péssimo, resolvia convidar-me para ir almoçar à messe dos boinas verdes, apesar da evidente sobrecarga na panela e nas suas verbas, era sempre recebido com um sorriso.
Nessas alturas e para além das conversas próprias de homens, aproveitávamos para trocar ideias sobre missões passadas, o que correu bem e mal, num debriefing informal.
Era esta rapidez em dizer onde estavam, o que pretendiam e quais as condicionantes envolventes, que diferenciava os paras da restante tropa, ali não havia ”palha” era só a informação necessária e suficiente para se levar a cabo a missão.
Já os “verdes” tinham “oradores” de todo o tipo, uns bons, outros bem trapalhões (espero que não me ataquem desta vez, não falei naqueles que vocês estão a pensar).
Que até havia alguns “verdes” de primeira água, Fulacunda e Canquelifá no top.
Os mais difíceis de entender eram os fusos, nunca se sabia bem onde estavam e muito menos o que queriam.
Mas deixemo-nos de lamúrias e vejamos algo de mais concreto.
Diz o autor a páginas 480 que os pilotos tinham sempre uma voz calma e pausada, do tipo “funcionário público a atender o cliente”.
Fogo!!!
Com os meus 65 anos até já me têm chamado muitas coisas, agora funcionário público é que não, é a primeira vez.
Não tenho nada contra os funcionários públicos, só não estava à espera de tal piropo, a nossa voz ao rádio talvez andasse por esse estilo, só não sei se os funcionários públicos são calmos e pausados.
Pensando melhor, várias razões podiam concorrer para tal maneira de estar.
Em primeiro lugar o grande número de missões que fazíamos, o que acabava por nos dar algum traquejo.
Em segundo lugar porque se não falássemos em voz calma e pausada já sabíamos que tínhamos que repetir tudo outra vez.
Que a frase típica do tipo do rádio e que nos dava vontade de lhe dar uma fogachada era “totalmente recebido, nada compreendido, terminado”.
Em terceiro lugar porque sendo o G-91 um avião monolugar tínhamos de fazer o papel de piloto, navegador, telegrafista, atirador, a nossa atenção andava dispersa no meio daquele cockpit, com botões, luzes indicadoras, alavancas e outras coisas mais.
Para os mais leigos em termos de aviação, também não fiquem com a ideia que os pilotos são da linhagem do Super-Homem ou que têm 74 olhos, não passávamos cartão a muitos daqueles mostradores.
Havia no entanto um deles que nos preocupava mais que todos os outros, que não tendo a ver directamente com o motor, (esse era um Rolls Royce, nunca falhava), nos indicava quanto tempo podíamos estar ali pela zona das operações.
Era tão só o indicador da quantidade de combustível. (mostrador1)
Calibrado em Libras (lbs), cada libra vale cerca de meio quilo, a sua escala ia do 0 aos 3600, consumindo-se todo o combustível em cerca de 50 minutos.
Cabe aqui um parêntesis para esclarecer que nos aviões com maior performance, a quantidade de combustível é normalmente referida em peso (Libras, Quilos) em vez de volume (Litros, Galões).
Na prática podíamos resumir o indicador do seguinte modo:
Entre as 3600 e as 3000 lbs era o combustível necessário para descolar e subir, entre as 3000 e 2000 lbs para chegar ao objectivo, permanência sobre o local entre as 2000 e 1000 lbs, a partir das 1000 lbs iniciava-se o regresso de modo a chegar a Bissau com um mínimo de 380 lbs.
Quando chegava às 380 libras entrava-se na chamada reserva, cinco minutos de voo, aparecendo um outro ponteiro mais pequenino, preciso e assustador, a leitura passava a ser feita na escala interior.
Chegando ao zero, deixávamos de pilotar um avião, passávamos a estar sentados numa pedra.
A monitorização deste mostrador tinha que ser permanente, até porque podia acontecer um tampão do depósito mal fechado ou um disparo do IN furar um depósito, lá ficávamos mal vistos e a falar sozinhos.
Esta era a razão pela qual os pilotos por vezes poderiam dar a impressão de “apressados”, querendo abandonar a zona, nada mais falso, a quantidade de combustível a bordo é que sempre ditava o tempo de permanência sobre o objectivo.
Lembro-me de ter ido largar umas bombitas ao estrangeiro lá para os lados de Burumtuma, neste caso o tempo autorizado sobre o objectivo era... negativo.
Foi chegar, largar e andar, lá regressámos a Bissau à maior altitude possível, cerca de 10.000 metros, à vertical do Enxalé reduzimos o motor e iniciámos uma descida em rota como costumávamos dizer, “na cagadinha”.
Só tornámos a mexer na manete do motor quando, já sobre Bissau, a aterragem nos pareceu assegurada.
Só que estas missões de tanto se repetirem, iam-nos dando uma falsa sensação de segurança, voo após voo íamos forçando mais um pouco, mais um pouco... tal como por vezes fazemos com as nossas viaturas, quando damos um passeio entre Cascais e a Malveira.
Que me lembre nenhum piloto acabou por ficar sem combustível em pleno voo.
Pela minha parte e no regresso de uma missão, acabei por ter um aviso divino:
Após estacionar o avião e quando o mecânico me fez sinal para cortar o motor, apenas pensei em fazê-lo... ele apagou-se sozinho.
Serviu-me de emenda!
Um abraço,
António Martins de Matos
Ten Pilav da BA12
__________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
16 de Dezembro de 2010 >
8 comentários:
Um relato interessante e com alguma ironia à mistura, especialmente no que respeita ao percurso para a Biblioteca de Loures e depois o "sentado em cima de uma pedra", faltou referires, com capacete, evita multa.
Gostei, um baraço,
BSardinha
Gostei de ler e de aprender meu caro A.M matos.
Talvez no fundo nós os que não fomos pilotos, mas que lemos as aventuras em quadradinhos do major Alvega, tenhamos os ideia muito errada das situações porque passaram os nossos pilotos.
A localização correta das tropas apeadas que se pretendia ajudar, devia passar por momentos de ansiedade. Quem estava debaixo de fogo, poderia não dar a localização precisa e ser assim transformado em alvo do fogo «amigo».
Hoje as noticias desses desastres no Iraque e no Afeganistão são correntes, embora a diferença tecnológica do equipamento seja abismal. O nosso seria nesse tempo, praticamente obsoleto comparado com os dos americanos no Vietnam, onde esses desastres também aconteceram.
Um abraço
Juvenal Amado
Caro António M. Matos.
Antes de mais, nunca é de mais escrever sobre este livro do Cor Moura Calheiros, que eu também acabei de ler e para o qual até tinha feito um pequeno escrito, porque se trata de um livro onde muitos de nós se sentirão bem retratados, ao qual se recomenda a sua leitura.
Quanto a este texto que nos diz das dificuldades das vossas missões aos pedidos de ajuda enquanto estávamos em dificuldades, também nós no dia 9-Maio/73 a caminho de Guidaje, sentimos o tremendo abalo e a deslocação de ar que provoca, por caírem bem próximo de nós, as bombas.
Ficamos mais esclarecidos e conscientes dos riscos de não se poder errar.
A única nota negativa deste excelente livro, (é a minha modesta opinião) são as considerações do ex Cmdt da frente Norte do PAIGC no cerco a Guidaje e da defesa da base de Cumbamory (Manuel Santos).
Duma penada, reduz aquele mês infernal a isto:
A nossa aviação não acertou em nada importante.
A OP “Ametista Real” do BCA a Cumbamory não causou baixas ao IN.
Apenas uns míseros foguetões 122mm (cerca de 30), foram destruídos.
Guidaje não era relevante.
E por aí fora……
Assim se conta do lado do PAIGC pela escrita dum seu alto responsável na altura, as memórias daquele mês de guerra.
Palavras para quê?
Voltarei ao assunto mais tarde.
Um abraço
Manuel Marinho
Caro 'camarigo' AMMatos
Mais um relato/história muito interessante.
Aprende-se bastante e a esta distância dos acontecimentos não deixa de ser curioso como se pode ainda perceber melhor como 'as coisas' corriam.
E ainda tem a virtude acrescida de 'explicar' melhor àqueles que por vezes nos interrogam 'o que é que essa guerra da Guiné' teve de diferente das 'outras' para falarem particularmente dela, como era o 'intrincado' das situações.
Ali, em situação normal, corrente, era usual haver como que uma espécie de 'interpenetração' das forças em presença numa operação e daí a perigosidade dos bombardeamentos e das angústias que 'ofereciam' aos pilotos.
Gostei do relato/história.
Abraço
Hélder S.
Creio que seräo postes como este que tornam o nosso blog interessante para tantos que o seguem.Nele está contido,de forma concreta,um pouco de tudo relacionado com as vivências da guerra na Guiné.O humano.O profissional.E näo menos,o detalhe,visto pelos olhos de um piloto (com humor),e com referências a factos e realidades täo desconhecidos para os "Palmípedes" que a maioria de nós por lá foi.Um concreto-histórico.Um verdadeiro e bem facetado documento. Um abraco.
Caro General
Sempre acertivo.Porque é que nunca existiu uma coordenação entre a F.A.e os pedestres de g3.Quantos oficiais e sargentos não sabiam ler correctamente uma carta topográfica e que cuidados tinham em saber mais ou menos onde estavam quando progrediam na mata.É claro que quando se está debaixo de fogo a serenidade não é muita e juntando as deficiências anteriores--- normalmente dava barraca.Porque é que nunca nos foi explicado,apesar de qualquer um de nós saber que os fiat não podiam permanecer eternamente no ar,que dispunham de tão pouco tempo para voar.Porque é que.......
muitas mais perguntas tinha a fazer,por agora fico por aqui.
c.martins
Caro camarigo António Matos
Li de uma assentada o teu texto.
Em primeiro lugar saliento todo o aspecto humano que dele sobressai!
Sou "suspeito" por causa da minha ligação sentimental à Força Aérea, mas também por isso mesmo sei bem que algumas ideias feitas sobre os pilotos são compeltamente erradas.
Mas o teu texto leva-nos ainda a pensar na "solidão" da decisão.
Não te podes voltar para o lado e perguntar: "É pá, o que achas que faça, bombardeio ou não?"
pela simples razão que não está ninguém ao teu lado, embora a maior parte das vezes voem em parelha.
E saliento ainda mais a "frustração" que com certeza muitas vezes teriam de, ou por já não terem combustível que chegasse, ou pela impossibilidade prática de segurança poderem bombardear, terem que deixar os vossos camaradas apeados com a sensação de a Força Aérea se tinha "pirado".
Enfim havia tanto para dizer, mas em conversa é mais fácil, por exemplo, à volta de um "cozido á portuguesa"!
Um grande abraço para ti e para todos
Concordo em absoluto com o Joaquim quando diz que as conversas säo mais fáceis à volta de um cozido à portuguesa.(A maldicäo de um Lapäo no cu de judas!). C Martins diz que muitas perguntas tinha a fazer."PORQUE É QUE....?" Porque é que a instrucäo,e o treino,com que as tropas do contingente geral embarcavam para África,näo eram adaptados aos conhecimentos práticos (e realistas),já bem aprendidos em cerca de 10 anos de guerras? Depois da Guiné fui mobilizado para Angola,tendo sob o meu comando um Esquadräo formado no Regimento de Cavalaria 4 de Santa Margarida.Logicamente,julgava eu,(armado em chico esperto),que me seria permitido instruir os soldados por quem era responsável,näo em exageros de paranoia,mas,minimamente baseado no que (na prática!)tinha "aprendido" na Guiné.Só eu sei as lutas que,tanto eu,como o Alferes de Operacöes Especiais do Esquadräo tivemos que travar para...finalmente...näo o conseguirmos por falta de apoio superior.E,mais uma vez:"Porque é que"?! Um grande abraco.
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