quinta-feira, 28 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8179: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (15): Xelorico, um rapaz sui generis


1. Mensagem José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 26 de Abril de 2011:

Amigo Vinhal:
Junto nova história (Xelorico, um rapaz sui generis) para integrar o registo das "Memórias boas da minha guerra".

Um abraço do
Silva da Cart 1689



Patrulhamentos

Outras cambanças


Memórias boas da minha guerra (15)

O “Xelorico” – um rapaz “sui generis”

O Soldado José Ribeiro, minhoto de Celorico de Basto, foi mobilizado para a Guiné (1967/1969), integrado na nossa CART 1689. Para mim, que o seguia de perto, era um indivíduo inteligente, de comportamento exemplar e com características muito próprias, para além da pronúncia do nome da sua terra natal e de outras palavras idênticas.

Logo de início ficou marcado pelo nome de Xelorico. Quem o baptizou (e martirizava) foi o Silveira de Matosinhos. O Ribeiro esforçou-se tanto para corrigir o seu falar, que já não aceitava essa “provocação” e passou a gabar-se de falar melhor que os gajos do Porto.

Quando fizemos a Operação Inquietar II, estivemos sob uma emboscada do IN durante mais de três horas. Durante esse tempo foram-se esgotando as munições sem que víssemos saída para a situação. O ambiente era de péssima expectativa e as esperanças de solução iam diminuindo à medida que o tempo passava. Quando tentávamos avançar, logo obtínhamos resposta imediata e forte do IN, que nos obrigava a manter a mesma posição. Deitados pelo chão, cochichávamos com os mais próximos frases próprias de quem quer disfarçar o estado de espírito. O Silveira, acossado pelo remorso, diz para o Xelorico:

- Ó Ribeiro, desculpa lá por ter gozado com a coisa do Xelorico. E, num tom mais comovido, adiantou:

- Se escaparmos desta, nunca mais te vou chatear com isso. Tás a oubir, morcom? O Celorico, encolhendo os ombros:

- Afinal, não tens razão nenhuma, porque eu não falo assim.

Uns minutos depois, numa das reacções do IN, veio uma granada “rocket” embater contra uma árvore grande, que estava perto. Os estilhaços incandescentes espalharam-se em várias direcções e um deles rasgou a bochecha do Ribeiro, do lado esquerdo e entrou-lhe na boca. O Ribeiro, com a sua habitual serenidade, abriu a boca e apanhou um estilhaço, ainda quente, com dois dedos da mão direita. Virando-se para o Silveira, mostrou o achado e disse, com o ar e a voz a fugir-lhe pelo buraco ensanguentado:

- Flholda-lhe Slilbeila flholalam-me cum stilhalho. Estlhou flholhilho.

O Silveira, que ficou bastante preocupado ao ver o ferimento e a sangrar, ia repetindo para o encorajar:

- Tem calma Xelorico. Tem calma qu’ isso tapa-se. Bais ficar bom. Olha qu’ inda bais ficar a falar à moda de Lisbaua.

Outro aspecto que ilustra a personalidade do José Ribeiro era a ajuda que prestava aos camaradas na escrita de cartas e aerogramas para a Metrópole.

São umas 3 horas da tarde. O “Celorico” atravessa a parada de Cabedu e segue directamente para um dos postos de sentinela, onde está o Fernandes, que era analfabeto. Leva debaixo do braço um caderno de linhas, já parcialmente escritas. Senta-se perto do Fernandes, puxa umas folhas do caderno para trás e lê:

“Querida Maria, muito estimo que ao receberes esta, te encontres de perfeita e feliz saúde, na companhia do nosso Quinzinho, dos teus pais, das tuas irmãs, da tua avó Matilde e de todos os vizinhos. Eu por cá estou bem, graças a Deus...

Vira-se para o Fernandes e pergunta:

- Que é que queres que diga mais?

Responde-lhe o Fernandes:

- Olha, diz-lhe que ando a cismar na puta da vaca que fugiu ao meu sogro. Não sei se não será melhor vendê-la, se não qualquer dia foge outra vez e ninguém a apanha. Ó Celorico diz-lhe também que isto por aqui está bem e que quando eu for embora, não quero ouvir falar mais de feijão verde porque me faz lembrar a puta da farda da tropa. Não digas nada que ando a aprender a nadar, se não a família fode-me o juízo.

- Claro - diz o Celorico, que continuou: – E no fim, faço como o costume?... Com isto termino, muitas recomendações para os familiares, amigos e vizinhos, beijos e abraços para os teus pais, para ti e para o nosso querido menino, deste que tanto vos ama. José de Oliveira Fernandes.

- Porreiro, Celorico. Olha, já agora, podias acabar e entregar na Secretaria. Muito obrigado, pá. Logo pago-te a cervejita. Ó menos isso.

Quando se preparava para regressar, o Justino “Faquista”, de Fafe, aproxima-se e diz-lhe:

- Ó Celorico, já sabes que entro de sentinela às 6:00, no posto de lá de baixo. Não te esqueças de me dar uma ajuda para mandar um “bate-estradas”. Queres vir beber uma “granada”?

Outra façanha do “Celorico” era a capacidade de memorizar.
Já me tinham falado no assunto, mas eu não acreditava que fosse com tantos pormenores . Um dia cruzámo-nos na parada, em Catió.

- Bom dia Celorico, está tudo bem?

- Que remédio, meu Furriel Ranger, José Ferreira da Silva – respondeu ele.

- Ó pá, não me foda, deixe-se dessas merdas – observei eu.

-E não é verdade? Então quem é o Furriel de Artilharia, Ranger Silva, com o número mecanográfico 8500765, José Ferreira da Silva, natural da freguesia de Fiães, do concelho de Santa Maria da Feira, residente na Rua de S. António, ....

-Ei, páre, páre lá, a ladainha – interrompi eu. - Cum caralho, como é que decorou essa merda? Não me diga que é mais um bufo da Pide, a morder-me os calcanhares?

O Celorico, todo orgulhoso, a transmitir o seu gozo controlado, exclamou:

- Por mim, não tenha medo disso porque se os pudesse foder, também alinhava. E acrescentou:

- Sei o nome, o posto, o número mecanográfico e o endereço de todos os 153 militares da nossa Companhia de Artilharia nº 1689, pertencente ao Batalhão de Artilharia 1913, da Serra do Pilar, de Vila Nova de Gaia.
Não acredita? Olhe, o nosso Capitão chama-se Manuel de Azevedo Moreira Maia tem o numero....... e é natural de..., da Povoa do Varzim; o Alferes de Infantaria, Ranger Alberto Augusto Abrunhosa Branquinho, numero ....... vive na Covilhã e é natural de Vila Nova de Foz Côa......

- Chega, chega, eu acredito – gritei eu. - Não acreditava, mas agora até juro que é verdade.

Mas o “Celorico” também ouvia o que queria (ou imaginava).

Eram mais de 11 horas da manhã. O sol estava quase a pino e não havia ponta de vento que suavizasse aquele calor infernal. Além do zumbir dos insectos e de um ou outro pio de ave ao longe. Não se sentem energias para mudar de sombra. Naquela zona sul da Guiné, cercada de rios, matas e bolanhas, era muito difícil sintonizar qualquer estação de rádio. Por vezes, lá se ouviam alguns ruídos misturados com vozes e idiomas indefinidos. O gira-discos dos furriéis ainda estava empacotado, desde a vinda de Catió, pronto para nova viagem ou cambança (que foram de Fá a Canquelifá, passando por variadíssimos outros aquartelamentos e destacamentos).

Nesse aquartelamento de Cabedu existia, no extremo norte da parada, uma árvore muito alta, onde funcionava um posto de sentinela. Dessa árvore descia um arame directamente para o posto de transmissões, numa posição subterrânea, no outro extremo da parada.

Sentado no chão, encostado ao muro sombrio da caserna, faço um grande esforço para ler umas anedotas pela cagagésima vez.

Olho em frente e vejo o Celorico a tentar engatar um fio na antena das transmissões. Era conhecido pelo seu amor ao folclore e, muito particularmente, ao Grupo Folclórico de Celorico de Basto. Para ele a musica portuguesa era só dessa.

Já ele transpirava em bica, quando conseguiu engatar a sua antena privada na antena do quartel. Com um rádio do tamanho de um palmo, ligado, o Celorico tinha que o segurar um pouco acima do ombro, devido ao escasso comprimento da sua improvisada antena.

De repente, põe-se aos saltinhos de braços erguidos (uma mão com o rádio), a gesticular e a cantar alto:

- ... “Está nooooo pino do calor. Está nooooo pino do calor...”.

Como me viu, chamou-me para ir ouvir, como se tivesse descoberto algo de transcendente.

- Ouça aqui o Rancho Folclórico da minha terra. Que categoria! Como eu não ouvisse nada, encostou-me o rádio ao ouvido, sem interromper o seu acompanhamento: - Está noooooo pino do calor...!

Confesso que não ouvi nada, a não ser um zumbido enorme, carregado de “areia”, sem qualquer som musical ou palavras perceptíveis.

Todavia, passados mais de 15 minutos, ainda lá estava o “Celorico” sozinho, sob sol escaldante, aos saltinhos, a ouvir os discos pedidos (perdidos?) na Emissora Nacional e a cantar: - Está nooooo pino do calor”.

Fotos e texto
Silva da Cart 1689
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8078: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (7): Operação Inquietar II - Manga de Ronco

Vd. último poste da série de 10 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7921: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (14): Celebrando os meus 25 anos

3 comentários:

JD disse...

Belo texto carregado de humor e de imagens do quotidiano na Guiné.
Além de revelar uma excelente capacidade narrativa, com ritmo, com sentimentos de dor e de humor, com a amizade que deriva da juventude solidária, e bom português.
Um abraço
JD

Luis Faria disse...

Ferreira da Silva

Uma bela pincelada que retrata com singeleza e bem,pedaços de vida e amizade, naquelas terras de sofrimento e de bons momentos tambem

Luis Faria

Luís Manuel de Sousa Peixeira disse...

Lindo, Oh camarada. Vou colocá-lo no meu blog Luís Urgais